Taxi Driver

Análise fílmica da obra-prima de Martin Scorsese

Dino Lucas Galeazzi
33 min readJun 18, 2017
Após mais de 40 anos de seu lançamento, o personagem vivido por Robert De Niro permanece atual e cativante.

“Taxi Driver” comemorou 40 anos em 2016 e, ao se deparar nesta enésima análise da magnum opus de Martin Scorsese, o leitor tem todo direito de se perguntar: o que mais há de ser dito a respeito desse filme?

A análise a seguir não pretende ser uma voz fora do coro, nem um olhar diferente dos demais.

O objetivo do texto é levantar um questionamento: o que faz de “Taxi Driver” uma obra-prima?

Há algo em Travis Bickle, com seu lento vaguear pelas calçadas de Nova York, que ainda hoje nos encanta. Os ombros caídos, o corpo curvado, o olhar perdido. A câmera de Scorsese, com sua direção emotiva, o segue. Toca um jazz, os metais conduzidos por Herrmann, hora mais leves, hora mais pesados. O personagem de De Niro, encaixotado num táxi amarelo, corre pelas veias de asfalto da cidade, rumo a um banho de sangue.

De repente, o espectador que caminhava ao seu lado, agora está usando seu traje, aquele casaco militar desbotado com o logo da King Kong Company. Ou talvez esteja ainda mais próximo, vestindo sua pele, banhada pelo suor de um tórrido verão nova-iorquino, marcada por cicatrizes de uma guerra perdida.

É uma distância mínima a que nos separa do protagonista.

É uma distância perigosa.

Agora, ofensas e humilhações vividas pelo protagonista perfuram a tela como uma rajada de balas, nos atingindo. Chumbo ardente queimando as entranhas do público: a raiva de Travis é a nossa.

SINOPSE

A história é simples.

Travis Bickle, veterano da guerra do Vietnam, não consegue dormir.

Então, ele decide aproveitar de sua insônia e arruma emprego como motorista de táxi. É um indivíduo solitário e insondável, que costuma matar o tempo indo aos cinemas pornôs, bebendo álcool pelas ruas de Nova York, ou escrevendo cartas aos pais. Desde o começo, ele deixa claro que está buscando um caminho para sua existência, pois, segundo ele, ninguém deve limitar-se a viver num isolamento mórbido, doentio.

Travis encontra sua raison d’être em Betsy, uma jovem mulher que trabalha pelo comitê do senador Charles Palantine: ele a vê como um anjo em meio à podridão da metrópole, uma possibilidade de redenção.

Todavia, devido às estranhezas do protagonista, o laço atado entre os dois é logo desfeito, e Travis se vê rejeitado por Betsy.

É nesse momento que ele conhece Iris, uma prostituta de doze anos apaixonada por um cafetão conhecido como Sport. Ao ver frustradas suas tentativas de resgatar a jovem daquele submundo, Travis decide tomar uma atitude drástica, enquanto a solidão torna-se misantropia e o ódio pela sociedade faz-se violência verdadeira e própria.

PROCESSO CRIATIVO: ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Em Maio de 1972, o patriota Arthur Bremer atirou no candidato presidencial George Wallace, falhando em sua tentativa de homicídio. O fato, além da obvia repercussão midiática, serviu de gatilho para a criatividade do então jovem roteirista Paul Schrader.

Demitido pela AFI, largado pela namorada que o fez divorciar de sua primeira mulher e à beira de um colapso nervoso, Schrader escreveu o roteiro de “Taxi Driver” em apenas dez dias, pondo nas páginas muito de suas experiências pessoais.

De fato, os pontos em comum entre o protagonista do filme e seu criador são vários.

Paul Schrader utiliza-se de suas experiências pessoais para construir roteiro e personagem principal.

Assim como Travis, Schrader também tinha 26 anos e passava boa parte de seus dias dirigindo, trabalhando horas a fio como entregador para uma cadeia de restaurantes.

Os dois vieram do interior dos Estados Unidos para tentar a sorte em grandes metrópoles: um em Nova York, o outro em Los Angeles.

Ambos compartilharam da mesma solidão: morando no apartamento de sua ex-namorada enquanto a mesma estava ausente por alguns meses, Schrader chegava a passar semanas inteiras sem se comunicar com outras pessoas. Sua única diversão eram os cinemas pornôs.

Também há questão das armas: obcecado por pistolas, Schrader só sentava-se para escrever com seu revolver em cima da mesa.

Todavia, o fato do roteiro ser tão intimo, visceral, não significa que nada seja dito a respeito de sua época: nas entrelinhas, entrevê-se a podridão da America da década de ’70.

Travis vagueia por uma Nova York sombria, sobra do alvoroço da Beat Generation, da libertinagem sexual do movimento hippie e da recessão econômica americana pós-Nixon.

O filme começa nos mostrando o vapor exalado por um bueiro de rua, sendo este atravessado, em seguida, por um taxi nova-iorquino, um caixão de metal amarelo que se move em câmera lenta. E não era em caixões de metal que os mortos da guerra do Vietnam retornavam à pátria?

Travis é um veterano; ou melhor, ele está lá para representar os veteranos, a forma como estes foram reinseridos na sociedade: sem auxílio econômico e sem nenhum tipo de acompanhamento psicológico.

Escutamos suas palavras e sabemos que tudo aquilo que ele deseja é ser como as outras pessoas, o que coincide com a decisão de arranjar um emprego humilde, honesto. Assistimos a sua jornada e percebemos que, para o estilo de vida americano, isso é desprezível: ser modesto implica em ser subjugado pelos outros.

Por mais que pense o contrário, Travis não é diferente dos demais; ele também é uma máquina desejante deleuziana. Todavia, para ele, não ter seus desejos satisfeitos gera uma frustração com a qual não sabe lidar.

Isto é uma crítica ao sonho americano, ao mito do self-made man.

