O Met Gala, o Costume Institute e Kim Kardashian — parte 2

Guilherme Dias
6 min readNov 15, 2022

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Vamos continuar o primeiro post sobre o Met Gala, o Costume Institute e o bafafá do vestido da Marilyn. Antes, só queria agradecer ao pessoal que se interessou e apareceu por aqui. Um salve especial para o Ouriço de Cartola e a galera que conheci por ele, isso me incentivou a escrever um pouco mais sobre arte e cultura em um formato que nunca tentei.

Frasco de perfume egípcio em faiança, século 6 A.C. Parte da coleção do Metropolitan Museum

Ok, no ultimo post apresentei de forma bem breve o que é o Met Gala e o Costume Institute, departamento interno do museu para o qual a arrecadação de fundos da festa é direcionado. Também falei da Anna Wintour e da Sarah Scaturro. Se perceberam, tentei me ater a 2021. Agora vamos para 2022.

A exposição desse ano foi “Na América: Uma Antologia da Moda”, e o dress code foi definido como White tie, que é literalmente o mais rigoroso e formal dress code, que chega a colocar o black tie de escanteio.

Um Obama para exemplificar o dress code: à esquerda, o black tie, à direita, o white tie. Além da gravata e do colete branco serem obrigação no white tie, percebam a diferença do costume.

O tema e o dress code foram escolhidos para situar a referencia nos anos dourados novaiorquinos (dourados nesse caso vem de douramento, não de ouro. Não por menos, em inglês o termo usado para referência é Gilded Age), entre 1870 a 1900. Estamos falando de moda estilo Bridgerton mesmo.

Mas, como sabemos que o Gala é um Laboratório, tivemos muita coisa interessante. Destaque é a Blake Lively, também co-host do Gala, que em um vestido Versace em tons cobre, no meio do carpete se transforma nesse verde com referências as constelações no teto da Grand Central Station de nova York. Um baita vestido que remete também a estatua da liberdade, devido o processo de azinhavre do cobre, material de sua composição, para o verde que conhecemos.

O vestido Versace em cobre, com alguns detalhes do verde na parte interior
A transformação do vestido para o verde, em referência ao azinhavre da estátua da liberdade.

E como lugar de experiências, também temos críticas. Riz Ahmed lança um look em referência aos imigrantes que sustentaram os anos dourados novaiorquinos.

Mas não estou escrevendo isso aqui para falar dos looks do gala, mas sim para o acontecimento da noite: Kim Kardashian aparece no Gala com O vestido da Marilyn Monroe.

Aquilo deixou a todos os que assistiram — tanto o público como o mundo da moda (e no caso por ser no gala, o mundo dos museus — sem ar. Esse é o mesmo vestido que Marilyn usou quando cantou Happy Birthday Mr. President. Esse vestido é literalmente parte da memória americana.

A formação do conservador requer um conhecimento quase enciclopédico sobre materialidade (e esse é um dos principais motivos do especialismo ser algo tão presente no campo: é impossível saber muito de tudo), e se tem algo que você aprende é que objetos têxteis são estruturas absurdamente frágeis, e que só se fragilizam mais com os anos. Vestir um vestido que é tão simbólico, e que tem 60 anos é algo impensável para qualquer profissional de museu.

Associar isso ao formato corporal da Marilyn, essencialmente diferente ao corpo da Kim, e considerando que o vestido foi criado para ser quase uma segunda pele de Marilyn, quando bati os olhos, falei “meu deus, vão ter danos irreparáveis. Isso vai dar muito pano pra manga”.

Joguei no Google na mesma hora o vestido para entender como uma instituição de guarda cederia um objeto de acervo para a Kim ir no Gala. Acho uma matéria de 2016 falando que o vestido foi arrematado em leilão pela Ripley’s Believe it or Not. Sim, aquela empresa que tinha até um programa de TV sobre coisas curiosas nos anos 2000, e que tem várias casas de “curiosidades” pelos Estados Unidos. Até minha esposa perguntou “como esse vestido é dessa empresa e não está em um museu?”.

Já corri para o twitter e fui ver o que colegas profissionais de museus estavam comentando sobre, e todos estavam em choque. Lembro de ter ido direto na Sarah Scaturro, que é uma grande referência no campo e que sabia que trabalhava no Costume Institute até 2019, como Conservadora Chefe. Ela estava furiosa. Fez um baita wall of text, que depois apagou porque escreveu no calor do momento e pra preservar ela, vou deixar aqui a fala dela pro LA Times.

“Estou frustrada porque isso é um retrocesso para o que é considerado um tratamento profissional para figurinos históricos. Nos anos 80, profissionais da área se uniram para formularem uma resolução de que figurinos históricos não deveriam ser usados. Então, a minha preocupação é que colegas agora serão pressionados por pessoas importantes para que as deixem usar esse tipo de traje”.

De forma sintética, O vestido histórico de Marilyn, com todos os valores atribuídos para ser um vestido histórico e em coleção permanente, foi usado para ir ao baile de gala do Departamento de Indumentária do Metropolitan, um dos principais museus do mundo.

O Pós Gala

Primeiro, para entender como um museu daria um objeto como esse para ser usado, busquei entender se o Ripley é um museu (Museus costumam ter em sua missão a responsabilidade de preservar seu acervo, o que faria qualquer um negar esse empréstimo) e descobri que é uma empresa que arrematou o objeto em leilão. É deles e eles cederam para alguém.

Em seguida, fui tentar entender os danos causados ao vestido. Frente as críticas a própria assessoria da Kim e da Ripley lançou vídeos das provas do vestido (que para qualquer conservador já causa desconforto e dor ao assistir). A partir daí Elenquei alguns danos possíveis: Perda de cristais na barra do vestido, por causa o salto plataforma usado pela Kim; Esgarçamento do tecido (que ao envelhecer resseca e rompe a trama com mais facilidade); E perda de cristais ao redor da cintura, por manuseio irregular para forçar o vestido a entrar. Não deu outra.

Para o campo da conservação, isso foi literalmente o Ecce Homo do ano. A Sarah fez uma baita de uma entrevista pro LA Times que deixo aqui caso queiram ler mais sobre. O nível de mobilização foi tanto que até o maior órgão internacional de museus, o Conselho Internacional de Museus (ICOM) se pronunciou sobre o caso.

“Historic garments should not be worn by anybody, public or private figures,” “Prevention is better than cure. Wrong treatment will destroy an object forever.” ICOM-Costume

Por mais que a empresa e a própria Kim afirmem que não causaram dano, que foi só para o red carpet, e que o uso foi supervisionado por profissionais da Ripley, os danos estão evidentes e é preciso levar isso para discussão com o público: O uso de objetos históricos é errado e deve ser sempre desencorajado. Inclusive, um dos principais pontos que Sarah destaca é que, se antes ela já enfrentara resistência de figuras públicas, ricas e influentes requisitarem acervo histórico para uso, essa tendência pode só aumentar, e que profissionais e instituições de menor porte podem sofrer mais pressão ainda para realizar empréstimos como esse.

Eu, pessoalmente, finalizo que esse desastre de conservação é até importante para aproximar o trabalho de conservadores ao público maior. É uma ótima oportunidade de criar pontes e explicar, para quase todo mundo que nunca ouviu falar dessa profissão, o que fazemos, como fazemos e porquê fazemos.

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