“Me parece mais interessante pensar na poesia não como uma forma de ver o mundo, mas enquanto uma maneira de questioná-lo” — entrevista com Júlia Zuza

editora Urutau
5 min readApr 26, 2020

A 30ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau.

por Silvia Penas Estévez

Júlia Zuza (Belo Horizonte)

A poesia é uma forma de ver o mundo?

Muitas respostas vêm a minha cabeça com essa pergunta. Poesia como um estado de espírito? Poesia como possibilidade de pensar um outro mundo? Não sei. Penso que muita coisa pode ser uma forma de ver o mundo: culinária, marcenaria, corrida, serviço bancário. O mundo pode ser visto por diferentes lentes.

Me parece mais interessante pensar na poesia não como uma forma de ver o mundo, mas enquanto uma maneira de questioná-lo. Uma inquietação que segue suas próprias regras, manifesta de forma particular. Ela traz mais desassossego do que respostas, o que é maravilhoso.

Quando escreves, pensas em alguma leitora/leitor imaginária/o? Se vês afectado por aquilo que escreves?

Não tenho um leitor ideal quando escrevo, como sugeriu Umberto Eco. Não imagino quem poderá ler o texto. E muito do meu desinteresse em pensar num leitor imaginário é porque toda minha atenção, esforço e prazer estão no desafio que a escrita propõe. Não sobra espaço pra muita coisa. Me entrego completamente ao exercício, provoco e sou provocada para experimentar sonoridades, para buscar a palavra exata para aquele verso. É esse o meu motor.

Penso que sou mais afetada por aquilo que não escrevo, por aquilo que ainda está no terreno do virtual, sem uma forma concreta definida. O que ainda não enfrentou as palavras. Sou mais afetada pelo prazer da escrita do que com o que está escrito no final. Volto novamente ao ponto que o que me mobiliza e me afeta é o próprio exercício criativo.

Achas que há leitores de poesia ou só os poetas se lêem entre si?

A cada dia me convenço mais de que há muitos leitores de poesias fora do grupo de poetas. O que é ótimo, pois ler e ser lida apenas pelo clube do Bolinha/Luluzinha é muito chato e não reverbera. As pessoas que estão fora desse círculo gostam de poesia, seja ela escrita, musicada, falada. Poesia não é só feita de clássicos empoeirados na prateleira (leio e gosto, nada contra), mas também é rap, slam, concretismo, aforismos, performances. Não precisa ser hermética ou enfadonha. Inúmeros bons poetas contemporâneos que têm feito um trabalho incrível numa linguagem/formato mais acessível sem perder complexidade de sentido. As publicações da Urutau são um exemplo disso. ; )

Que opinas sobre as redes sociais como difusoras de arte, recitais etc.?

Sou uma grande fã das redes sociais. Ainda que nem sempre saibamos usá-las de uma forma que valorize o coletivo e as subjetividades, acho fantástica a disseminação artística que elas proporcionam. As redes sociais ajudaram nesse processo: temos mais poesia e mais diversidade de estilos. Vejo que isso também estimula as pessoas a produzirem arte, pois podem mostrar seu trabalho sem depender de grandes editoras, marchands ou gravadoras. O processo se torna mais democrático e coloca em questão o papel que instituições como essas desempenham. As redes propiciam esse questionamento.

Em relação a minha experiência nas redes, é bastante positiva. Conheci muitos artistas e eventos de literatura por meio do Facebook (ainda que eu esteja prestes a abandoná-lo. hehe) e mais recentemente pelo Instagram. E, do outro lado, divulgo meus trabalhos (poesias e saraus) também por esse canal. Ganhei amigos, conheci diferentes pessoas e fui a lugares muito interessantes por meio da difusão de poesia nas redes sociais. E isso é de uma beleza que nenhum poema comporta.

O teu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

De maneira geral, sou uma escritora a fogo lento. Com isso quer dizer que, a faísca do poema pode me acompanhar por semanas, mas o texto normalmente demora a sair. Fico trabalhando mentalmente em uma palavra ou uma imagem até chegar a um ponto de saturação que ela precise ganhar o papel. Reescrever é outro verbo que emprego com bastante frequência no meu trabalho. E, talvez por gostar do jogo proposto pela poesia, não acelero o passo; sigo na velocidade que o poema pede, desfrutando da paisagem ao redor.

Brilha quando foge (editora Urutau, 2019)

Este livro, Brilha quando foge, como surgiu?

O livro possui a maioria dos poemas escritos em 2017/2018, porém com alguns mais antigos, de uns 7 ou 8 anos atrás. Sem nenhum tema predeterminado, poemas avulsos. Mas como queria publicar uma obra (Brilha é meu primeiro), comecei a pensar numa linha que unisse os textos, como um rio que corresse de forma subjacente ao material que eu tinha. Em 2018 reli toda minha produção e, com a ajuda do Paulo Caetano e sobretudo do João Concha, entendi melhor o que se destacava na minha escrita e o que eu queria perseguir. Assim nasceu o Brilha quando foge, publicado em 2019.

Qual é o teu verso favorito do livro? Poderias explicar o porque ele é o teu verso favorito?

uma língua não identificada
é mais do que uma promessa
é um certo tipo de paraíso

(‘Penélope deveria ter aprendido persa’)

Esse é o único poema que sei de cor e salteado, de trás pra frente. Gosto especialmente desse verso porque, para mim, ele significa a abertura para o novo, a aposta no desconhecido. Pode ser metáfora para inúmeras coisas, inclusive para a prática poética.

Como conheceste a editora Urutau?

Já conhecia a Urutau pela Internet, por alguns livros do catálogo. Algum tempo depois uma amiga, Irma Estopiñà, teve seu livro publicado pela editora, o que me fez acompanhar mais de perto as atividades deles. E não larguei mais.

Alguma observação que queiras acrescentar?

Nesses dias em que o tempo se transformou num tema de reflexão (ainda bem), algumas dicas: mais poesia contemporânea, mais editoras independentes (como a talentosa Urutau) e mais tempo investido nas relações interpessoais.

Júlia Zuza

nasceu em Belo Horizonte. É doutoranda e mestre em Literatura pela Universidade de Coimbra. Possui poemas publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais , no Le Monde Diplomatique, em Portugal, e em várias antologias. Realiza leituras e performances poéticas, além de organizar saraus literários. Brilha quando foge é seu livro de estreia.

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