Da mesma forma, Schrader condena a facilidade de se obter armas em solo americano, onde chacinas cometidas por indivíduos deprimidos e armados são cada vez mais comuns.

Todavia, a crítica mais feroz contida no filme é aquela que o roteirista direciona a si mesmo e, por conseqüência, aos indivíduos solitários em geral. De principio, Schrader pensou em estar escrevendo, simplesmente, a respeito da solidão, mas ao longo do processo ele se deu conta de estar lidando com a patologia da solidão, que é diferente. Para ele, o jovem solitário sofre pela própria condição, porém, ele mesmo, de forma inconsciente, afasta os outros, sabotando as chances de criar relações afetivas, podendo assim sofrer ainda mais.

A Náusea”, “O Estrangeiro”, “Memórias do Subsolo” e “Crime e Castigo” serviram de referência para a gênese de “Taxi Driver”.

Por último, cabe ressaltar as inspirações literárias por trás de “Taxi Driver”. Desde o princípio, Schrader quis trazer para o cenário americano os heróis atormentados dos romances de Jean-Paul Sartre e de Albert Camus, em particular os de “A Náusea” e de “O Estrangeiro”: o resultado foi um marco da sétima arte, provavelmente o primeiro noir existencialista da história do cinema.

Inúmeros também são os paralelos traçados entre Travis Bickle e o personagem anônimo do romance de Fiódor Dostoiévski em “Memórias do Subsolo”, sobretudo no que diz respeito à narração das duas obras: os voice-overs de Travis remetem à escrita do romancista russo, com seu linguajar comum, simples, utilizado para dar vazão aos pensamentos de um indivíduo obsessivo e deprimido.

Fala-se em Dostoiévski, logo se pensa em Raskólnikov, e, curiosamente, o arco narrativo de “Crime e Castigo” parece ser o oposto ao que nos é apresentado em “Taxi Driver”. No romance do autor russo, Raskólnikov comete o crime logo no começo, redimindo-se somente no final do livro, após inúmeras páginas de tormento. Pelo contrário, no filme de Scorsese, Travis passa o filme todo sofrendo por algum motivo não bem definido, para então, nos últimos minutos, cometer uma chacina e, somente assim, alcançar a catarse.

Nesse contexto, os diários de Arthur Bremer, o patriota, também serviram de inspiração: se para Dostoiévski o homem é um enigma que necessita ser decifrado, as anotações de um indivíduo tão extremo, posto à margem da sociedade, permitiram à Schrader de debruçar-se sobre a alma do ser humano e, mais importante, sobre si mesmo.

UMA ANÁLISE POSSÍVEL: SCORSESE ‘PRESSIONISTA

O vapor sujo exala de um bueiro. Um táxi o atravessa. Corta para os olhos de Robert De Niro, num plano fechado, íntimo e asfixiante: não ficaremos tão próximos de Travis Bickle ao longo de todo o filme. Em seguida, estamos no lugar de Travis, no assento do motorista, e Nova York nos é mostrada através de um vidro molhado, os fios de água que correm pelo pára-brisa diluem os néons da cidade que nunca dorme. Corta para um plano aberto de uma rua anônima. As luzes agora estão explodindo e, enquanto o carro avança, elas deixam seus rastros sobre a noite, uma impressão na retina de quem vê. Estamos na cabeça de Travis.

Sequência de abertura do filme.
De forma sútil, direção e montagem nos levam para dentro da cabeça do protagonista: chegamos a ver a cidade através de seus olhos.

Scorsese nunca foi inocente e sua direção sempre foi perigosa. Em menos de dois minutos de película, o diretor ítalo-americano põe seu público num lugar incômodo, pois em “Taxi Driver” temos uma perspectiva subjetiva, a do protagonista.

O cenário distorcido em “Raskolnikow” denota a confusão mental do protagonista.
A técnica do split-screen em “A Concha e o Clérigo” cria um efeito bizarro no rosto do personagem.

Num artigo em que analisa parte de sua filmografia, o crítico de cinema norte-americano David Bordwell define Scorsese como sendo um diretor ‘Pressionista, pelo fato do mesmo recorrer a artifícios técnico-narrativos que remetem tanto ao Expressionismo Alemão quanto ao Impressionismo Francês. Em ambos os movimentos artísticos, diretores preocupados em transmitir um particular estado mental de algum personagem recorriam a estratégias que internalizavam o que era filmado, tornando seus trabalhos mais subjetivos. Na década de 1920, expressionistas alemães como Robert Wiene e Friedrich Murnau modificavam a mise en scène (cenário, maquiagem, luzes, figurino, etc.) para que os locais de filmagem refletissem o ânimo sombrio dos protagonistas, lá onde franceses impressionistas como Germaine Dulac e Marcel L’Herbier alteravam a imagem captada pela película (através de lentes e filtros incomuns, ângulos inusitados, cenas em slow-motion, mudanças de foco, etc.) na tentativa de recriar a visão do personagem, expressando sentimentos sem recorrer a legendas explicativas.

Pelos olhos de Travis, os pedestres são como espíritos numa Nova York infernal.

Mais precisamente, Bordwell associa o teor expressionista da obra a uma breve cena na introdução do filme, em que os pedestres atravessam a faixa, imersos numa nuvem de vapor: Travis enxerga Nova York como se fosse um inferno na terra, percebendo os cidadãos como fantasmas que deambulam em nuvens de enxofre.

A qualidade mística dada ao vapor das ruas é reforçada ao longo de toda a obra, mas de forma mais contundente na sequência em que Travis Bickle entra num escritório para conseguir emprego como taxista. Ele abre a porta e a fumaça parece correr atrás dele.

O vapor antecede entrada e apresentação do protagonista.
O vapor é um elemento que recorre inúmeras vezes ao longo do filme.
As sombras de “ O Gabinete do Doutor Caligari” são parte de um cenário que denota o estado de anomia da sociedade alemã da época.
A chuva em “Taxi Driver” dilui e espalha as luzes da cidade de Nova York, deformando-a.

