Ciência básica: a fundação do edifício tecnológico farmacêutico.

Exemplificando por meio do desenvolvimento de medicamentos para a doença de Alzheimer.

Eduardo Luiz Gasnhar Moreira
7 min readNov 5, 2021

O desenvolvimento de novas tecnologias está intimamente relacionado ao progresso da ciência. No caso do setor farmacêutico, o desenvolvimento de novos medicamentos requer uma massa crítica de cientistas competentes e uma sólida infraestrutura científica e técnica. De fato, a indústria farmacêutica, em âmbito internacional, é definida como um oligopólio baseado em ciência, cuja diferenciação dos produtos é baseada no esforço de pesquisa e desenvolvimento (P & D). É patente que a inovação farmacêutica é intimamente dependente de atividades de P & D, incluindo-se as pesquisas básicas, as quais, no Brasil, são realizadas principalmente em universidades públicas. Para enfatizar esta linha de evidência, cito o Prof. João Batista Calixto, professor titular aposentado da UFSC, e expoente na interação entre universidade e indústria farmacêutica, que sempre enfatiza em suas palestras: “não há possibilidade de desenvolvimento tecnológico de ponta sem ciência básica de igual qualidade”.

Contudo, em uma economia de livre mercado, nem sempre as empresas estão propensas a investir em pesquisa básica devido ao alto grau de incerteza técnica e comercial associado. Assim, o subinvestimento em pesquisa científica básica é evitado, muitas vezes, por meio do apoio financeiro direto do governo às universidades. Mas será que a sociedade civil entende a importância desses investimentos públicos? Aqui destaco uma pesquisa conduzida pelo Pew Research Center (em 2018) que demonstrou que os americanos apoiam fortemente o investimento do governo em pesquisas científicas. Cerca de oito em cada dez adultos norte-americanos responderam que os investimentos do governo em pesquisa médica (80%), engenharia e tecnologia (80%), ou pesquisa científica básica (77%) geralmente compensam no longo prazo.

É necessário ressaltar que embora o setor farmacêutico seja um dos ramos industriais mais lucrativos, o desenvolvimento de novos medicamentos é um processo demorado, caro, e arriscado. Em essência, o desenvolvimento de um novo medicamento começa quando a ciência básica apresenta informações acerca de um alvo biológico (e.g., um receptor, enzima, proteína, gene, etc.) que está envolvido em um processo biológico considerado disfuncional em pacientes com uma determinada doença. Isto é, muito antes do desenvolvimento de uma nova molécula, o avanço e realização da ciência básica fornece uma compreensão básica, e.g., hipóteses, acerca de um processo fisiopatológico. Essas pesquisas são normalmente conduzidas em laboratórios acadêmicos e institutos de pesquisa em todo o mundo, e apenas parte delas são financiadas pela indústria! Porém, quando um alvo potencialmente relevante para uma determinada doença é identificado e validado, tem-se início uma etapa de busca por moléculas que possam modificar tal alvo terapêutico, etapa muito mais associada com a indústria farmacêutica. Essas moléculas serão testadas acerca de suas atividades biológicas, evoluindo para o desenvolvimento pré-clínico e, caso seja bem-sucedido, em desenvolvimento clínico e, em última análise, um medicamento comercializado. Devido à sua complexidade, a descoberta e o desenvolvimento de novos medicamentos são amplamente reconhecidos como um dos empreendimentos de maior risco financeiro em toda a ciência e um grande desafio para a indústria farmacêutica!

