Por que a Holanda foi condenada parcialmente responsável pelo massacre em Srebrenica?

Para entender a relação entre Srebrenica e o Estado holandês, é imprescindível abordar o que aconteceu na ex-Iugoslávia.

Devlin Biezus
5 min readJun 30, 2017

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O genocídio de Srebrenica (1995) deixou pelo menos 7.000 pessoas mortas e ocorreu durante a Guerra da Bósnia. Contudo, essa guerra pertence a um contexto mais amplo de conflitos que iniciaram no começo da década de 1990: a dissolução da Iugoslávia. Por isso, não é possível falar do que aconteceu em Srebrenica sem falar da ex-Iugoslávia.

A Iugoslávia era uma federação formada por seis repúblicas: Croácia; Sérvia; Eslovênia; Macedônia; Bósnia-Herzegovina e Montenegro. Além de contar com duas regiões autônomas na Sérvia: Vojvodina e Kosovo. Uma importante característica das repúblicas da Iugoslávia — que se faz significativa para compreender melhor os conflitos — é que suas repúblicas (com exceção da Eslovênia e Macedônia) não possuíam um grupo etnicamente majoritário. Por exemplo, em algumas regiões da Croácia havia um grande número de população de etnia sérvia, apesar de terem nascido na Croácia. A Bósnia era formada por 3 etnias predominantes, os croatas-bósnios, sérvios-bósnios e os bosniaks (os bosniaks também podem ser denominados como muçulmanos, dado que a religião islâmica possuía um status de etnia na Iugoslávia). A região do Kosovo, a qual independência não é reconhecida pela Sérvia, possui uma maioria albanesa. Ou seja, a nacionalidade e a etnia, nesses casos, não são equivalentes.

O Estado iugoslavo foi governado, de 1953 a 1980, por Josep Broz Tito. Tito, que lutou contra a ocupação nazista no país durante a Segunda Guerra Mundial, conseguiu criar uma unidade entre os diferentes grupos étnicos e nacionais que formavam a Iugoslávia. Essa unidade foi possível por diversos fatores, como a autonomia dada as repúblicas, o carisma que Tito possuía e a repressão feita a qualquer movimento nacionalista.

Alguns anos após a morte de Tito os movimento nacionalistas se espalharam por toda Iugoslávia. O poder central da Federação passou para o governo sérvio, o qual procurava reduzir a autonomia das repúblicas. Uma das principais demonstrações desse centralismo foi a manobra feita pelo Presidente sérvio, Slobodan Milosevic, em que dava o controle das regiões autônomas de Kosovo e Vojvodina à Sérvia. Outro exemplo é o rompimento da rotação presidencial da Iugoslávia, a qual permitia o posto à todas as nacionalidades, assim, criando um equilíbrio de poder entre as repúblicas. Essa rotatividade foi rompida em 1991, quando o então presidente de nacionalidade sérvia se recusou a passar seu posto para o novo presidente de nacionalidade croata.

Diante desse cenário, em que o governo iugoslavo estava cada vez mais centralizado na Sérvia, algumas repúblicas começaram a manifestar o desejo de desvincular-se da Federação. A primeira a declarar independência foi a república da Eslovênia, em 25 de junho de 1991. A guerra na Eslovênia durou apenas 10 dias. Como essa república era formada majoritariamente de eslovenos, o governo iugoslavo decidiu reconhecer sua independência. Mas, o mesmo não aconteceu com a Croácia e a Bósnia-Herzegovina.

A independência na Croácia, em 1991, era defendida pela população de etnia croata. Os croatas-sérvios ainda desejavam permanecer na Iugoslávia. Essa divergência resultou na criação de uma facção sérvia, que tinha apoio do exército iugoslavo, e lutava contra as forças croatas independentistas.