A chuva como elemento purificador é outra referência bíblica que toma conta do cenário. Os vidros molhados do táxi distorcem a cidade, da mesma forma que as sombras em “O Gabinete do Doutor Caligari” (1920) embruteciam a cidade de Holstenwall.

De fundamental importância é o prédio em que Iris trabalha como prostituta, lugar em que cafetões e drogados realizam sórdidas fantasias sexuais à custa de uma jovem inocente. Saguão, escadas e corredores, com suas paredes úmidas, banhadas de um amarelo doentio, remetem às vísceras humanas. É como se as ruínas de um castelo shakespeariano tivessem surgido na periferia nova-iorquina, os fantasmas vingativos substituídos por pulsões sexuais.

Exemplos de métodos advindos da linguagem impressionista francesa são o slow-motion (câmera lenta) e o dissolve (dissolvência).

Quando algo mexe com a psique de protagonista, Scorsese opta para dilatar o tempo. Isso serve tanto para enfatizar a beleza angélica de Betsy, haja exemplo da primeira aparição da mulher, como para sublinhar a violência ínsita em certos gestos que incomodam o Travis, como quando alguns de seus “rivais” apontam os dedos para ele, simulando um disparo.

Slow-motion na primeira aparição de Betsy, personagem vivida pela atriz Cybill Shepherd.
O gesto do disparo é repetido ao longo do filme.

Logo após obter o emprego como taxista, Travis caminha abatido pelas ruas. Ele pega uma garrafa de whisky e, ao beber, a cena se dissolve numa outra rodada no mesmo local. O tempo passou, não sabemos se muito ou pouco, mas esse sentimento de perdição nos atinge, o que nos aproxima ainda mais do mood do protagonista.

Cross dissolve transmite sensação de desnorteamento vivida pelo protagonista.

Os filmes da década de 1920 eram mudos, o que limitou os franceses a transmitirem emoções exclusivamente por recursos visuais. No cenário da Nova Hollywood, Scorsese fora um mestre do som, empregando edição e montagem sonora para expandir a linguagem cinematográfica. Ele o demonstra claramente na famosa cena do bar: Travis se distancia da conversa dos colegas para mergulhar em seus pensamentos, um movimento abstrato, interno ao personagem, que o diretor captura numa montagem paralela em que alterna o detalhe de um líquido em efervescência ao rosto perdido do protagonista. O ruído das bolhas explodindo no copo se sobrepõe aos rumores do bar.

Edição e mixagem de som empregadas de forma eficaz — ruído das bolhas sobrepõe-se aos rumores do bar, sugerindo estado de confusão vivenciado pelo protagonista.

Por falar em edição, vale ressaltar a atualização feita por Scorsese no que concerne a montagem soviética. Através de uma edição rítmica, diretores como Dziga Vertov e Serguei Eisenstein puseram de lado a continuidade espaço-temporal, fugindo do realismo, preferindo a esta a realidade fragmentada e multifacetada vivenciada pelos personagens. Em “Taxi Driver”, quando a paranoia de Travis alcança seu auge, a montadora Thelma Schoonmaker optou para repetir uma cena por duas vezes seguidas, como se a película tivesse se embolado: Travis se vira para olhar-se no espelho, diz uma frase, erra, e então faz tudo de novo, em sua busca obsessiva pela perfeição.

Repetição nos gestos, repetição na edição — a obsessão do protagonista afeta a película do filme.

Tanto expressionistas quanto impressionistas, não podendo captar as cores da natureza, ou as de seus cenários, costumavam recorrer a técnicas como a do tingimento ou a da viragem para colorir suas películas. Tais processos podiam servir para tornar uma obra mais realística (o azul da noite, o vermelho do incêndio, o sépia da lembrança, etc.), bem como para relevar o estado psicológico das personagens.

Ao longo de “Taxi Driver”, Scorsese emprega luzes de tonalidade saturada para nos comunicar as emoções vividas pelo protagonista.

Logo no começo, a alternância de cores no plano detalhe do olhar aflito de Travis deixa de ser narrativa realística do espaço urbano para tornar-se puro impressionismo: o sinal fechado tinge o protagonista com o vermelho da paixão e da raiva; o branco de um farol explode em seu rosto para sinalizar sua obsessão para com a limpeza, a pureza; enfim, o azul de algum letreiro luminoso o afoga no tormento de sua solidão.

Três cores diferentes para três sentimentos opostos.

Vermelho. Branco. Azul. Scorsese usa e abusa de cores contrastantes para revelar a confusão mental de Travis, seu ser contraditório.

Num outro momento do filme, Betsy cita a letra de uma música de Kris Kristofferson: “Ele é um profeta e um traficante. Meio verdade, meio ficção, uma contradição”.

Porém, uma cor domina a película: o verde. É o verde do dólar, o verde das lâmpadas dos postes que iluminam a noite, o verde da tinta dos cinemas pornô, o verde dos letreiros de lugares igualmente vulgares. Em suma, é o verde do esgoto que se mescla às ruas. Reflexos esverdeados surgem nos momentos em que Travis há de lidar com passageiros perversos ou que, de certa forma, o enojam.

Conotação negativa da cor verde, aqui associada à morbidez e à depravação.

A psicologia das cores é muito bem aproveitada ao longo de todo o filme. Baste pensar na cena em que Travis, já próximo a enlouquecer, convida Wizard, um colega de trabalho, para bater um papo a respeito de seus pensamentos. A falta de comunicabilidade entre os dois é palpável, e Travis não confessa suas reais intenções, mas o vermelho das luzes que banha os dois corpos nos alerta do perigo.

Cor vermelha empregada como sinal de alerta.

