De maneira simples, como se faz um pão? Pesa, mistura, sova (ou não), modela, fermenta (ou não), assa e come. Fotos por Artur Rutkowski, Gaelle Marcel, Jordane Mathieu, Kate Remmer, Nadya Spetnitskaya e Tijana Drinic.

Conversas do Futuro #01: PÃO

8 min readJul 16, 2020

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Não sei em relação à vocês, mas para mim a comida sempre teve um papel bem importante no que diz respeito às reflexões da vida.

Está chateado?
Quer comemorar uma conquista?
Está introspectivo e gostaria de refletir sobre a vida?

Vá para a cozinha. Mesmo que você não saiba exatamente o que fazer, é muito provável que se lembre de algum momento bom que passou lá. Pode ser preparando algo simples, alguma comemoração em família ou descobrindo novas habilidades através de uma experiência gastronômica. A cozinha tem o poder de ser aquele local que guarda histórias, casos e conversas que muitas vezes não seriam possíveis em outro local da casa. É lugar de criação de receitas, de estabelecimento de laços afetivos, de reflexão.
A cozinha é, acima de tudo, um lugar de partilha, de comunhão e de união.

E por que no meio de uma pandemia seria diferente?

Estamos em uma completa situação de exceção, e não sabemos exatamente quando tudo isso vai acabar. O que nos resta fazer, então?
Ir para a cozinha!

De maneira (não tão) surpreendente, nos últimos meses tem cada vez mais gente comprando fermento biológico. Nas redes sociais, por sua vez, existe uma quantidade cada vez maior de pessoas falando sobre como fazer algum produto de panificação. A impressão é de que nunca se fez tanto pão nas casas brasileiras como nestes dias.

E foi nesse contexto que eu descobri que ia acontecer um evento beeem bacana, organizado pelo pessoal do Futuro Refeitório, um restaurante sob o comando das irmãs Gabriela e Karina Barretto em que não há brasa, e reinam pequenos-pratos-mostly-plants.
O “Conversas do Futuro” prentende fazer uma grande costura entre temas como educação e cultura e conectar interesses em comum. Facilitador, convidados e participantes na plataforma online Zoom, abrindo discussões e compartilhando aprendizados de um tema em comum. E, para fechar com chave de ouro, todo o dinheiro arrecadado em cada evento será doado para instituições que almentam comunidades em situação de vulnerabilidade, em especial que mais sofrem pelos efeitos pela pandemia.

A primeira edição aconteceu no dia 07 de julho, e a a conversa girou ao redor do tema PÃO.

Minha história com esse alimento é de longa data: quando ainda estava no Ensino Médio, houve um trabalho durante o ano inteiro cuja missão principal era simular a abertura de uma padaria. Foi nessa época que eu encontrei a receita de pão de menta com chocolate que faço até hoje!
Alguns anos mais tarde, enquanto realizava o curso técnico em Alimentos e Bebidas, surgiu a oportunidade de participar do treinamento para as Olimpíadas do Conhecimento — a maior competição de educação profissional e tecnológica das Américas — na modalidade Panificação. Durante mais de 6 meses, aprendi a fabricar pão francês, bisnaguinha, sonho recheado e tantos outros produtos de panificação, até mesmo o (agora famoso) levain.
Acabei não participando da competição, por motivos que não cabiam apenas a mim. Mas o conhecimento, a prática e a curiosidade sobre o mundo da panificação permaneceu até os dias atuais.

Dito isso, minha vontade de participar da primeira edição do Conversas do Futuro foi algo bem natural. E olha só o time que esteve presente:

A mediação da conversa ficou à cargo da Constance Escobar, autora do blog “Pra Quem Quiser Me Visitar”, do livro “EcoChefs — Parceiros do Agricultor” e idealizadora da Revista Feira, uma “publicação independente sobre comida, os caminhos que ela percorre e as pessoas que se conectam através dela”. Como a última edição da mesma foi sobre panificação, o encontro acabou servindo como uma extensão do que foi discutido na revista.
Toda a renda arrecadada foi doado ao Projeto Vó Tutu, que busca levar alimentos a moradores de rua, distribuindo sopa e pães de excelente qualidade.

Começando pela leitura da crônica “O Padeiro”, de Rubem Braga, Constance introduziu o assunto da invisibilidade do ofício da panificação (no poema, o próprio padeiro, ao entregar o pão na casa das pessoas, grita um sonoro “Não é ninguém, é o padeiro!”) para cerca de 60 pessoas.

