Sobre Fabulações Especulativas

Dino Siwek
7 min readNov 8, 2018

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O último livro da bióloga, filósofa e teórica ecofeminista Donna Haraway, Staying with the Trouble (ainda sem tradução para o Português), traz como um dos conceitos guia o acrônimo SF, e seus vários possíveis desdobramentos: Ficção Científica, Fato científico, Feminismo Especulativo, Fabulação Especulativa, até agora (em inglês no original: String Figures, Science Fact, Science Fiction, Speculative Fabulation, Speculative Feminism, So Far). Destes, me interessam particularmente as fabulações especulativas.

Ao trazer luz a fabulações especulativas, reconheço as limitações de retirar um significado apenas do poderoso encontro entre todos estes termos. A própria autora chama atenção para esta questão ao afirmar que “os fatos científicos e as fabulações especulativas dependem uns dos outros, e ambos dependem do feminismo especulativo.” Espero contudo fazer esta separação apenas momentaneamente, e com o objetivo de fortalecer laços e ampliar a teia de fabulações que nos rodeiam, abrindo caminhos alternativos para a fruição de diversas formas de existência.

A era do Antropoceno, que Bruno Latour define como um momento no qual a ação humana atingiu dimensões de um fenômeno natural capaz de impactar todas as camadas da Terra,” é marcada por tantas crises que por vezes somos levados a um certo niilismo ou desesperança. Como antídoto a um tempo sem utopias, me junto às várias tentativas de alargar as possibilidades da imaginação. Donna Haraway, ao se referir a este tempo de rupturas, propõe que nossa tarefa é “fazer do Antropoceno um período tão curto e fino quanto possível, enquanto cultivamos uns com os outros de todas as formas possíveis novas épocas capazes de reconstruir refúgios.”

Em uma planeta sem cantos desconhecidos e com fronteiras cada vez mais fechadas, a ideia de refúgio adquire particular importância. Refúgio quando restringem-se cada vez mais os caminhos para aqueles que precisam migrar, para humanos e também para espécies além das humanas.

Em artigo escrito para a primeira edição da revista digital Emergence Magazine, David Abrahms nos conduz em uma fascinante jornada junto com as Borboletas-Monarca, cuja migração tem a particularidade de ser intergeracional, ou seja, são necessárias quatro gerações da espécie para que os quase 8.000 quilômetros entre o norte dos Estados Unidos e o sul do México sejam completados, sendo que a geração responsável por iniciar a jornada costuma viver de 7 a 8 semanas, praticamente o dobro do tempo das três gerações subsequentes.

Para uma jornada desta natureza, o autor sugere, é necessário um fino alinhamento entre as borboletas e os ecosistemas pelos quais elas atravessam, uma conversa que envolve toda a vitalidade da Terra, expressa através de suas correntes de ar, pulsos eletromagnéticos, sensações topográficas e tensões e relaxamentos das pressões atmosféricas e das estações do ano.

Tamanha sensibilidade aponta também para a fragilidade destas relações em tempos de climas tão instáveis. Os animais migratórias são particularmente ameaçados pois sua sobrevivência não depende apenas de um ambiente ou reserva, mas de um longo corredor, com condições propicias para os diferentes estágios da vida das Borboletas-Monarca. Justamente por isso, Donna Haraway escolhe estes animais migratórios como ícone maior de suas fabulas especulativas nas “Histórias de Camille,” que encerram o livro “Staying with the Trouble.”

Antes de falarmos de Camille, de Borboletas-Monarca e de possibilidades de existências diversas no mundo, precisamos falar também sobre parentesco, e sobre a insuficiência dos laços que nos constituem. O mestre budista Ogyen Trinley Dorje, o 17º Karmapa, considerado a reencarnação de uma linhagem de sábios de 900 anos, e por isso mesmo colocado em uma posição particular de ser um jovem de 25 anos e um sábio de 900, observa no livro “O Coração é Nobre” como a interdependência é parte constituinte de todos os seres vivos. Dependemos de outros seres para todas atividades básicas para a manutenção da vida. Alimentar-se, por exemplo, é um processo que envolve os seres que serão nosso alimento, as bactérias habitantes do nosso estômago, e os seres humanos responsáveis pela produção do alimento, pelo transporte e por preparar o que iremos comer, para nomear apenas alguns. Nesta teia interminável de conexões, poderíamos falar também sobre a chuva, sobre o mar, as correntes e árvores que a cultivam, o sol, fonte primária da energia de todos os outros seres e sobre os fungos e microorganismos que contribuem para a fertilidade do solo. A relação é de fato interminável, e cada linha desenrolada traz junto com ela toda uma nova cadeia de relações e parcerias.

Para o jovem líder tibetano, pela interdependência ser marca indissociável da vida, pessoas com valores e ideias individualistas são naturalmente propensas a sofrimento, uma vez que estão abdicando de parte fundamental de si, os outros.

Claro, esta alteridade não é uniforme. Os parentes, por exemplo, são os outros a quem tratamos como parte de nós. Algumas vezes, estendemos esta relação para grupos com os quais compartilhamos alguns valores, seja uma religião, um espaços geográficos determinado ou outras formas de marcar fronteiras, de estabelecer uma separação entre ser e não ser. Mas e se pudéssemos estender estas relações para todos os seres humanos, e para seres além dos humanos? E se essas relações não fossem fixas e determinadas, mas pudessem ser transitórias e mutáveis, acompanhadas da própria fluidez da vida?

