Técnicas de tortura de mulheres na idade média(Scold’s Bridle) e a origem da fofoca

Dimitra Vulcana
7 min readJan 20, 2020

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Esse texto tem como objetivo trazer umas passagens do livro da Federici “Mulheres e a caça às bruxas” para mostrar como ao longo do tempo e na transição para o capitalismo ocorreu um processo de feminização da pobreza e controle social das mulheres, inclusive por meio de tortura e humilhação pública. Para isso focarei no termo fofoca (gossip) e também em um instrumento utilizado para tortura chamado Scold’s Bridle.

uma mulher com a ferramenta descrita no texto preso ao rosto

O termo fofoca é empregado até hoje como algo fútil e de natureza feminina. Mas não era bem isso que significava não. Por trás desse termo, tem muito mais sobre amizade feminina e que com o tempo o termo foi mudando. Federici (2019, p.75) diz que:

Uma expressão que usualmente aludia a uma amiga próxima se transformo em um termo que significava conversa fútil, maledicente, isto é, uma conversa que provavelmente semearia a discórdia, o oposto a solidariedade que a amizade entre as mulheres implica e produz. Imputar um sentido depreciativo a uma palavra que indicava amizade entre as mulheres ajudou a destruir a sociabilidade feminina que prevaleceu na Idade Média, quando a maioria das atividades executadas pelas mulheres era de natureza coletiva e, ao mesmo nas classes baixas, as mulheres formavam uma comunidade coesa que era a causa de uma força sem-par na era moderna.

O uso da palavra inicialmente estava até relacionado com God Parent que significa padrinho ou madrinha, mas ao longo do tempo começou a ser relacionado às companheiras na hora do parto (no caso vai além da parteira).

Também se tornou um termo para amigas mulheres, sem conotação necessariamente depreciativa. Em todo caso, a palavra tinha fortes conotações emocionais. Reconhecemos isso quando observamos a palavra em ação, denotando os laços a unir as mulheres na sociedade inglesa pré-moderna (FEDERICI, 2019, p.76).

Ao longo do tempo, e como meio de controle das mulheres, o termo gossip foi mudando e tinha tanto aparato do Estado, quanto da Igreja. Era muito comum ter representações na literatura de forma caricata das mulheres como rabugentas, brigonas que com suas gossips iam para as tavernas beber vinho, encher a cara e falar mal dos homens (e tavam erradas?). Elas ainda tinha algum privilégio social na sociedade, mas as coisas foram mudando, de modo que era necessário criar um modelo de feminilidade servil durante o desenvolvimento da sociedade capitalista. Para isso as mulheres deveriam ser sempre as esposas obedientes, a mulher que não possui sexualidade, subordinada ao marido e que tudo isso seria o comportamento “natural” fazendo com que a independência que gozavam antes fossem completamente desaparecidas no capitalismo.

Essas representações satíricas, expressões de um crescente sentimento misógino, serviram à política das guildas que se empenhavam em se tornar domínios exclusivamente masculinos. No entanto, a representação das mulheres como figuras fortes, assertivas, também captava a natureza das relações de gênero da época, pois nem nas áreas rurais e nem nas urbanas as mulheres eram dependentes dos homens para sobreviver; elas tinham as próprias atividades e compartilhavam muito da vida e do trabalho com outras mulheres. Cooperavam umas com as outras em todos os aspectos. Costuravam, lavavam roupas e davam à luz cercadas por outras mulheres- nesta última situação, os homens eram rigorosamente excluídos dos aposentos das parturientes. Sua condição legal refletia essa grande autonomia. Na Itália, no século XIV, elas ainda podiam se dirigir independentemente à corte para denunciar um homem se ele as agredisse ou molestasse. No Século XVI, entretanto, a posição social das mulheres havia começado a se deteriorar, e a sátira deu lugar ao que, sem exagero, pode ser descrito como uma guerra contra as mulheres, especialmente das classes baixas, que se refletia em um número cada vez maior de acusações por bruxaria e de agressões contra esposas tida como “rabugentas” e dominadoras. Além desse desdobramento, começamos a ver uma mudança no significado de “gossip”, cada vez mais designando a mulher envolvida em conversas fúteis(FEDERICI, 2019, p.78).

No século XIV ao tentarem retratar as mulheres como brigonas, fortes e que batiam nos maridos, a intenção era descredibilizar as mulheres, mas se via também como eram independentes. Já no século XVI, infelizmente, já temos a consolidação da autoridade masculina na família, temos a representação do Estado como autoridade também sobre crianças e mulheres e a independência e poder feminino foram erradicados da sociedade. Junto também foram enfraquecendo as amizades femininas. A medida que esse processo ocorre, tecnologias são criadas visando o controle dos corpos que precisam ser destinados a produzir pessoas que vão produzir produtos no capitalismo. Inclusive Preaciado (2017, p. 103) diz que as tecnologias do gênero “não existem, isoladamente ou de maneira específica, sem fazer parte de uma biopolítica mais ampla, que reúne tecnologias coloniais de produção do corpo-europeu-heterossexual-branco.” Sempre duvide quando algo é dado como natural na nossa sociedade (fica a dica).

uma mulher com a ferramenta descrita no texto preso ao rosto e ao lado dela três crianças.