Para exemplificar toda essa cadeia de valor farmacêutica, vamos tomar como exemplo a doença de Alzheimer, a principal doença neurodegenerativa relacionada à idade, e a causa mais comum de prejuízos cognitivos em pessoas com mais de 65 anos de idade. Esta condição neurodegenerativa afeta cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo seu tratamento farmacológico apenas paliativo, representado por inibidores da enzima acetilcolinestase (e.g., donepezil e galantamina) e pela memantina. Uma medicação que altere a progressão da doença é indiscutivelmente a maior necessidade não atendida dos pacientes com a doença. Contudo, apesar do investimento de bilhões de dólares em ensaios clínicos, um novo medicamento para a doença de Alzheimer não era aprovado pelo Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora americana, desde o ano de 2003! Isso mesmo: não era! Pois, em sete de junho de 2021, o FDA aprovou o medicamento “Aduhelm” (aducanumab), da farmacêutica americana Biogen, embora tal aprovação tenha gerado várias críticas na comunidade científica. A solicitação do Aduhelm foi deferida por meio de “aprovação acelerada”, situação no qual o FDA aprova um medicamento para uma doença grave ou com risco de vida que oferece uma vantagem terapêutica significativa sobre os tratamentos existentes. A aprovação acelerada pode ter como base o efeito do medicamento em um desfecho que “é razoavelmente provável de prever um benefício clínico para os pacientes”, conforme apontado pelo FDA, sendo necessários estudos pós-aprovação para verificar se o medicamento fornece o benefício clínico esperado.

O aducanumab, um anticorpo monoclonal, é o primeiro medicamento aprovado direcionado à fisiopatologia subjacente da doença de Alzheimer, i.e., a presença de placas de proteína beta amiloide (Aβ) no cérebro. Os estudos realizados mostraram alta afinidade do aducanumab para as espécies oligoméricas neurotóxicas de Aβ. Aqui cabe ressaltar que, embora a causa fundamental da doença de Alzheimer permaneça desconhecida, a hipótese da cascata amiloide vem dominando, nas últimas três décadas, o campo da pesquisa sobre esta doença e fornecendo o arcabouço teórico visando à intervenção terapêutica. No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, vários grupos independentes de pesquisa apresentaram evidências que o acúmulo de Aβ é a principal característica da patogênese da doença de Alzheimer. Em 1992, em um artigo publicado no conceituado periódico científico Science, os pesquisadores John Hardy e Gerald Higgins propuseram formalmente a ‘hipótese da cascata amiloide’. De acordo esta hipótese, um desequilíbrio entre a produção e a depuração do peptídeo Aβ é um processo chave na complexa cascata patológica da doença de Alzheimer, que culmina na disfunção sináptica/neuronal disseminada e morte celular. Esta hipótese foi revisitada e aprimorada ao longo do tempo, pelo próprio John Hardy, e por outros grupos de pesquisa em todo o mundo, inclusive com extensa contribuição do grupo de pesquisa coordenado pelo egrégio Prof. Sérgio Teixeira Ferreira no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Artigo publicado em 10 de abril de 1992 no periódico Science, acerca da hipótese da cascata amiloide para a doença de Alzheimer.

Não surpreende, assim, que o Aβ tenha se tornado um importante alvo terapêutico para o desenvolvimento de fármacos para a doença de Alzheimer. De fato, esta hipótese proporcionou um quadro coerente para a compreensão da patogênese desta doença, sendo que várias abordagens farmacológicas que visavam o peptídeo amiloide estariam cientificamente fundamentadas para entrar no desenvolvimento pré-clínico e clínico, isto é, identificação e validação do alvo.

Principais estratégias para diminuir os níveis cerebrais do Aβ desenvolvidas:

(i) prevenção ou redução da formação do Aβ, tendo como alvo enzimas proteolíticas que medeiam o processamento da APP;

(ii) remoção dos depósitos amiloides existentes por imunoterapia;

(iii) prevenção ou redução da agregação do Aβ; e

(iv) aumento da depuração do Aβ.

Em geral, nos últimos 20 anos, a hipótese amiloide influenciou significativamente as atividades de P & D, visando desenvolver novos fármacos para o tratamento da doença de Alzheimer, contudo várias classes de agentes anti-Aβ que influenciam a produção, agregação e eliminação de Aβ falharam em estudos clínicos. Neste artigo, publicado em língua portuguesa, visando ampla disseminação do conhecimento para estudantes de cursos de graduação na área da saúde, nosso grupo de pesquisa fez uma síntese dos estudos clínicos realizados até o ano de 2019. Para quem tiver interesse em acompanhar o pipeline de estudos clínicos na doença de Alzheimer, sugiro acompanhar as publicações anuais do pesquisador Jeffrey Cummings, da Univerty of Nevada, Las Vegas, Estados Unidos. Confira o pipeline de 2021 aqui.