Todavia a direção de Scorsese não se limita em recriar, na tela, os sentimentos vividos pelos personagens. Quando as emoções são silenciosas, íntimas demais, Scorsese chega a invadir a película, e o que vemos são as sensações do diretor. É o que acontece quando Travis liga para Betsy, numa humilhante tentativa de salvar um relacionamento que não teve a chance de existir. O protagonista pergunta sobre as flores que mandou para ela, sobre as ligações que ela não atende.

Nós provamos vergonha por Travis.

Scorsese prova vergonha por Travis.

Então, a câmera desliza para a direita, filmando um corredor vazio em perspectiva grande-angular, excluindo Travis do enquadramento.

Isso é Scorsese indo além das escolas ‘pressionistas do passado, quebrando as regras.

Isso, sim, é direção emotiva.

Scorsese, não suportando a humilhação vivida por Travis, afasta a câmera da cena num ato de empatia.

INTERPRETAÇÕES

A interpretação clássica de “Taxi Driver” é a freudiana, a qual encontra sustentação na fala do próprio Martin Scorsese. Numa entrevista dada ao crítico de cinema Roger Ebert, em 1976, o diretor ítalo-americano afirmou que Travis sofre do complexo Madonna-prostituta: ele não pode ter relacionamentos sexuais com Betsy, a mulher angelical, porque isso a degradaria; da mesma forma, ele não pode relacionar-se com Iris, a mulher prostituta, pois esta, por já estar degradada, não reentraria nos parâmetros de pureza exigidos de uma parceira respeitável.

Nesta perspectiva, tudo está carregado de uma forte conotação sexual.

Travis, portanto, nada mais seria do que um indivíduo castrado. As tomadas subjetivas denunciam sua frustração, uma vez que nos é mostrada uma cidade em plena fermentação sexual, da qual ele se sente excluído: entre uma corrida e outra, Travis observa de relance as calçadas de Nova York, ora desejando as prostitutas à mostra nas esquinas, ora invejando os casais em namoro.

Durante as corridas noturnas, Travis observa Nova York, uma cidade em plena fermentação sexual.

De fato, o taxímetro não acumula o preço do serviço prestado, mas sim tensão sexual. Não é por acaso que planos detalhes do mesmo surgem em momentos em que impera a perversão, como no caso da corrida comprada pelo senhor de colarinho branco acompanhado por uma prostituta, onde um corte repentino para o contador sugere que a tarifa aumenta de acordo com as vulgaridades vomitadas pelos dois no banco de trás.

O taxímetro possui função narrativa específica, aumentando seu valor de acordo com a tensão sexual acumulada pelo protagonista.
Personagem anônimo vivido por Scorsese é de fundamental importância para a compreensão do filme.

Algo idêntico acontece na corrida comprada por um personagem sem nome interpretado pelo Scorsese em pessoa, cena de fundamental importância para a compreensão da obra.

O passageiro anônimo pede a Travis para estacionar de frente a um prédio, onde, segundo ele, sua esposa o estaria traindo. O taxista tenta encerrar a viagem parando o taxímetro, mas o sujeito lhe diz para deixá-lo rodar, pois não se incomodaria em pagar um preço mais alto. A luz esverdeada dos postes denuncia a morbidez do personagem. A tensão sexual aumenta junto ao preço da passagem. Após apontar para a janela em que aparece a silueta da mulher em contraluz, o passageiro revela suas reais intenções: matar a esposa com uma .44 Magnum.

A cena começa do nada e termina no nada.

Logo depois, nosso taxista reencontra Iris. Ele a segue por um trecho de rua. Assustada, a prostituta busca proteção na companhia de um jovem. Travis limita-se a observá-la, o rosto insondável, e então dá a partida e se afasta em alta velocidade, os pneus gritando contra o asfalto.

Reação abrupta por parte de Travis diz respeito seus sentimentos de ciúme para com Iris.

Devemos nos surpreender se, na seqüência sucessiva, Travis decide comprar, justamente, uma .44 Magnum?

A arma, enquanto substituto fálico, servirá para cumprir a vingança do homem contra as mulheres que o rejeitaram. Ou melhor, contra os homens que estão por trás desta rejeição: Palantine e Sport.

Armas enquanto substitutos fálicos.

Travis conta a si mesmo uma mentira, uma história na qual duas mulheres precisam ser salvas por ele, quando, na verdade, sua explosão de violência nada mais é do que uma tentativa de reconquistar sua potência sexual.

O personagem vivido por Scorsese, mais que um fio solto, serve como fio condutor para uma possível leitura da obra, pois ele, em seu desespero, pelo menos diz a verdade.

CONTRADIÇÕES

O traço característico do protagonista é seu ser uma contradição constante: pensamentos, escolhas, gestos, ações, em suma, tudo em Travis há de lidar com seu respectivo oposto.

Para cada Betsy, há uma Iris. Para cada Palantine, há um Sport. Para cada dia tórrido, há uma noite úmida. Para cada diálogo superficial sobre política, há um discurso imoral sobre sexo e violência.

Vale ressaltar que a dualidade de sentimentos vividos por seus protagonistas é um marco na filmografia do Scorsese, desde sempre interessado em indivíduos divididos entre o bem e o mal, a redenção e o pecado.

Em “A Última Tentação de Cristo”, assim como em “Caminhos Perigosos”, temos exemplos clássicos de personagens scorsesianos.

Com base nisso, um ponto de partida ideal para a compreensão de “Taxi Driver” é a percepção daqueles elementos narrativos que se repetem de forma dualística, adquirindo assim um segundo significado.

Em particular, trataremos aqui dos contrastes e das oposições perceptíveis nos encontros de Travis com as duas mulheres, na forma como são mostrados os dois rivais e, também, no utilizo dos overhead shots (tomadas zenitais).

TEVÊ & ALIENAÇÃO

Comecemos por Travis. De que nosso herói seja um indivíduo solitário, não temos dúvidas, pois sua incapacidade de se relacionar com o próximo é ressaltada de cena em cena. Dificilmente nos distanciamos dele, acompanhando-o passo a passo, vendo seus sentimentos negativos assumirem as feições grotescas da misantropia.

