“poesia é um estar no mundo em estado de alerta às sutilezas” — entrevista com Helena Borges

editora Urutau
6 min readJul 17, 2020

A 92ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau

por Silvia Penas Estévez & nósOnça

Helena Borges (Rio de Janeiro, 1993)

O que é poesia para você?

Poderia responder diferente a cada vez que me fosse perguntado. Hoje, respondo que poesia é um estar no mundo em estado de alerta às sutilezas. É o sorrir ou chorar por pequenos motivos, estar vulnerável para receber e doar. É quando a pessoa se apequena diante da imensidão e humildemente, tenta partilhar dessa criação. Outro dia posso responder de forma mais melancólica, mais militante, mais espiritual… poesia é camaleão, aparece com diferentes faces através da história da experiência humana com o indizível.

Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?

Sim, quando escrevi alguns dos poemas do livro era como se criasse um diálogo imaginário com uma pessoa de dentro de mim. Estou falando com meus amigos imaginários quando escrevo e fico grata por esses amigos serem imersos no mundo, não conhecerem só sobre a bagunça de dentro mas também sobre a bagunça de fora.
Minha escrita vem muito de momentos autobiográficos distorcidos, lembranças inventadas ou modificadas. Também vem de situações que me revoltam ou de assuntos que estou pesquisando. Ela está mergulhada em afetos e me afeta antes, depois e durante a escrita.

Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?

Penso na Matilde Campilho, Ana Martins Marques e Alice Santanna, como influências. Também me lembro aqui da artista Castiel Vitorino, seus escritos e poemas visuais são muito fortes e sempre me levam a um estado encantado. Ana Fulô, minha amada amiga, também me influencia muitíssimo. Estou lendo no momento o livro da Lucila Losito Mantovani e tem sido um sopro do sensível. Tenho também uma admiração muito grande pelos rappers, vendo o quanto na atualidades eles são os que mais sabem mexer com as palavras, convocando o povo a agir. Acrescento então Black Alien, Djonga, Emicida e Criolo como poetas vivíssimos que me ensinam muito.

O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?

Acredito que a rede possa ser difusora de arte, sim. Acho que há o perigo de transformar a experiência com a arte em puro consumo de imagens descartáveis, rolando o feed e consumindo arte sem digerir nada. Os algoritmos selecionam o que será mais mostrado e a ideia de que qualquer um pode se expressar e atingir seu público é uma mentira, igual a de que atualmente todos podem empreender (risos).
Mas ao mesmo tempo, foi através das redes que conheci a maioria dos poetas atuais que gosto, é uma das formas que mais uso de conhecer novos artistas. É um espaço para a coexistência de diversos nichos e com alguma pesquisa você encontra seu lugar. Trabalhei com arte-educação em espaços museais e houve bonitas trocas de referências entre os alunos e eu, usando facilmente o celular.
Vejo também que a magia acontece nas brechas, já me ocorreu de uma legenda de foto no instagram dar início a um poema. Vejo trabalhos incríveis que usam dessa plataforma, muitos vezes tensionando a própria plataforma.
Às vezes, infelizmente, as redes sociais atrapalham meu fazer poético, pois preciso de uma calma e uma concentração que elas roubaram de mim. Nunca li tanto na vida e nunca esqueci tanto sobre o que li. Ficou mais difícil ler livro físico ao mesmo tempo que se tornou magnífico o momento de ler um livro. Esse estar com o livro na mão foi potencializado, seu cheiro e sua textura. Enfim, são pensamentos contraditórios, acredito que as redes sociais são a marca do nosso tempo e são tempos contraditórios. O que nos resta é utilizar a ferramenta da internet a favor da difusão democrática das artes.

Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?

Toda a minha formação básica foi no Colégio Pedro II, escola federal do Rio de Janeiro, durante boa parte da era PT. Fiz curso técnico no CEFET-RJ. Ou seja, tive acesso a um ensino público de qualidade e pude ver de perto o investimento na educação pelo governo federal. Pude ver como o debate das lutas sociais estava sendo levado para a sala de aula e as mudanças no pensamento dos jovens nos anos posteriores. No (des)governo atual, a situação é contrária. Não há interesse na ciência, no conhecimento e na pluralidade de ideias, há interesse de apagar as lutas sociais e retomar com mais intensidade o projeto colonial.