A aprovação do aducanumab, contudo, foi altamente controversa, com opiniões contrastantes por parte da comunidade científica. Os resultados de dois ensaios clínicos randomizados de fase III com aducanumab não foram conclusivos, com evidências conflitantes de melhorias clínicas. O FDA concedeu a aprovação acelerada com base no claro efeito sobre o biomarcador, no possível efeito clínico observado em um dos ensaios, e na necessidade urgente nesta condição clínica. A aprovação do FDA foi condicionada ao desenvolvimento de ensaio clínico controlado randomizado de fase IV para verificar o benefício clínico, com a apresentação do relatório final previsto apenas para fevereiro de 2030. Interessante notar que o deferimento do aducanumab, com base na remoção de amiloide, levou que outros fármacos, como o donanemab (um anticorpo com a finalidade de atuar diretamente na depuração do Aβ das placas), da farmacêutica americana Eli Lilly, recebesse, com base nos resultados publicados do ensaio clínico TRAILBLAZER-ALZ, a designação de “terapia inovadora” pelo FDA em junho de 2021, para acelerar o desenvolvimento e revisão. Em agosto de 2021 a Lilly começou um ensaio clínico de fase III, TRAILBLAZER-ALZ3, como objetivo de incluir 3.300 indivíduos com alto risco para a doença de Alzheimer. Contudo, a empresa planeja solicitar a aprovação acelerada do donanemab ainda em 2021, com base na porta que foi aberta pelo aducanumab, da Biogen. Embora com diversas críticas e ponderações da comunidade científica, a aprovação do aducanumab parece iniciar uma nova fase de intensa pesquisa clínica (e não clínica) sobre a doença de Alzheimer, buscando luz em um caminho marcado por diversos insucessos clínicos, e a esperança do desenvolvimento de novas terapias modificadoras da doença de Alzheimer.

Em resumo, a seleção do alvo biológico para um programa de descoberta de novos fármacos é uma das decisões mais importantes que uma equipe de desenvolvimento fará. É notório que a ciência básica é o estágio inicial da pesquisa, conduzida para o avanço do conhecimento, sendo que a pesquisa translacional é o processo de aplicação dessas descobertas para o tratamento e prevenção de doenças humanas. Neste breve post recapitulei o início das pesquisas básicas, ao final dos anos 1980, que culminaram com a formação de uma hipótese acerca da fisiopatologia da doença de Alzheimer, aprimorada ao longo dos anos, e que foram cruciais aos estudos clínicos conduzidos nas últimas duas décadas, e para a primeira aprovação, em 2021, de um medicamento que atua no processo fisiopatológico da doença. Em todo novo fármaco aprovado por agências regulatórias, sempre teremos uma história de pesquisa básica como precursora do processo, como as raízes de uma linda arvore florida e com frutos. A fundação do edifício tecnológico farmacêutico.

Referências

Cook D, Brown D, Alexander R, March R, Morgan P, Satterthwaite G, Pangalos MN. Lessons learned from the fate of AstraZeneca’s drug pipeline: a five-dimensional framework. Nature Reviews Drug Discovery 2014; 13: 419–431.

Seyhan, A.A. Lost in translation: the valley of death across preclinical and clinical divide — identification of problems and overcoming obstacles. Transl Med Commun 2019; 4, 18.

Vargas, M. A. et al. Reestruturação na indústria farmacêutica mundial e seus impactos na dinâmica produtiva e inovativa do setor farmacêutico brasileiro. Anais do XV Encontro Nacional de Economia Política, São Luiz, 2010.

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Eduardo Luiz Gasnhar Moreira

Neurocientista; Professor do Departamento de Ciências Fisiológicas da UFSC. Coordenador do PsicowLab (https://psicowlab.paginas.ufsc.br/).