[CONTO] Noções
Bom dia, boa tarde ou boa noite. Como estão? Eu tô muito bem. Bem demais, como não estive em muito tempo. Dito isso, uma cabeça mais equilibrada, no meu caso, significa história ainda mais grotesca. Surreal. Claustrofóbica. Desconfortável. Sabe? Tudo que as pessoas amam, só que não. Esse conto que estão prestes a ler era, originalmente, um roteiro de quadrinhos que adaptei pro meu estilo de prosa. A ideia era cada “Capítulo” ter duas páginas. Cada virada de página sendo uma virada de ciclo e tal. Eu gostei bastante do resultado, de verdade, e espero que vocês gostem também. Bom, acho que é isso, aproveite o conto.
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1
Perdi a noção de quantos dias se passaram. Eu durmo. Levanto. Tomo banho e batem na porta.
– Almoço! – diz alguém do outro lado.
Abro a porta. A menina com uniforme do hotel entra. Ela carrega uma bandeja com um prato. Alá minuta, ela diz, acho que diz. Ela tem dez anos. Talvez um pouco mais. Cabelos pretos e curtos. O nome eu já esqueci. Como os outros. Mas sei quem é. Mais uma vez tento falar com ela.
– Você nunca me olha na cara.
Ela deixa a bandeja na escrivaninha de frente pra cama. Me ignora.
– Quantas vezes mais preciso pedir desculpas?
Ela sai. Eu tranco a porta e sento pra comer. Tento fingir que a comida não é repulsiva. Que não tem gosto de carne estragada e sangue coagulado. Toca o telefone do quarto. Atendo.
– Sim? – digo, com a boca meio cheia.
Sei que é da recepção do hotel. Ninguém mais tá hospecado aqui. Ninguém além de mim.
– Ela está aqui – diz a voz de um garotinho. Não o vejo. Nunca o vi. Apenas sei quem é.
– Não deixe ela subir… – peço, suplico, pela milésima vez.
– Só estou avisando.
– Por favor…
– É meu trabalho.
– Eu imploro, só hoje.
– Tenho que pagar as contas.
– Eu…
O telefone fica mudo. Sento mais uma vez. Volto a comer. Batem na porta. Não levanto. Continuo comendo. O bife está meio duro hoje. Se ignorar o gosto, até que é uma sensação boa na boca. Batem na porta mais uma vez. Finjo não ouvir. BAM! BAM! BAM! Um grão de arroz mofado fica preso em um dente. Tento tirar com o garfo. BAM! BAM! BAM! A salada tem gosto azedo.
BAM! BAM! BAM!
Termino de comer. Respiro fundo. Hoje tive coragem de fazer ela esperar. Levanto, abro a porta. Uma mulher que veste as roupas da minha ex-namorada me olha. De cima a baixo.
– Não queria me ver hoje?
– Eu nunca quis…
– Queria, sim. Foi sempre assim.
Ela entra no quarto. Senta na cama. Da dois tapinhas ao lado dela.
Me sento, ao lado, sem olhar pra ela.
– Por que é desse jeito? Por que tem que doer? – digo, encarando o chão,
– Foi o quarto que você escolheu.
– Me arrependo tanto.
2
Quando acordo mais uma vez, as luzes estão apagadas. A mulher que veste as roupas da minha ex se foi. Eu não sei o que ela fez. Mas meu peito dói. Ouço batidas na parede. Como se alguém transasse no quarto ao lado. Ouço uma voz falando um nome. E outra voz diz algo. Outra voz que pede desculpas. Essa voz eu reconheço como minha. Tento tampar os ouvidos com o travesseiro. Mas o som é cada vez mais alto. Cada vez mais alto. Cada vez mais alto.
Me levanto. Vou ao banheiro. Tudo parece maior. Mais alto. Quase inalcançável. Procuro a luz. No espelho, vejo o rosto da minha filha. Uma menina de dez anos. Talvez mais. O meu peito, meu seio direito, ainda dói. Eu sonho. Sonho que sou ela. Sonho. É apenas um sonho. Tem que ser. Tanto tempo nesse hotel. Isso tem que ser um sonho. Tem que ser. Porque no espelho, a menina chora. Eu choro. Meu peito começa a sangrar, a criar uma mancha sob a blusa. Um pequeno lago vermelho que deságua em uma cachoeira até o chão. No quarto ao lado, gritam mais aquele nome. Nostalgia. Minha voz pede desculpas. Mas desculpas pra quem?
Alguém bate na porta. Meu peito dói muito. Não quero abrir. Batem na porta. Batem até abrir. Até um som de estouro se espalhar. Arrebentar a fechadura.
– Papai precisa falar com você.
Eu escuto. E a voz é minha.
– Papai precisa fazer isso – ele se aproxima.
Eu me aproximo.
Não consigo me mover. Meu peito dói muito. Eu me sento no chão. Talvez ele… eu… não me escute. Estou seguro aqui. Mas lembro que acendi as luzes. A porta abre.
– É melhor que eu faça isso, antes deles.
3
Acordo. Estou sentado em uma cadeira. Uma cadeira macia. Luz ofusca um pouco minha visão. À minha frente, um computador. Alguém grita no meu ouvido.
– Acorda, porra! Se liga no jogo!