Eis um detalhe interessante: em quase duas horas de filme, duas são as sequências em que Travis não aparece, estando localizado fora do local da ação.

É o caso em que nos são apresentados, pela primeira vez, Betsy e seu colega de trabalho Tom, quando a primeira pede ao segundo para afastar um motorista que os observa de longe, de dentro de seu taxi, pois a mesma sente-se constrangida: logo após um jump cut, descobrimos que se trata de Travis.

Jump cut nos revela a presença de Travis — o corte é direto.

Algo parecido acontece quando vemos Sport manipular Iris para que esta não fuja de Nova York: dessa vez, Scorsese recorre a um lento cross dissolve, passando de uma panorâmica vertical em Travis, para outra, no sentido oposto, da fachada do prédio em que ocorrerá a chacina final, sugerindo que o diálogo entre os dois, na intimidade do quarto, seja uma fantasia criada pelo próprio protagonista.

Cross dissolve nos leva para dentro do quarto de Iris —o corte é fluido .

Corte seco por um lado, dissolvência pelo outro. A edição é diferente porque as realidades apresentadas são opostas: Betsy é uma engrenagem do mecanismo politico; Iris é uma válvula de escape para pulsões nefandas.

A própria montagem do filme, portanto, parece nos dizer que, para Travis, afastar-se de Betsy para aproximar-se de Iris, implica num maior distanciamento da realidade.

Quadros menores dentro do quadro cinematográfico revelam a alienação vivida pelo protagonista: para Travis, a realidade é um programa de TV do qual ele se sente excluído.

De fato, um dos méritos do diretor reside na sua capacidade de sublinhar, na maioria das cenas, a alienação de Travis, sugerindo que a mesma surge a partir da presença constante da televisão em seu dia-a-dia, levando-o a perceber a vida como uma extensão da tele-realidade.

Essa tese é sustentada não tanto pelas sequências em que é envolvida uma televisão física, real, mas sim pela enorme quantidade de quadros menores que se criam dentro do quadro fílmico, isto é, telas da vida contidas na telona do cinema. Pensemos nos espelhos retrovisores que refletem a essência dos passageiros de Travis, por ele vistos como inimigos; nos vidros do carro, que, quando fechados e molhados de chuva, fazem de Nova York uma pintura impressionista, e, quando abaixados, capturam frames de uma cidade degradada, como num documentário urbano; também, nos clientes que são emoldurados num primeiro plano pelos vidros divisórios que os separam do motorista; enfim, no tambor aberto de um revolver que permite enquadrar o olho de um taxista.

Fugindo das abstrações, temos os gestos concretos do protagonista, quando o mesmo faz de seus dedos uma arma para atirar nos atores de um filme pornô, ou quando destrói o velho tubo catódico no ápice de uma cena piegas de telenovela. Tudo isso ocorre pouco antes da matança final, quando a serem calados para sempre serão os indivíduos marginalizados da metrópole, e não os personagens de um aparelho eletrônico.

Para o protagonista, a existência nada mais é do que uma extensão da tele-realidade. Portanto, a destruição de sua tevê anuncia o massacre final do filme.

Que seja em casa ou no táxi, Travis carrega consigo a tevê e seus simulacros da realidade, relevando uma crítica sutil, mas contundente, a uma mídia que, na época, ditava as regras da sociedade.

BETSY & IRIS

Travis convida Betsy para tomar um café à tarde.

Num plano conjunto dos dois à mesa, Travis está à esquerda, Betsy à direita.

Os dois falam de trabalho e eleições, de como Tom parece faltar de respeito para com Betsy, de pessoas em sintonia e de quão belos são os olhos de Betsy.

Durante a conversa, alternam-se primeiros planos dos dois atores. Quando é enquadrado Travis, o vemos centralizado e sozinho, sem a presença de sua presa; quando é enquadrada Betsy, as intenções do protagonista se tornam claras, pois vemos uma parte de seu rosto invadindo um lado do enquadramento, como que na tentativa de criar um laço para entrar em sua vida.

Travis é confiante, deixa entender o quão ele a respeita e admira. Há um momento de silêncio. Em seguida, ele a convida para um cinema.

A esse ponto, Betsy, lisonjeada, aceita. Ao ser enquadrado novamente Travis, percebemos que este conseguiu o que queria, pois, num canto da tela, aparecem os cabelos loiros de Betsy.

Construção da cena do primeiro encontro entre Travis e Betsy aponta para as reais intenções do protagonista: Travis invade o enquadramento de Betsy, o que demonstra sua tentativa de conquistá-la. Uma vez que Betsy aparece no primeiro plano de Travis, entende-se que o protagonista conseguiu o que queria.

Com Iris, a situação é invertida.

Também nesse caso começamos com um plano conjunto dos dois à mesa, num outro café, mas quem está à esquerda, dessa vez, é Iris, e Travis está à direita.

Alternam-se planos e contra-planos dos dois, com Travis invadindo o primeiro plano de Iris, numa longa e desgastante tentativa de resgatá-la daquele submundo, que termina sem sucesso. Iris ri, não o leva a sério, chegando a falar de astrologia.

Ela lhe faz a proposta de irem morar numa comuna. Ele não aceita, pois o lugar lhe parece sujo. Logo depois, encerra-se a conversa.

Iris não invadiu o enquadramento por não ter se deixado levar pela conversa com Travis.

Diálogo entre Travis e Iris é construído de tal forma que logo percebe-se o distanciamento entre os dois personagens. Travis tenta aproximar-se e, portanto, o vemos invadindo o primeiro plano de Iris. Pelo contrário, Iris se mantém distante, não aparecendo no enquadramento de Travis.

A este ponto, talvez seja importante lembrar um trecho de um parágrafo, extraído de um artigo em que Roger Ebert discorre sobre alguns padrões que se repetem nos filmes: “Não são [regras] absolutas. Mas, em termos gerais, em um plano conjunto duplo, quem está à direita parece dominar quem está à esquerda”.

