Por que ler Piquenique na Estrada?

Aleph
5 min readDec 15, 2017

Por Cláudia Fusco*

Reconhecidos, hoje, como dois dos maiores autores de ficção científica soviética, os irmãos Arkádi e Boris Strugátski percorreram um longo caminho até Piquenique na Estrada. Mas para entendermos a influência e importância desses escritores, é preciso conhecer um pouco mais sobre a tradição dos países soviéticos no gênero, que foi enormemente influenciada pelo regime político vigente no século XX.

Os irmãos Strugátski

Após a chegada de Lênin ao poder, a incipiente ficção científica utópica se tornou uma ferramenta de propagação de ideias positivas sobre o regime soviético. Foi na década de 1920 que o gênero teve um boom, motivado pelo próprio Lênin, e se espalhou pela União Soviética de maneira assombrosa. À época, um dos autores mais influentes do gênero era Alexei Tolstoi, que com sua obra Aelita, ou O Declínio de Marte, plantou uma semente sobre fantasias marxistas alienígenas, que foram produzidas à exaustão por autores que o seguiriam. Muitas das obras produzidas nesse tempo são consideradas, hoje, inferiores pelos estudiosos do gênero, uma vez que são despidas de crítica ou afronta ao sistema.

Contudo, nem tudo eram flores na produção sistemática de ficção científica que enaltecesse o regime. Com Nós, Ievguêni Zamiátin expôs de maneira clara o processo de mecanização da humanidade e como isso era perigosamente próximo da política soviética, embora negasse fervorosamente que seu trabalho fizesse críticas ao regime. De acordo com o autor, tratava-se de uma crítica geral ao curso que a humanidade vinha tomando, mas mesmo assim não convenceu seus líderes. Zamiátin morreu sem nunca ver sua obra mais famosa, hoje aclamada e considerada importantíssima nos estudos distópicos, ser publicada no próprio país, embora Nós corresse de mão em mão de forma não autorizada e não oficial. Zamiátin é considerado, até hoje, o grande divisor de águas na literatura distópica soviética.

A chegada de Stalin ao poder, no final dos anos 1920, influenciou novamente o curso da ficção científica soviética, que se tornou ainda mais restritiva. Foi conhecida como a “Era das Trevas” do gênero, uma vez que inúmeros autores de utopias foram presos e executados. O que incomodava Stalin, acima de tudo, era a abertura que a ficção dava ao experimento social, ainda que de forma otimista e elogiosa ao regime. Por décadas, o ditador implantou a “literatura realista” como ficção oficial da União Soviética, que tinha propósitos educativos. Foi somente após sua morte, em 1954, que a FC ganhou forma novamente. Conquistas na ciência, como o lançamento da Sputnik em 1958, reacenderam o gênero de otimismo e expectativa com o futuro. Ivan Yefremov, um dos autores mais influentes desta corrente, inspira autores de todas as idades a seguirem seu caminho. Inclusive os irmãos Strugátski.

No início da carreira, Arkádi e Boris tinham uma missão ousada, de acordo com a pesquisadora russa Yulia Kulikova, que estudou a contribuição dos Strugátski em seu mestrado: “resgatar a visão de uma utopia socialista da distância monumental onde o culto a Stalin a havia colocado, e trazê-la de volta a uma escala humana”. Os irmãos não poderiam ser mais diferentes: Arkádi era formado em tradução técnica e era fluente em japonês e inglês; Boris, oito anos mais novo, havia concluído recentemente seus estudos em Matemática em São Petesburgo, embora também trabalhasse como astrofísico. Juntos, deram continuação ao trabalho de Yefremov, embora trouxessem mais camadas de pensamento e intenção do que seu tutor. Seus livros circulavam entre espaços de debate. Os irmãos queriam que todos pensassem junto com eles e questionassem o mundo em que viviam.

Foi o refinamento contínuo dessas habilidades e ideias que afastou os Strugátski cada vez mais da literatura utópica e otimista. Seus trabalhos, que em geral são divididos em três grandes ondas de estilo, tornavam-se cada vez mais irônicos e questionadores. Nas primeiras obras deles nos anos 1950, já era possível identificar ironia e satirização da burocracia soviética; em Piquenique, que marca o início da onda distópica dos dois irmãos, todo tipo de elemento soviético é passível de crítica.

A trama de Piquenique acompanha diversas fases da vida de Redrick “Red” Schuhart, um stalker que coleta, ilegalmente, estranhos objetos deixados na Terra após uma invasão alienígena. Embora não tenham feito nenhuma tentativa de comunicação, os extraterrestres deixaram para trás vários tesouros incalculáveis, que pouco a pouco mostram sua serventia; alguns são até venenos terríveis, capazes de destruir e alterar a vida humana por gerações.

Na obra, podemos enxergar nitidamente a crítica mais ousada dos irmãos russos: a ideia de uma instituição que, por fora, parece perfeita, mas está ruindo e descontrolada por dentro. Como diz Kulikova, o texto mostra que “a ciência nem sempre é uma panaceia para as moléstias da humanidade”, e também aponta diretamente para a dureza da polícia, em referência clara à KGB.

Se hoje, os irmãos Strugátski, ambos já falecidos, permanecem como grandes nomes (senão os maiores) da ficção científica soviética, é porque confrontaram a tradição politicamente endurecida do gênero. No posfácio de Boris, presente nesta edição recém-lançada da Aleph, acompanhamos um pouco dos processos extremamente burocráticos da publicação do livro; foram oito anos de trocas de cartas, documentos e pedidos urgentes, do menor ao maior escalão da URSS, para que seus textos fossem finalmente disponibilizados — ainda que Piquenique tivesse passado por mais de duzentas edições de texto.

Mas a luta valeu a pena. Como Ursula K. Le Guin diz no brilhante prefácio que abre a edição, um dos grandes méritos dos irmãos ABS, como chamavam a si próprios, foi “escrever como se fossem indiferentes à ideologia […]. Eles escreviam como homens livres escrevem”.

Mais do que isso, suas obras foram também uma porta de entrada a uma consolidação da ficção científica que não era reverente, nem educativa ou imbuída de propósitos institucionais; simplesmente faziam um corajoso e ousado convite a seus leitores, como toda boa ficção científica: pensem por si próprios.

Piquenique na Estrada
Arkádi e Boris Strugátski
Tradutora: Tatiana Larkina
Preço: R$ 44,90
320 páginas
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*Cláudia Fusco é jornalista e mestre em Science Fiction Studies pela Universidade de Liverpool, Inglaterra. Já ministrou aulas na USP, Casa do Saber, Youpix e Museu da Imagem e do Som (MIS).

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