Dessa maneira, na Idade Média tardia, uma esposa ainda podia ser representada enfrentando seu marido e até mesmo trocando socos com ele, mas, no fim do século XVI, ela poderia ser punida com severidade por qualquer demonstração de independência ou crítica em relação a ele. A obediência — como a literatura da época enfatizava constantemente — era a primeira obrigação da esposa, imposta pela Igreja, pelo direito, pela opinião pública e, em última análise, pelas punições cruéis que foram introduzidas contra as “rabugentas”, como o “scold bridle” [rédea ou freio das rabugentas] também chamado de “branks”, engenhoca sádica de metal e couro que rasgaria a língua da mulher se ela tentasse falar. Tratava-se de uma estrutura de ferro que circundava a cabeça, um bridão de cerca de cinco centímetros de comprimento e dois centímetros e meio de largura projetado para dentro da boca e voltado para baixo sobre a língua; muitas vezes, era salpicado de pontas afiadas, de modo que, se a infratora mexesse a língua, aquilo causaria dor e faria com que fosse impossível falar

Registrado pela primeira vez na Escócia em 1567, esse instrumento de tortura foi criado como castigo para as mulheres das classes mais baixas consideradas “importunas” ou “rabugentas” ou “subversivas”, sempre suspeitas de bruxaria. Esposas que fossem vistas como bruxas, ou malvada e rabugenta também eram forçadas a usá-lo. Muitas vezes o instrumento era chamado de “gossip bridle”, atestando a mudança de sentido do termo. Com uma estrutura dessas travando a cabeça e a boca, as acusadas podiam ser conduzidas pela cidade em uma humilhação pública cruel, o que deve ter aterrorizado todas as mulheres e que demonstrava o que elas poderiam esperar caso não se mantivessem subservientes. É significativo que, na Virginia, Estados Unidos, isso tenha sido usado para controlar pessoas escravizadas até o século XVIII (FEDERICI, 2019, p.81).

Outros instrumentos também eram utilizados como os “cucking stool”, que eram usados como punição para as prostitutas ou mulheres que participavam dos motins contra os cercamentos. Os cercamentos de terras, inclusive, marcam bastante esse período de transição da sociedade e Federici se debruça sobre isso não apenas na Europa antiga, mas também em outras regiões do mundo como o continente africano e a Índia. Além disso, a caça às bruxas não cessou, ela segue e milhares de mulheres são assassinadas brutalmente por anos. Vale a pena a leitura desse livro e também de outro chamado “O calibã e a bruxa”, da mesma autora. Outra leitura importante é o livro do Engels, grande amigo de Karl Marx que falou sobre a da família, da propriedade privada e do estado. É importante pensarmos como esses processos se deram, como as relações de poder na família mudaram e principalmente como o Estado surge como um grande protetor da propriedade privada. Todos esses processos, torturas, controle e poder exercidos estão intimamente relacionados.

Calcula-se que, apenas na Tanzânia, mais de 5 mil mulheres sejam assassinadas por ano como bruxas, algumas golpeadas com facão até a morte, outras enterradas ou queimadas vivas. Em alguns países, como a República Centro-Africana, as prisões estão cheias de mulheres acusadas de serem bruxas e, em 2016, mais de cem delas foram executadas. Elas foram queimadas vivas por soldados rebeldes que, seguindo os passos de perseguidoras de bruxas no século XVI, transformaram as acusações em negócio, forçando as pessoas, sob a ameaça de execução iminente, a lhes remunerarem.

Na Índia, o assassinato de bruxas é igualmente desenfreado — ainda mais em terras “tribais”, como o território dos adivasi, onde estão em curso processos de privatização de terra em larga escala. E o fenômeno está se expandindo. Temos relatos, atualmente, de assassinatos de bruxas no Nepal, Papua Nova Guiné e na Arábia Saudita. O Estado Islâmico também executou “bruxas”. Assim como no século XVI, a tecnologia contribui para a perseguição. Hoje, imagens de assassinatos de bruxas podem ser baixadas da internet, assim como manuais que indicam como reconhecer uma bruxa (FEDERICI, 2019, p.24).

Referências

ENGELS,. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Nélio Schneider. 1ª. ed. São Paulo: Boitempo, 2019. 196 p.

FEDERICI, S. Calibã e a Bruxa. Tradução de Coletivo Sycorax. 1ª. ed. São Paulo: Elefante, 2018.

FEDERICI, S. Mulheres e a caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais. Tradução de Heci Regina Candiani. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.

PRECIADO, P. B. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2017.

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Dimitra Vulcana

Youtuber e podcaster do Doutora Drag, professora do Instituto Federal, doutora em ciências da saúde (twitter e instagram: dimitravulcana).