Concepção e desenvolvimento de medicamentos: foco no COVID-19

Eduardo Luiz Gasnhar Moreira
9 min readMay 6, 2020

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Enquanto não existe a disponibilidade de uma vacina segura e eficaz específica ao Sars-Cov-2, a expectativa volta-se ao redirecionamento de medicamentos existentes e terapias não medicamentosas, além da aprovação de medicamentos experimentais promissores que já estavam em testes clínicos, com o intuito principal de aliviar a pressão sobre os sistemas de saúde já sobrecarregados.

Situações parecidas foram observadas nas últimas duas décadas. Podemos citar o surto de Ebola na África Ocidental (2013–2016), o surto do vírus Zika no Brasil (2015–2016), o Surto de Mers-Cov no Ocidente Médio (2012–2015), e os surtos mundiais de H1N1 (2009) e Sars-Cov (2002–2003). Em todas essas situações observamos fatos semelhantes ao que estamos vivenciando agora: 1) a falta de antivirais efetivos disponíveis, levando ao clamor de testarmos diversos fármacos já utilizados em outras condições; 2) a pressa em ser o “primeiro” a apresentar tal medicamento à população — sendo que esse senso de prioridade pode não levar ao melhor ou, mesmo, a qualquer resultado ao paciente; e 3) a proposta imediata de criar uma vacina e declarações que isso ocorrerá em breve. Isso tudo foi apresentado com maestria por Ekins e colaboradores em um artigo recentemente publicado no periódico Drug Discovery Today.

No caso do entendimento do Sars-Cov-2 e da doença por ele causada, COVID-19, nota-se que a aceleração do conhecimento têm sido notável. Em uma consulta a base de dados SCOPUS, em 01/05/2020, com o termo COVID-19, pude notar a presença de 4.819 documentos, sendo 4.815 deste corrente ano. Contudo, algumas lacunas de informação científica ainda impedem o progresso em direção à prevenção e ao tratamento eficaz da COVID-19.

Documentos disponíveis acerca de COVID-19 na Base SCOPUS em 01/05/2020.

Nesse momento observamos mensagens positivas dos governos para acalmar a população, o que é esperado, pois é preciso mostrar ações de que, sim, venceremos o vírus! Também, observa-se o “lobby” de algumas indústrias farmacêuticas para testarmos determinados produtos. A norte-americana Abbvie com seu antiviral lopinavir/ritonavir (Kaletra®; tratamento do HIV) é um exemplo, com o governo chinês testando este medicamento desde janeiro deste ano. O antiviral remdesivir da norte-americana Gilead, ainda em investigação clínica, e que falhou em estudos clínicos para o Ebola, mostrou eficácia em um estudo pré-clínico (macacos) de infecção por Mers-Cov. Neste início de maio, a Gilead obteve a autorização de emergência do FDA para uso do remdesivir no tratamento de pacientes hospitalizados por COVID-19.

Contudo, nesse momento também surgem muitas dúvidas de todo o processo de concepção e desenvolvimento de medicamentos, e esse post tem como objetivo recapitular um pouco os processos da cadeia produtiva farmacêutica. Como ocorre o desenvolvimento de um novo medicamento? Bem, praticamente todas as novas entidades químicas tiveram seu ponto de partida nas pesquisas básicas na academia e nos institutos de pesquisas em todo o mundo. É lá que surgem hipóteses científicas, como por exemplo, que a inibição ou ativação de uma proteína ou via resultará em efeito terapêutico em doença. É o processo de identificação e de validação de alvos terapêuticos.

Posteriormente, passamos a fase de descoberta, vinculada normalmente à indústria farmacêutica, onde temos o desenvolvimento de uma pequena molécula ou medicamento biológico. Somente após é que se iniciam os estudos pré-clínicos de segurança e eficácia para que, aí sim, iniciem-se os estudos clínicos de fases I, II e III.

Dentro desse processo, um ponto de partida possível é o sequenciamento gênico. Nessa etapa, há a construção de uma biblioteca de sequenciamento gênico ou proteico (genoma/proteoma) para mineração de informações. Bem, muitos devem ter visto as notícias de que, 48 horas após a identificação do primeiro caso no Brasil, pesquisadores da USP sequenciaram o genoma do novo coronavírus.

O objetivo, então, é a descoberta do alvo terapêutico, como por exemplo: procurar por genes ou proteínas essenciais para o agente infeccioso; investigar proteínas ou modificações de proteínas associadas a uma doença; ou mapear vias patológicas necessárias para o processo de doença. Nesse sentido, muitas evidências já estavam disponíveis acerca do Sars-Cov-1, causador da síndrome respiratória aguda grave (SARS). Em conjunto com os novos estudos, já temos uma ideia mais clara do processo fisiopatológico desencadeado pela infecção por Sars-Cov-2, como o papel das células alveolares do tipo II, da enzima ACE-2, culminando com os processos intracelulares de replicação do vírus.