Na Bósnia, um plebiscito pela independência foi realizado entre 29 de fevereiro e 1° de março de 1992, sendo que, foi boicotado pelos sérvios-bósnios. De maneira similar com o que ocorreu na Croácia, não era a totalidade da população bósnia que desejava uma independência. Assim, havia regiões na Bósnia de maioria sérvia, essas regiões passaram a ser controladas por milícias sérvias-bósnias e possuíam o apoio do exército da Iugoslávia, cujo interesse era manter a Federação unida. Mas, dentro dessas regiões controladas por sérvios existia cidades bosniaks, como Srebrenica.

Divisão política da Bósnia-Herzegovina após a guerra. Fonte.

O mapa acima mostra como é a atual divisão da Bósnia-Herzegovina, composta por duas entidades políticas. A parte em verde escuro é denominada República Srpska. Essa é a região com a maioria sérvia-bósnia e cidades como Srebrenica e Gorazde eram enclaves bosniaks dentro dentro dessa região. A outra entidade política é a Federação Bósnia, composta por uma maioria de croatas-bósnios e bosniaks.

Durante a Guerra da Bósnia, tanto Srebrenica, quanto Sarajevo e Gorazde eram cidades determinadas como Áreas de Segurança pela Organização das Nações Unidas (ONU). As Áreas de Segurança, ou safe areas, tinham como objetivo impedir qualquer atividade paramilitar ou de facções nessas regiões contra civis, assim, tentando proporcionar segurança para quem se encontrava nesses locais.

Os Capacetes Azuis, como é chamada a tropa de Forças de Paz da ONU, eram compostos pela forças armadas holandesas. Sua missão era precisamente proteger a Safe Area de Srebrenica. Mas, o exército holandês perdeu o controle da região quando ela foi invadida pelas tropas sérvias-bósnias comandadas pelo general Mladic. Os bosniaks, então, procuraram refúgio nas bases militares holandesas. Essa população foi entregue ao exército sérvio-bósnio pelos Capacetes Azuis para que ela fosse evacuada do enclave. No entanto, o que aconteceu foi, o que hoje é conhecido como “massacre de Srebrenica”, vitimando cerca de 300 bosniaks.

Em 2014, o Estado holandês já havia sido responsabilizado pelo Tribunal de Haia. A Holanda foi processada pelos familiares das vítimas e os sobreviventes do massacre. Segundo a Corte, a vida de 300 pessoas poderiam ter sido poupadas se os Capacetes Azuis holandeses não tivessem entregado essa população para ser evacuada. A Holanda recorreu dessa decisão, alegando que “ninguém conseguiria prever o genocídio”.

O que aconteceu no dia 27 de junho de 2017 foi a ratificação da sentença de 2014, a qual havia sido recorrida. A Corte acatou que o Estado holandês agiu ilegalmente e o condenou com pagamento de indenização as vítimas no valor aproximadamente de 4,5 milhões de euros.

A Holanda é considerada “parcialmente” responsável, porque o exército do país, mesmo servindo a ONU, deixou de agir no momento em que deveria proteger. Muitos crimes de guerra ocorreram durante a dissolução iugoslava, por isso foi estabelecido pela ONU o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia. Seu objetivo é julgar os indivíduos responsáveis por atos como massacres, assassinatos, tortura, estupro, destruição de propriedade e ataques a civis. Ratko Mladic, general das forças sérvias-bósnias mencionado anteriormente, foi indiciado ao Tribunal em julho de 1995. Seu julgamento esta programado para novembro de 2017.

A condenação da Holanda como parcialmente culpada pelo massacre de Srebrenica abre um importante precedente para o futuro dos julgamentos de crimes de guerra. Contudo, tão importante quanto punir é prevenir. O genocídio na ex-Iugoslávia não é culpa apenas de quem foi ou está sendo julgado nos tribunais, mas de toda comunidade internacional que negligenciou o que estava acontecendo em plenos portões da Europa. Um fracasso para a ONU e uma evidência que para uma “intervenção humanitária” acontecer é necessário que apareça algum interesse político por trás.

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Devlin Biezus

Mestranda em Ciência Política, graduada em Relações Internacionais, projeto de pesquisadora, bookworm. Gosta de política, mas também de batata.