Djessyka Dallagassa
3 min readJul 13, 2017

Existem dois tipos de memórias: aquelas que um dia você teve a oportunidade de viver e roubar o maior número de detalhes que a sua mente foi capaz de armazenar; E aquelas que você não viveu, mas que te contaram com tanto carinho que você as abraçou e guardou como se fossem realmente suas. De maneira quase inconsciente, essas duas memórias se entrelaçam e às vezes torna-se misteriosamente difícil separá-las.

Minha avó paterna sempre foi um desses mistérios. Eu não sou capaz de distinguir efetivamente as memórias que eu mesma armazenei e as que foram carinhosamente plantadas em mim através de histórias que me contaram sobre ela. De qualquer forma, me peguei tentando separar quais cenas eu realmente vivi, quais cheiros eu realmente senti, quais memórias eram realmente minhas. E, ainda que sete anos fosse idade suficiente pra que eu tivesse memórias consistentes, infelizmente eu não as tenho.

Eu me recusava beijá-la enquanto ela dizia que iria adotar uma menininha porque queria me deixar com ciúmes e arrancar de mim os beijinhos que tanto pedia. Isso facilmente entrelaça uma explicação sobre um pano azul esticado como se fosse um quadro atrás do fogão a lenha: “ia fazer uma saia, mas não deu certo”.

Neblinas me permitem enxergá-la me entregando sua cestinha de grampos de roupas porque eu gostava de prender um no outro até formar uma linha bem comprida, ao passo que sons também podem ser feitos de neblinas porque sua risada era fácil quando eu imitava uma amiguinha que morava em frente à minha casa. Volta e meia ela pedia: “imita sua amiguinha” e ria, achava tanta graça naquela imitação barata.

Depois, a lembrança escura que tenho é de uma avó já doente, deitada na cama que provavelmente foi do meu pai quando era jovem e morou naquela casa. Dava pra ver uma manchinha no seu couro cabeludo, que antes permanecia escondida pelos cabelos compridos presos no lindo coque que ela costumava usar.

Essas são todas as lembranças que eu tenho sobre minha avó paterna. Depois disso, apenas lembro da minha mãe indo me buscar mais cedo na escola e da professora perguntando se eu havia falado de Jesus pra minha avó. Eu não gostava de demonstrar sentimentos quando era criança, então eu chorei dizendo que eu não queria ter saído mais cedo da escola. Tudo aconteceu pouco depois do dia das crianças porque peguei uma boneca nova com saia de bailarina.

A casa dos meus avós estava estranha porque era noite. Nós costumávamos ir pra lá todo final de semana, mas sempre voltávamos antes de escurecer e, naquele dia, pela primeira vez, eu vi como tudo ficava quando anoitecia. Lembro do barulho dos passos da minha prima nas pedras e de ouvir meu avô chorar e ficar incomodada porque aquele choro era tão forte que parecia uma risada. A última coisa que lembro desse dia é de ficar sentada em um banco de igreja dizendo que aquela não era minha avó, que eu queria voltar pra casa e, pelo cansaço, venci por volta das duas da manhã quando minha mãe resolveu me trazer de volta.

Não fui capaz de roubar mais que isso dos momentos que vivi com ela. Todo o resto pertence ao grupo de memórias que plantaram na minha cabeça, o que não é de todo mal. O grande problema das memórias que nos contam é que elas vêm de fora pra dentro e, apesar de adotá-las e amá-las como se fossem nossas, elas jamais serão. Não posso sequer falar de suas saias e de como ela estava sempre linda porque foram as fotos que me contaram sobre isso.

Eu convivi com a minha avó paterna menos de trinta por cento da minha vida, porcentagem que diminui a cada primeiro de março. De qualquer forma, a mim não foi dada opção de escolher qual trinta por cento dessa vida eu realmente gostaria de ter convivido com ela.