A próxima etapa é a validação do alvo terapêutico e a descoberta da molécula líder. Nessas etapas busca-se, por exemplo, avaliar o envolvimento de determinada proteína no estado da doença e entender as vias e interações desta proteína. Posteriormente, objetiva-se descobrir moléculas que afetam o gene, a proteína ou a via alvo.

Mas não é necessário buscar apenas por novas moléculas! Podemos considerar moléculas que já foram desenvolvidas, que já estão na clínica e cujos perfis de segurança já são conhecidos. Isso poderia poupar muito tempo de desenvolvimento, como explicarei mais a frente. É o chamado reposicionamento de fármacos. Aqui faço um importante parêntese: muitas descobertas, inclusive, aconteceram “ao acaso” na história. Uma droga destinada a matar a bactéria que causa a tuberculose demonstrou-se capaz de melhorar o humor e provocar alegria, uma evidência que influenciaria profundamente a abordagem da psiquiatria no tratamento da depressão: a iproniazida se tornou o primeiro antidepressivo a chegar nas farmácias em todo o mundo…

Depois da seleção da molécula líder, esta passará a fase pré-clínica, onde são feitos testes de toxicidade e eficácia em modelos animais (e.g., roedores e outras espécies de mamíferos). Muitos podem perguntar: e essa etapa é realmente necessária? Bem, nos anos 1950 a talidomina era um fármaco sedativo e hipnótico muito utilizado, com poucos efeitos colaterais. Contudo, logo se descobriu que devido aos seus efeitos teratogênicos, tal substância deve ser evitada durante a gravidez e em mulheres que podem engravidar, pois pode causar má-formação ou ausência de membros no feto. Naquela época os procedimentos pré-clínicos eram muito menos rígidos, e os testes feitos não revelaram seus efeitos teratogênicos. Os testes em roedores, que metabolizam a droga de forma diferente de humanos, não acusaram problemas. Mais tarde, foram feitos os mesmos testes em coelhos e primatas, que mostraram os mesmos efeitos que a droga causa em fetos humanos. Assim, hoje são muitos os testes pré-clínicos exigidos para o desenvolvimento de uma nova molécula, em especial testes de mutagenicidade, citotoxicidade, imunotoxicidade, embriotoxicidade, hepatotoxicidade, genotoxicidade, toxicologia reprodutiva, entre outros.

Com base nos resultados dos estudos pré-clínicos as agências reguladoras poderão aprovar esta molécula líder (IND, investigational new drug), podendo-se, então, iniciar os estudos clínicos. Os estudos clínicos de fase I são feitos em um pequeno grupo (dezenas) de voluntários adultos e saudáveis, onde o foco do estudo é muito mais na segurança do que na eficácia da molécula. Os estudos de fase II são realizados em pacientes (geralmente centenas), sendo estudos de segurança, dosagem e eficácia. Por fim, os estudos de fase III envolvem até milhares de pacientes, para determinar a eficácia, a dosagem, a segurança, os efeitos colaterais e as interações medicamentosas.

Etapas da concepção e desenvolvimento de novos medicamentos.

De modo geral, a etapa de descoberta do alvo terapêutico demora até três anos, a otimização da molécula líder em torno de dois a três anos; a fase pré-clínica até dois anos; e as fases clínicas cerca de seis anos. Assim, a pesquisa e desenvolvimento de um novo medicamento exige um esforço considerável! Esse desafio é ainda escancarado com dados que indicam uma taxa de insucesso no desenvolvimento de medicamentos acima de 96%! Nesse sentido, um estudo da Organização de Inovação em Biotecnologia, avaliando as taxas de sucesso clínico de medicamentos entre os anos de 2006 e 2015, constatou que apenas 9,6% dos medicamentos que entraram na fase clínica I chegaram ao mercado!

Em uma consulta na base de dados ClinicalTrials, em 01/05, pude notar 1.133 estudos clínicos recrutando pacientes ou em andamento relacionados ao COVID-19. É um esforço mundial buscar tratamentos efetivos para esta pandemia. Destes estudos, filtrando por país, notei que 18 envolvem pesquisas no Brasil.

Bem, dentre estes estudos clínicos, pode-se notar que algumas vacinas já estão recrutando voluntários para testes de fase I. Por exemplo, a vacina mRNA-1273, desenvolvida pela empresa norte-americana ModernaTX, iniciou seus estudos em março de 2020, tendo um prazo final estimado para junho de 2021. São prazos grandes, não? Vejam o caso da EBOLA, por exemplo. No surto mais sério, em 2014, na África Ocidental, foram mais de 28,600 casos, com 11.325 mortes! Contudo, só tivemos uma vacina com aprovação das agências regulatória europeia e americana no ano de 2019. Mas esse tempo é necessário para a realização dos estudos e garantir a segurança e a eficácia de vacinas e novos medicamentos.

Contudo, uma alternativa muito valiosa nesse momento é o reposicionamento de fármacos, em especial os já aprovados por agências reguladoras. Essa abordagem diminui o tempo de pesquisa, estudos clínicos e os investimentos necessários, uma vez que a farmacologia e toxicologia desses medicamentos são conhecidas.