O encontro com Betsy, antes, e o encontro com Iris, depois, considerados singularmente, pouco nos dizem a respeito dos pensamentos de Travis, falando mais de sua necessidade de relacionar-se com essas mulheres. Todavia, os mesmos diálogos, analisados juntamente, além de nos mostrarem a lógica perversa por trás das ações do protagonista, apontam para o verdadeiro significado da obra: enquanto ser social, Travis é subjugado pela dupla Palantine e Betsy, lá onde sente-se superior ao casal Sport e Iris, que são economicamente desprezíveis.

Outros paralelos reforçam tais conceitos.

Quando assiste às sessões pornográficas sozinho, Travis é o único personagem a estar em foco, dentre os dos demais espectadores. Com Betsy, isto muda: ela sai do cinema constrangida e nós sentimos a vergonha da situação porque o restante do publico está presente, ou melhor, em foco.

Quando Travis vai ao cinema pornô sozinho, o restante do público em sala está desfocado. Quando acompanhado por Betsy, os demais espectadores estão em foco. Um mesmo ambiente filmado de duas formas diferentes. Esta estratégia, além de intensificar a sensação de vergonha do momento, deixa claro que Betsy não pertence àquele lugar: o branco de seu vestido destoa na sala de cinema, onde as cores dominantes são o vermelho e o preto.

Betsy reforça a inserção de Travis num meio social, ao repudiar sua perversão.

Da mesma forma, ao levar Betsy para um cinema pornô, Travis abre-lhe uma janela para aquele universo marginalizado que ele tanto despreza, mas do qual não consegue se livrar, mostrando-lhe uma parte de sua natureza que não é bem vista pela sociedade.

Ao tentar arrancar Iris daquele submundo, ele mente, diz que seu trabalho de taxista é um bico, uma cobertura para um emprego secreto no governo, suma da sociedade polida e organizada que o domina, da qual também sente-se excluído.

PALANTINE & SPORT

No final do filme, Travis mata Sport e seus capangas, mas nem sequer dá um tiro em Palantine.

O que isso significa?

Afinal, quem são esses dois sujeitos?

Charles Palantine é um político candidato à presidência dos Estados Unidos, o que faz dele uma das pessoas mais poderosas do mundo, alguém contra o qual não se pode competir e que, por este motivo, Travis o considera a causa de todos seus males. Matthew, conhecido como Sport, é um cafetão vulgar e violento, economicamente marginalizado e, portanto, segundo uma lógica capitalística, humanamente descartável.

Ao longo do filme, a disposição desses dois personagens no espaço fílmico reforça a superioridade do primeiro em comparação ao segundo.

A superioridade de Palantine é revelada antes mesmo de ele aparecer fisicamente. Haja exemplo da cena em que Travis convida Betsy para um café: ambos estão cercados por cartazes do político. Quando Betsy sai do trabalho, o sobrenome Palantine paira em caixa-alta acima do casal, que, curiosamente, está indo para um local chamado Charles Café.

Mesmo estando fisicamente ausente, a figura de Charles Palantine demarca o primeiro encontro do casal através de cartazes, banners, panfletos, etc.

Na hora do seu último discurso, durante o dia do atentado, a disparidade entre Palantine e Travis é gritante: o político, no púlpito, é filmado por baixo, um ângulo que enaltece sua figura e sua oratória, e, quando visto do alto, uma estatua religiosa desenha linhas de forças que engrandecem seus gestos; Travis, no meio da plebe, é um rosto na multidão e, se por um lado destaca-se por cores e figurino, pelo outro é diminuído pelo ângulo da câmera.

A forma como Scorsese decide filmar os dois rivais define a disparidade existente entre eles.

Após a tentativa frustrada de se relacionar com Betsy, panfletos da campanha política de Palantine são afixos pelas paredes do apartamento de Travis, cercando-o, encurralando-o.

Propagandas do político parecem perseguir o protagonista.

Pelo contrário, o poder de Sport é limitado à esfera sexual, ao seu controle sobre Iris, e isso é ressaltado pela posição que ele ocupa no cenário, quase sempre circunscrito a algum espaço geométrico definido, seja este traçado por portas, janelas, etc.

O corpo do personagem Sport, vivido por Harvey Keitel, costuma aparecer circunscrito a algum espaço geométrico fechado, como vãos de janelas ou batentes de portas. Esta escolha delimita os movimentos do personagem, bem como reduz sua força: apesar da agressividade sexual, ele é economicamente risível.

Mais interessante é observar como ambos se mostram ao protagonista pela primeira vez.

Após o enésimo passageiro da noite, Travis oferece seus serviços ao senador Palantine, escoltado por um guarda-costas e pelo seu assessor.

O primeiro olha no espelho retrovisor e elogia a campanha do segundo. O segundo olha no espelho retrovisor e elogia o trabalho do primeiro.

Ambos mentem. Os enquadramentos sublinham a distância entre os dois: no plano, Travis está sozinho, e seu rival, quando não está fora do quadro, está desfocado no segundo plano; no contra-plano, Palantine está acompanhado pelos colegas de trabalho.

Num plano conjunto em que aparecem os quatro personagens, os vidros divisórios do táxi parecem emoldurar o taxista num quadro, e o político e seu assessor em outro.

Montagem e direção acentuam o conflito entre Travis e Palantine. Nos planos, Travis está sozinho; nos contra-planos, Palantine está acompanhado. Nos planos conjuntos dos dois, a desvantagem do primeiro para com o segundo torna-se gritante.
Mise en scène e enquadramento inferiorizam Travis diante de Palantine.

Duas realidades separadas.

Duas instâncias psíquicas separadas.

A corrida termina e os politiqueiros deixam Travis ficar com o troco. Palantine aparece na janela ao lado do motorista para encerrar a transação com um aperto de mão. O enquadramento revela quem domina a cena, pondo o candidato à presidência em alto à direita.