Meu ouvido dói. Quem é que tá gritando no meu ouvido? Jogo? Ah, estou jogando. Um jogo de tiro. Bam! Bam! O jogo é bem realista. Os tiros parecem reais até demais. Eu morro no jogo. Minha cabeça explode. E ouço risadas. Seguidas de xingamentos. Alguém xinga minha mãe nos fones. A tela escurece e vejo meu reflexo na tela. Um rosto jovem de uma criança. Não sou eu. Não sou eu. Nos fones, ouço uma voz tão infantil quanto meu rosto. Alguém ainda xinga minha mãe. Alguém me xinga. Alguém anda atrás de mim. Alguém coloca algo frio, de metal, na minha cabeça. Bem atrás do meu olho direito.
– Meu filho… tá na hora de ir pra cama…
Bam! Bam!
4
Acordo sem ar. Suando. Não quero abrir os olhos. Alguém aperta meu pescoço. Mãos grandes. Não posso abrir os olhos. Não quero ver. Não quero. Por favor. Eu suplico. Por favor.
– Eu não precisaria fazer isso… – ouço minha voz.
Por favor. Eu sei que esse corpo não é meu. Sei que quem aperta meu pescoço tem minha voz. Meu rosto. Mas não é eu. Parece comigo. Mas não sou eu.
– Eu não precisaria fazer isso se você não se metesse na minha vida.
Eu nem lembro mais meu próprio nome. Não quero abrir os olhos. Olhar a mim mesmo. Não quero lutar. Meus pulmões começam a morrer. Talvez, o rosto que eu visto esteja azul. Azul. Azul. Azul. Azul. O ar não chega na minha cabe… ca… cabeça. Azul. Rosto azul.
– Era meu segredo! – a voz diz.
Minha voz? Voz. Uma voz azul.
– A culpa é sua! Sua! Sua! Sua!
5
Eu abro a porta pro corredor. Todos os quartos estão com as portas escancaradas. Cabeças para fora. Me olhando. Não são cabeças humanas. Mas são cabeças. Cada uma delas sussurra um segredo. Então ando. Os olhares me seguem. As cabeças saem de seus quartos. Um segredo de cada vez. Me seguem até o saguão do hotel.
– Gostaria de fazer o checkout – digo ao garotinho recepcionista. O rosto dele é pele morta e um buraco onde devia estar o olho direito.
– Ainda tem algum tempo pra usufruir do hotel.
– Só quero o checkout.
– Contas precisam ser pagas, entende?
6
Ela tem tatuagem de beija-flor. Veste o rosto da minha ex. Nostalgia. Ela faz carinho no meu rosto.
– Você escolheu esse quarto por minha causa – ela diz.
– Qual o seu nome?
– É um segredo.
7
Perdi a noção de quantos dias estou aqui. Batem na porta. Menina entra. Ela tem uns dez anos. Talvez mais. Almoço. Como.
O telefone toca.
– Quantos anos você tem? – pergunto ao garotinho no telefone.
– Só preciso pagar as contas.
– Não deixa ela subir…
Ela sobe. BAM! BAM! BAM! Ela entra. Usa as roupas de nostalgia. Ela tem a tatuagem de beija-flor da minha ex. Ex o quê?
– Quantas vezes preciso pedir desculpas? – pergunto.
– Tu ao menos lembra por que tá se desculpando?
Faço que não com a cabeça.
– Como cheguei até aqui?
– Importa?
– Me desculpa…
– Pelo quê?
Eu não sei.
8
Perdi a noção de quantos dias se passaram. Comida. Ligação. BAM! BAM! BAM! Alguém atirou? Ou bateu na porta?
– O papai precisa fazer isso.
Eu não consigo respirar. Meu peito dói. Alguém me xinga.
9
– Papai precisa fazer isso. Se sua mãe não tivesse encontrado as fotos…
10
Eu estive mal por tanto tempo. É verdade. Hoje me arrependo de tudo que eu fiz. Mas não lembro mais o que era. Não lembro meu nome. Meu rosto. O espelho do banheiro está quebrado. Eu me arrependo do que eu fiz. Mas tenho tanto orgulho de outras coisas. Sinto que, talvez, só talvez, eu tenha que olhar nos olhos dela. Uma última vez. Perguntar pra ela. Por que está aqui? Ah, sim. Alguém me disse que era um bom hotel. Pra relaxar, esquecer os problemas. Eu estive mal por muito tempo. É verdade. Eu ligo pra recepção. Ainda tem contas a pagar, o garotinho diz. A menina hoje chega sem almoço. Me trouxe um maço de cigarros embrulhado em um pacote de presente. Eu tinha largado o vício há muito tempo. Ela sai. Tento chamar ela. Desta vez ela me olha na cara.
– Uma vez você disse que eu era sua favorita. Por isso não estragou meu rosto.
11
– Não posso ajudá-lo.
– Era um dos segredos. Fiquei viciado em jogos.
– Jogos online.
– Jogos.
– Você gastou quanto? Não consigo lembrar.
– O suficiente para você dizer que eu fui um acidente. O cano atrás do meu olho não foi acidente.
12
– Ela está subindo.
– Tudo bem.
Bam! Bam! Bam! Perdi a noção de quantos dias se passaram.
– Quer um cigarro?
– É só outro jeito de você dizer que me odeia, não é?
Eu perdi a noção, foi isso. Foi. Foi isso. Então tudo está azul.