As relações não convencionais de parentesco são outra corrente de água a preencher as fábulas especulativas de Donna Haraway. “Meu propósito é fazer ‘parentesco’ significar algo mais ou além do que entidades relacionadas por ancestralidade ou genealogia…criar parentescos alarga a imaginação e pode mudar a história…Eu penso que alargar e recompor parentescos são permitidos pelo fato de que todas as criaturas da terra são parentes no sentido mais profundo.”

A proposta de experimentar estas alternativas relacionais (que envolvam também outras espécies), é diretamente conectada com sua crença de que a recuperação do planeta ainda é possível, mas isto passará necessariamente por alianças entre espécies.

Mas voltemos a Camille. As “História de Camille” são fruto de uma provocação de Isabelle Stengers em um workshop de escrita criativa realizado no verão do hemisfério norte de 2013. Ao contar essa história, crio laços com quem desconhecia e agora reconheço, e deixo soltas as pontas como um convite para outros carregarem também estas histórias, polinizando-as com suas terras e marcas, perturbando pisos sólidos e refazendo a matéria sensível do nosso corpo social.

Camille são várias, e se estendem por séculos, conectando tempos e movendo a existência humana para mais próximo dos tempos da natureza. Como diz Janine Benyous, a natureza mede sucesso por gerações, 10 mil gerações, pelo menos. Para a fabulação especulativa de Haraway, 5 gerações são suficientes, pois já parecem “impossivelmente longas de serem imaginadas florescendo com e para um renovado mundo de múltiplas espécies.”

Camille nasce da palavra, da palavra que brota de um encontro de espécies com terrenos devastados, de espécies dispostas a tecer de novo suas relações entre si e entre a terra viva, em práticas regenerativas a partir do olhar, do olhar em direção às sombras, do olhar para o invisibilizado, do olhar para as formas e gestos que precisam ser compostados. Por isso, Camille nasce como a primeira geração de nativos de um novo tipo de comunidade, os “Compostistas.”

Nas comunidades compostistas, cientes da superpopulação de humanos como uma das causas de nossas crises, o nascimento de uma criança é uma decisão tomada em conjunto pela comunidade, e cada novo nascido, cada nova vida é celebrada como uma preciosidade e uma responsabilidade conjunta. Como nascem menos crianças, os regimes parentais também mudam, e cada criança possui não duas, mas três pessoas responsáveis.

Essa criança nasce também já com laços definidos com uma espécie além da humana, preferencialmente migratória e enfrentando riscos de extinção. No caso de Camille, as Borboletas-Monarca. Na fértil imaginação de Dona Haraway, estes laços são formados também no código genético e no ecosistema corporal. “Modificações corporais são normais entre o ‘povo de Camille;’ e no nascimento, alguns genes e alguns microorganismos do animal simbionte são adicionados à herança corporal da criança simbionte, para que a sensibilidade e as respostas ao mundo do animal possam ser experienciadas de forma mais vivas possível pelo membro humano do time…durante a vida, o humano pode adotar novas modificações corporais para prazer, estética ou trabalho, desde que as modificações tendam para o bem-estar de ambos os simbiontes.”

Os compostistas do grupo de Camille propositadamente escolheram como moradia uma antiga mineradora, em processo de regeneração que começa pela terra, mas se estende às relações e os seres além dos humanos. A escolha é por se colocar dentro do problema, e ali estar, habitar os tempos difíceis que nos cercam. O Eden, aqui, muda de forma. O planeta Terra já não é um paraíso da diversidade, e as utopias agora vivem em solidariedade nas feridas expostas e nos atos incertos e inseguros.

Donna Haraway busca espaços de respiro a partir dos quais se possa tentar começar a gesticular para um outro lugar. Falamos muito mais de um ponto de partida do que de um destino. Estender a imaginação até a porta do caos, um mergulho rumo às impossibilidades. Pensar a partir do terreno do impossível para replantar possibilidades de coabitação.

Este texto propositadamente abre caminhos mas não os percorre, costura linha mas deixa soltas as pontas, em um reconhecimento de que não há fechamento ou hermética possível. Não há ilusão de salvação em escala global, apenas uma tentativa de mover terrenos e esbarrar em fronteiras, e observar o que ocorre se for possível estar em outro lugar.

Mas como um texto escrito dentro de um modelo de saber hegemônico e universal, ele também falha no seu propósito. Falhar repetidamente nos aproxima de becos supostamente sem saída, e também nos convida a refletir sobre estar nestes lugares aparentemente impossíveis. Imaginar a saída de lugares impossíveis, imaginar com o corpo e em parcerias multiespécies para buscar brechas, para produzir ruídos, e com estes ruídos, rupturas. A esta tarefa fomos confiados, a tarefa de caminhar no deserto cientes de que não veremos a terra prometida. Mas ainda assim, caminhar.

Para saber mais

Donna Haraway, Staying with the Trouble

Emergence Magazine

Janine Benyous / The Biomimicry Institute

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