“Direita é mais positivo, esquerda é mais negativo” dizia Ebert. “A parte superior é dominante sobre a inferior”, complementava.

Na mesma noite, numa outra corrida, Travis conhece Iris. Ele a vê subir no táxi, desesperada, para ser agarrada pelo cafetão. Um travelling acompanha os gestos abruptos de Sport. Então, o mesmo joga uma nota amassada no banco do passageiro. Corta para Travis, filmado em contra-plongée. Corta para a nota, filmada em plongée. Agora, a dominar a cena, é Travis.

Plongée da nota amassada diminui o valor da mesma. Contra-plongée do protagonista sublinha sua superioridade.

Travis guardará a nota amassada consigo como se faz com uma mágoa. Ele se livrará dela na hora de pagar pelo aluguel do quarto de Iris, cobrado por um indivíduo nojento e sem nome.

A nota amassada retorna ao lugar de onde veio. Apesar da frustração sexual, o desprezo no rosto do protagonista revela que este sente-se superior à vulgaridade do meio social ao qual Iris pertence.
Duas cenas rodadas no mesmo cenário e com o mesmo ângulo de câmera, mas em momentos diferentes, revelam situações opostas.

Ao descer as escadas, visto por uma lente grande-angular, Travis parece inferiorizado pelo sujeito.

Na hora da chacina, quando tudo será posto em “ordem”, Travis estará no topo da escada, acima do sujeito.

A comparação de cenas opostas como as citadas, tão próximas por significação e tão distantes por cronologia, desvendam as relações de poder que estão por trás de cada ação do nosso herói: sua jornada conclui-se na tentativa dele de reafirmar sua potência sexual, aqui sublimada em uma chacina.

Mantendo a perspectiva psicanalítica, percebemos que Travis é um ego atormentado, em busca do equilíbrio entre as pulsões do id e as prescrições do superego. Este representado pela fachada ética de Palantine e Betsy, aquele pelo submundo perverso ao qual pertencem Sport e Iris.

ENTRE FREUD E MARX

Dentre os inúmeros artifícios técnico-narrativos utilizados por Scorsese em “Taxi Driver”, talvez o mais interessante seja aquele representado pelo conjunto de overhead shots. Apesar de serem poucas, as tomadas zenitais, pelo simples fato de acontecerem em momentos específicos, permitem uma leitura alegórica da obra.

Incluindo o overhead tracking shot final, os plongée absolutos que analisaremos são cinco. Por si só, cada um deles não se passaria de um deleite estético, um barroquismo scorsesiano. Mas no conjunto, através da repetição, essas tomadas adquirem uma nova significação.

Overhead shots ocorrem em momentos nevrálgicos, introduzindo um olhar objetivo num filme essencialmente subjetivo: através destas tomadas particulares, percebe-se a inserção de Travis num sistema opressor e degradante.

Temos o primeiro overhead shot quando Travis assina o contrato de trabalho como taxista; o segundo quando ele, após ser rejeitado pela mulher da bilheteria de um cinema pornô, paga para assistir a uma sessão; o terceiro quando ele faz um gesto por cima da escrivaninha que o separa de Betsy; o quarto quando ele, graças ao dinheiro acumulado até então, compra as armas de fogo para resolver seus problemas; o quinto e último quando, após o massacre, a câmera plana por cima das manchas de sangue e das pistolas.

Uma leitura marxista revela o sub-texto econômico desse tipo de enquadramento: temos a assinatura de um contrato social, que condena Travis a uma existência em comunidade, com todos os efeitos colaterais que isso acarreta; uma tentativa de relacionamento afetivo, que deve fazer espaço ao mais corriqueiro relacionamento econômico; uma escrivaninha num ambiente político, quase a sublinhar a discrepância social entre duas pessoas; a compra da solução de todos os problemas; o resultado objetivo deste processo sócio-econômico.

Para o diretor Martin Scorsese, filmes são como sonhos ou devaneios induzidos por drogas.

Frente essa visão, ecoa a fala do passageiro anônimo interpretado por Scorsese: “Você me acha louco? Não precisa responder. Estou pagando a corrida”. Risadas. As palavras soam como uma violenta crítica social: numa America em que tudo há um preço, o dinheiro, na quantidade correta, pode comprar qualquer coisa, de uma corrida de táxi ao silêncio do próprio taxista.

O spree killing final encontra sua justificativa tanto numa leitura psicanalítica quanto numa sócio-econômica.

Muitos críticos costumam descrever a derradeira matança do filme como uma descida ao inferno, quando seria mais correto falar em uma subida: os degraus levam o herói a um patamar superior, onde estão localizados tanto o superego quanto a ideologia capitalista, que são supraestruturas psicossociais.

Para os freudianos, o massacre é a explosão daquela tensão sexual acumulada ao longo do filme. Castrado, não podendo dar vazão aos impulsos, Travis opta para sufocá-los.

O falo é substituído pelas armas, os gritos de terror tomam o lugar dos gemidos de prazer e a única troca de fluidos corpóreos permitida é o derrame de sangue.

No documentário televisivo de Richard Schickel, “Scorsese on Scorsese” (2004), o diretor admite que parte da obra surgiu da ideia de que, para ele, os filmes são como sonhos ou devaneios induzidos por drogas: “Taxi Driver” deixa o espectador num limbo, entre o sono e a vigília.

O massacre é um pesadelo, o momento de o inconsciente lidar com as frustrações da realidade.

Em sua conotação simbólica, Betsy, enquanto superego severo e coercitivo, rejeita o lado perverso de Travis, aquele que vem à tona à noite. Iris, representação luxuriosa das pulsões do id, recusa sair de seu submundo, de voltar à casa dos pais para subjugar-se às vontades da autoridade.

Nesse impasse, o taxista/ o veterano/ o ego decide obedecer ao superego.