O MOVIMENTO DO PÃO CASEIRO

É importante lembrar que nos últimos cinco anos já existe um movimento favorável ao pão caseiro, seja pelo próprio Rafa Brito e a The Slow Bakery — uma das referências nacionais na área — ou pelo excelente trabalho dos Cursos Técnicos em Panificação do Núcleo Avançado de Tecnologia de Alimentos (NATA) — formação da Stefany — o isolamento físico fez com que tudo se acelerasse.
Para a Iza, “houve um trabalho muito intenso em educar o cliente para a importância do pão artesanal”. As mídias sociais, então, mostram-se uma ferramenta fundamental na disseminação do conteúdo de qualidade, seja através de material visual (algo que a Stefany realiza a mais de 2 anos) ou pela escuta (desde o começo da pandemia, o Luiz já gravou mais de 75 episódios de seu podcast “Pão Nosso”).

Aqui, acredito importante salientar que, segundo o próprio Luiz, “esse movimento de fazer pão não atrapalha o movimento da padaria: é uma busca pelo bom pão”. Explico melhor: quando você vai a um restaurante, você não busca comparar aquela refeição com a que você faz na sua casa, certo? Você vai à um restaurante por que gosta de comer lá, usufrui da diversidade presente no ambiente… é uma outra experiência de consumo. O mesmo acontece com o pão. Um pão industrial e um pão caseiro são experiências completamente diferentes.
E essa experiência não é uma modinha. Ainda segundo Luiz, “pão é pra vida”.

Mas afinal, por que houve esse aumento na procura não apenas pelo pão caseiro propriamente dito, mas também por toda o conhecimento por detrás dele?

Aqui, Constance faz uma fala que é central em toda a discussão:

Fazer pão dá concretude à nossa vida, justamente em um momento que não sabemos o que exatamente vai acontecer daqui pra frente.

Mas aí surge um questionamento… muito pertinente, aliás.

COMO DEMOCRATIZAR O ACESSO AO PÃO?

Aqui, Sandrox assume certo protagonismo: seu projeto, o BoulangeRUA, é uma micropadaria old school apaixonada por fermentação natural e busca desmistificar que o pão caseiro é um produto voltado apenas para pessoas mais ricas. Segundo ele, esse não é um sonho tão utópico assim.

A “ditadura do alvéolo” não deveria ser a regra vigente da panificação caseira. Foto por Orlova Maria.

O acesso ao conhecimento sobre panificação pode ser democratizado, e isso, por si só, já é um grande avanço. Existem figuras muito importantes nesse contexto, como por exemplo a nutricionista Neide Rigo, que diz que “não podemos cair na chamada ‘ditadura do alvéolo’ ”.

Luiz é um pouco mais enfático: “Fazer pão pode ser um hobby. No mínimo, vai permitir que você lambuze a mão de propósito, em um momento que há um culto tão grande ao alcool em gel. Sendo um hobby, a gente vai se divertir, vai se entreter. É bem capaz que, em algum momento, a gente erre. Mas tudo bem!”

PERGUNTAS & RESPOSTAS

Com o evento chegando ao seu fim, foi aberta a sessão de perguntas. Como tenho uma sobrinha com pouco mais de 4 anos e acredito que a Educação é a única maneira de transformar uma sociedade a longo prazo, me senti confortável para questionar sobre a existência de algum projeto que envolvia panificação e crianças. O Rafa, então, me contou sobre o “Ateliê das Ideias”, no Rio de Janeiro, “um espaço nada convencional, projetado para a pesquisa e a exploração múltipla da alimentação, com atividades para todas as idades”.

Por fim, mas (com certeza) não menos importante, perguntou-se sobre como a questão negra está inserida na panificação. Aqui, o Val é enfático ao dizer que “é importante contratar e empregar as pessoas que estão à margem da sociedade”.

Em pouco mais de 2 horas de conversa, saí muito inspirado com tudo que foi exposto. Quando a gente ouve tanta gente apaixonada sobre um mesmo assunto, o resultado não poderia ser diferente.

Não é à toa que o pão, esse alimento milenar, é símbolo de partilha da religião com mais seguidores do Ocidente. E também não é à toa que ele também é capaz de nos mostrar que tudo acontece em seu próprio tempo. Se um dia olharmos para o pão da mesma maneira que conduzimos a nossa vida, talvez a gente perceba que, essencialmente, ela pode ser muito mais simples do que imaginamos. Somos todos parte de um grande ciclo.

Dito isso, não poderia terminar esse texto de outra maneira, senão com uma pergunta:

Você já pensou em fazer pão hoje?


Este artigo foi produzido através de uma parceria com o Futuro Refeitório, um lugar em que se pode tomar café da manhã, almoçar e jantar. Nele não há brasa, mas seguem reinantes os pequenos-pratos-mostly-plants.

Diogo Tomaszewski é Técnico em Alimentos & Bebidas e Cientista dos Alimentos em formação, tendo participado ativamente de iniciativas de inovação social como CreativeMorningsSPO, Projeto Rondon e Movimento Choice. Atualmente faz parte dos InconforMAKERS e conversa sobre sistemas alimentares sustentáveis através do Coletivo Da Fome à Gastronomia.

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