Uma forma de iniciar tal abordagem é por meio de testes in silico e in vitro, avaliando compostos com atividade de inibir a replicação viral. Por exemplo, um estudo conduzido por Ekins e colaboradores (2020) demonstrou a eficácia de vários agentes sobre a infecção (replicação) do Sars-Cov-2, como por exemplo, da cloroquina (agente antimalárico) e do remdesivir (agente antiviral). Outros estudos também mostraram o potencial in vitro do remdesivir e da cloroquina e, posteriormente, da hidroxicloroquina, um derivado menos tóxico da cloroquina. Entre outros exemplos, o estudo de cientistas da Fiocruz que mostrou o efeito do medicamento atazanavir sobre a replicação do Sars-Cov-2.

Considerando os efeitos in vitro destes compostos, embora iniciais e ainda sem evidências em modelos experimentais mais elaborados, diversos governos, como o americano e o brasileiro, começaram a recomendar o uso clínico da cloroquina/hidroxicloroquina no manejo da COVID-19 em pacientes hospitalizados. Já existe a produção de genéricos da cloroquina e hidroxicloroquina (isto é, término da exclusividade de comercialização do detentor da patente associada ao medicamento de referência), o que faz caírem drasticamente os custos de compra.

Mas a cloroquina/hidroxicloroquina realmente funcionam? Bem, isso só será definitivamente demonstrado com base nos resultados de estudos clínicos. Atualmente, são encontrados sete ensaios clínicos concluídos com foco na cloroquina ou hidroxicloroquina como uma via terapêutica para o COVID-19. Chowdhury e colaboradores (2020) fizeram uma revisão sistemática destes estudos e observaram que cinco (dos sete) ensaios mostraram resultados favoráveis para pacientes que usam cloroquina ou hidroxicloroquina. Por outro lado, dois desses estudos não mostraram alterações em comparação ao controle. Contudo, os autores da revisão sistemática apontam que todos os sete estudos apresentaram vieses experimentais e desenho inadequado de estudo. Assim, concluem que, atualmente, ainda não temos dados suficientes para validar o uso rotineiro de cloroquina ou hidroxicloroquina como terapias para a COVID-19. Nesse sentido, pude notar, consultando a base de dados ClinicalTrials, em 01/05, que existiam 162 estudos com hidroxicloroquina no manejo da COVID-19, sendo 144 estudos em andamento ou em fase de recrutamento de pacientes. Ou seja, em breve a ciência responderá essa pergunta.

Os ensaios clínicos iniciais com o remdesivir, medicamento antiviral originalmente desenvolvido pra tratar o Ebola, foram encorajadores. Assim, como citei ao início do post, ao início de maio, a Gilead obteve a autorização de emergência do FDA para uso do remdesivir no tratamento de pacientes hospitalizados por COVID-19. E já tivemos a notícia por aqui, que a ANVISA está acompanhando estes estudos para avaliar o fornecimento deste no Brasil. Outros tratamentos terapêuticos, como a terapia com plasma convalescente, que usa sangue de pacientes recuperados para tratar pacientes em estado crítico, também foram aprovados para uso pelo FDA.

Considerando uma linha do tempo para o tratamento e prevenção da COVID-19, temos ao momento três distintas abordagens: reposicionamento de fármacos, desenvolvimento de novos fármacos (como por exemplo, anticorpos) e o desenvolvimento de vacinas. Assim, temos esperança de que em breve teremos tratamentos eficazes para combater efetivamente o Sars-Cov-2. Citando uma frase de Stephen Hawking: “a ciência vencerá, porque ela funciona”!

Referências:

Chowdhury S et al. A rapid systematic review of clinical trials utilizing chloroquine and hydroxychloroquine as treatment for COVID-19. Academic Emergency Medicine, in press 2020.

Ekins S et al. Exploiting machine learning for end-to-end drug discovery and development. Nature Materials, 18: 435–441, 2019.

Ekins S et al. Déjà vu: stimulating open drug discovery for Sars-Cov-2. Drug Discovery Today, in press, 2020.

Hingorani AD et al. Improving the odds of drug development success through human genomics modelling study. Scientific Reports, 9:18911, 2019.

López-Muñoz F e Alamo C. Monoaminergic neurotransmission: the history of the Discovery of antidepressants from 1950s until today. Current Pharmaceutical Design, 15: 1563–1586. 2009.

Thomas DW et al. Clinical development success rates 2006–2015. Biotechnology Innovation Organization, Washington DC, 2016.

Vargesson N. Thalidomide-induced teratogenesis: history and mechanisms. Birth Defects Res C Embryo Today, 105:140–156, 2015.

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Eduardo Luiz Gasnhar Moreira
Eduardo Luiz Gasnhar Moreira

Written by Eduardo Luiz Gasnhar Moreira

Neurocientista; Professor do Departamento de Ciências Fisiológicas da UFSC. Coordenador do PsicowLab (https://psicowlab.paginas.ufsc.br/).