O percurso traçado por Travis pelas ruas de Nova York nos leva a um lugar, a uma conclusão: mais fácil que negar-se a obedecer a uma ordem é reprimir as próprias pulsões.

O filósofo esloveno Slavoj Žižek compara a chacina de Anders Breivik em Oslo ao massacre final em “Taxi Driver”.

Para os marxistas, em assonância com o discurso do filosofo Slavoj Žižek no documentário “The Pervert’s Guide to Ideology” (2012), a chacina é o resultado da impenetrabilidade e confusão do capital global.

O verdadeiro choque, para Travis, não é o ser rejeitado por Iris porque sexualmente impotente, mas a ideia de que Iris, talvez, não queira ser salva: Iris foge à lógica capitalística à qual ele está preso.

À perspectiva de uma melhor condição econômica, Iris prefere viver em seu mundo marginalizado e violento.

Para Travis isso é inadmissível, ilógico.

“Violência nunca é só violência abstrata,” afirma Žižek. “É um tipo de intervenção brutal no real, para encobrir certa impotência no que tange ao que podemos chamar de mapeamento cognitivo”.

Daí o mass murder final.

Daí o gesto emblemático de usar os dedos como revolver e simular um tiro na cabeça, algo extremamente simbólico: Travis não quer matar a si mesmo, mas liberar-se da ideologia à qual está preso.

A última tomada era a única prevista no roteiro. Schrader usou o termo God’s Eye (olho de Deus) para descrevê-la.

Um deus que tudo vê e condena.

Cabe ao espectador decidir de qual deus estamos falando: afinal, quem subjuga Travis é sua própria psique ou a sociedade a qual ele pertence?

UMA PÁGINA ALEATÓRIA

Alguém pode contestar.

Alguém pode dizer que tudo isto seja devaneio, que esta análise não se sustenta em nada a não ser num monte de coisas aleatórias que foram coletadas e organizadas para assim reforçar um discurso pessoal.

Scorsese, ao dirigir, pensava em Freud?

Schrader, ao escrever, pensava em Marx?

As pessoas precisam de fatos objetivos, não de impressões subjetivas. E isso é importante.

De fato, não tenho como comprovar o que escrevi. Infelizmente, não posso ligar para diretor e roteirista e exigir deles uma explicação racional por trás de cada escolha aparentemente intuitiva.

A essas perguntas posso responder somente através de outra pergunta: pode isso ser aleatório?

Peguem uma versão do filme que dure uma hora, cinqüenta e três minutos, quarenta e oito segundos.

Agora, congelem o filme no nono minuto e no trigésimo sétimo segundo.

Título da matéria de uma revista sugere uma possível leitura do filme.

É a segunda tomada zenital do filme, aquela em que Travis compra café e jujubas num cinema pornô. Ele acabou de ser rejeitado pela moça da bilheteria.

Pensem que este filme custou mais de um milhão de dólares para ser feito.

Pensem nas centenas de pessoas envolvidas nesse projeto, o esforço de cada um convergindo no mesmo objetivo: fazer um bom filme.

Cada plano fora previamente pensado, estudado.

Cada plano fora o resultado de um trabalho coletivo.

Agora, leiam o nome da matéria da revista: […] spend your money affects your sex life.

Dinheiro influenciando o sexo, ou vice-versa.

A revista podia muito bem não estar lá. Porém, aquelas centenas de pessoas envolvidas optaram em preencher a cena com esta revista específica, as páginas abertas nesta matéria específica, os objetos dispostos de tal forma para que este título específico continuasse legível.

Repito: pode isso ser aleatório?

A ÚLTIMA NOTA

Ao final desta análise, não podia deixar de falar a respeito da trilha sonora do filme, parto do incrível compositor Bernard Herrmann.

O score do filme é o que torna “Taxi Driver” uma obra completa, deleite tanto para os olhos quanto para os ouvidos.

Qualquer pessoa pode assistir “Taxi Driver”, mas somente quem o vê na telona pode, de fato, senti-lo. Na sala de cinema, sentados em nossa poltrona, somos atingidos por um naipe de metais dissonantes, tão bem orquestrados por um mestre que chegava no auge de uma carreira formidável, mas que vivia à sombra de uma doença em fase terminal.

Por ironia do destino, Herrmann não queria gravar uma trilha para um diretor ainda pouco conhecido, como o era então Scorsese. “Eu não escrevo música para filmes de carro”, chegou a dizer à esposa, e, mesmo tendo aceitado o trabalho após a leitura do roteiro, continuou relutante em pôr seu nome numa obra tão violenta.

E violento é um termo que bem descreve o resultado de seu trabalho.

Comecemos com aquele rufar de tambores que introduzem Travis, ritmo acelerado e notas duras, talvez um resíduo do período militar, para então nos chocarmos com um timbre languido, o tema de Betsy e Iris, agora seguindo um tempo mais espaçado, docemente cadenciado.

Isso é contraste. Isso é improvisação. Isso é jazz.

Não há espaço para arcos no inferno nova-iorquino. Travis é impulso, é violência, é músculos, sua rotina só podia ser pontuada por sopros, lábios presos aos instrumentos.

Após as primeiras gravações, Scorsese pede para Herrmann uma única nota musical a mais, pois precisa de um acorde que destoe dos demais, que seja assustador.

É o 22 de Dezembro de 1975.

Herrmann reúne a orquestra de estúdio para mais um dia de trabalho e cria aquele único efeito.

É o 23 de Dezembro de 1975.

Na manhã do dia seguinte, na véspera de Natal, Herrmann morre. Ele deixou um legado que abrange trinta dos melhores anos da história do cinema, indo 1941, com “Cidadão Kane” de Orson Welles, passando pelas filmografias ilustres de Alfred Hitchcock, François Truffaut e Brian De Palma, dentre outros.

“Taxi Driver” é dedicado à sua memória.

Martin Scorsese dedicou “Taxi Driver” à memória do compositor Bernard Herrmann.

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