Todas essas questões me atravessam fortemente, algumas diretamente como indivíduo. Os desmontes do governo influenciam na minha vida pois dependo de políticas públicas para sobreviver e estudar. Quando percorro minhas lembranças, vejo o quanto toda a minha formação foi por meio do ensino público, cursos gratuitos em instituições governamentais, aulas abertas em espaços museais, bibliotecas públicas. Por isso, quando vejo verbas para a educação e cultura sendo negligenciadas, sei que isso afetará minha vida.

Trago tudo que penso para minha escrita e também para outras linguagens artísticas que uso para me expressar. Convoco o existir das coisas, dos objetos, das lembranças e os situo no Sagrado, destoando de discursos religiosos hegemônicos. Por entre os versos de vários poemas, vou deixando críticas à hipocrisia e ao cinismo de convenções sociais, heranças da colonização. A natureza como Deusa também se manifesta na minha escrita, sendo uma visão religiosa compartilhada com culturas antigas vivas, algumas vítimas também do processo de colonização. Acredito e defendo a luta das comunidades tradicionais, dos quilombolas, dos povos indígenas, dos sem terra e sem teto, pois repudio a visão mercadológica do espaço de terra, o extrativismo e a especulação imobiliária.

Além, claro, de escrever a partir da minha vivência como mulher. A sexualidade é tema de alguns poemas, por exemplo, e houve momentos em que me senti envergonhada de falar disso, por haver ainda um conservadorismo e uma caretice de boa parte da população que quer acreditar que mulher não gosta de sexo. Quando falo de amor e sexualidade nos poemas, é a partir do protagonismo feminino, o que é uma vitória das gerações passadas de escritoras mulheres. Ter nossa própria voz, deixar de aparecer como musas, para sermos agentes nas relações.

O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

É um processo lento. O poema pode até se estruturar num súpeto, mas depois passa por diversas leituras e releituras e modificações e desapegos. Fayga Ostrower diz sobre o momento mais difícil da criação artística, que é o momento de dar a obra por terminada. Quando escrevo, sinto essa dificuldade de largar o texto. Sou virginiana e a vontade é de ficar revisando e revisando e revisando. Publicar foi uma solução para isso (rs).

Peito do pé sobre peito (editora Urutau, 2019)

O seu livro, Peito do pé sobre peito, como ele surgiu?

Os poemas que compõem o livro foram escritos de 2015 a 2019. São reflexões de acontecimentos dessa época da minha vida, mudanças, crescimento, desilusões amorosas, acontecimentos políticos. Tudo foi de alguma forma digerido através da poesia. Depois, tomando uma posição mais profissional em relação ao trabalho, os textos foram selecionados e compreendidos como um livro, com uma linha que tece os poemas.

Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?

Um verso só é muito difícil de dizer. Mas tenho um carinho muito especial pelo poema sobre o Engenho Novo, bairro do Rio de Janeiro onde vivi toda minha vida antes de vir pra BH e onde minha mãe está. O poema se situa no ponto de ônibus e foi realmente ali que escrevi, em um dia de sol muito quente, com cheiro de esgoto e vários carros fazendo muito barulho.

Como você conheceu a editora Urutau?

Eu conheci pela internet e, inicialmente, me apaixonei pelas capas (risos).

Alguma observação que queira acrescentar?

Poder para o povo (poder para o povo)
Para fazer um mundo novo (para fazer um mundo novo)!

Helena Borges

nasceu em setembro de 1993. Carioca, foi morar em Belo Horizonte em 2017 para cursar artes plásticas. Experimenta diversas linguagens e temas em seu processo criativo. Pinta, fotografa, escreve, bagunça e se confunde no caminhar entre duas cidades e entre cidades e o mato, entre o mar e as cachoeiras.

--

--