Você sabe o que é um sample?

O processo, às vezes tratado como plágio, tem se tornado cada vez mais recorrente na indústria musical

Eduardo Marini
8 min readJun 10, 2020

A palavra sample, em inglês, significa amostra. Na indústria musical, samplear significa pegar um trecho curto de uma música e usá-lo pra criar uma nova.

Imagem: Dr. Dre no estúdio — Crédito: breakinartist.com

Pode ser uma parte da letra, da batida, da melodia, ou até mesmo tudo junto, do jeitinho que é na versão original. Pode ser distorcido, modificado e regravado, o importante é a reciclagem; pegar algo anterior e ressignificá-lo acaba sendo, na maioria das vezes, a essência de um sample.

Você com certeza já ouviu vários, até repetidos, mas pra ajudar a entender, vamos dar alguns exemplos:

Um sample SUPER conhecido é o de Misirlou (1962), canção clássica do guitarrista Dick Dale, usada em Pump It (2005), do Black Eyed Peas. Ouvindo logo o comecinho das duas, você vai entender como funciona.

Pois é. Uma das canções mais clássicas do nichado surf rock, conhecida também por fazer parte da trilha sonora de Pulp Fiction, 43 anos depois é transformada em um hit internacional do hip hop/pop com o Black Eyed Peas. Dick Dale até chegou a tocar em uma turnê do grupo, em 2006.

São inúmeros os casos, de todos os tipos e estilos, dos mais discretos aos mais explícitos. Mas como surgiu o sample?

O conceito de sample da indústria musical como conhecemos hoje surgiu lá nos primórdios do hip hop. DJs e MCs caçavam discos em busca de beats e melodias pra rimar por cima. Clássicos da música soul e até mesmo jóias desconhecidas de diversos gêneros musicais eram usadas e muitas vezes pegava-se apenas trechos curtos para tocar repetidamente como base. Para isso, havia o sampler, uma espécie de sintetizador que gravava sons específicos de uma música e deu o nome à prática de samplear (ou sampling, em inglês).

À época, eles eram caros e difíceis de achar, mas conforme os aparelhos foram evoluindo, tornaram-se um pouco mais acessíveis, principalmente a partir dos anos 80. Naturalmente, eles começaram a se difundir na música eletrônica na mesma época, quando ela ainda era também um ritmo nichado.

Ambos, hip hop e eletrônica, já eram muito populares, já tinham seus próprios subgêneros, mas faziam parte de culturas independentes, não muito ligadas ao mainstream ou à música pop das grandes gravadoras; eram muito mais feitos pra seus próprios públicos do que para um mercado geral.

Os anos 90 foram a caminhada para uma explosão que aconteceria na década seguinte. Ambos os estilos cresceram e, aos poucos, começaram a se inserir no mercado pop, algo que poucos grupos tinham conseguido antes. E assim, a cultura do sample entrou junto. Dentre as 100 faixas que figuram na Hot 100 norte-americana da Billboard de 2019, pelo menos 30 têm samples registrados pela comunidade do site WhoSampled, uma plataforma em que os usuários identificam e registram samples.

Além da inserção no mercado, algo que impulsionou essa cultura foi a digitalização, tanto do consumo quanto da produção musical. A pirataria toma conta da internet a partir do final dos anos 90 e pulveriza o mercado com o download ilegal de músicas. Assim, fica muito mais fácil tirar um pedacinho. O acesso a músicas das mais diversas origens é ampliado infinitamente, tudo sem ter que comprar um CD.

Bom, beleza. Mas e daí?

Existe uma questão moral no meio disso tudo.

O sampling pode ser, propositalmente ou não, uma forma de plágio. A prática era muito mal vista até os anos 90, como comenta um músico entrevistado para um artigo publicado no Journal for Cultural Research:

“Naquela época, todos os músicos diriam — ‘Bem, samplear é simplesmente roubar. A única razão desses caras estarem fazendo isso é porque eles não conseguem tocar, etc.’ Mas estávamos começando a perceber que o sample criou uma estética própria, que retratava o que estava acontecendo na época, e ela era popular...”

Ainda há uma rejeição com esse tipo de trabalho, principalmente vindo de gerações anteriores da música. E como era de se esperar, já teve muita treta em torno dos samples. Processos envolvendo grandes nomes da música, como George Harrison e a banda Coldplay, nortearam o caminho para que a própria indústria limitasse o tempo de 6 segundos como o máximo de duração para que um sample não configure como plágio.

No Brasil, a coisa é um pouco mais subjetiva. Temos a Lei Nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que protege os direitos autorais de artistas:

“O uso de samples não é regulamentado, e por isso prevalece o bom senso. Usar um trecho ou uma melodia pode ter tom de homenagem, mas quando duas obras possuem semelhanças grandes entre si, a acusação de plágio pode se provar verdadeira e ter cabimentos legais, como o pagamento de multa” — conta Victor Gameiro Drummond, especialista, em nota publicada no site do escritório NMK Advogados.

O impacto do sample na cultura é o legado.

Acontece que ele acaba sendo, de propósito ou não, um instrumento de memória musical. Com essas melodias e batidas antigas, a gente cria novas melodias e batidas, novas ideias. Pode ser uma reciclagem, uma referência, uma reverência. São conceitos, sons, letras e ritmos que atravessam gerações e deixam seu rastro na nossa cultura, mesmo que ele passe despercebido.

É a cultura do remix. Músicas, filmes, fotos e todo o resto que criamos são mixagens de coisas pré-existentes. Toda narrativa que criamos, de certa forma, é uma fanfic de algo. Já parou pra pensar? Às vezes, aquilo que achamos super original pode ter raízes profundas no passado.

Lembra de Misirlou, que citamos lá em cima? A verdade é que a canção de Dick Dale também é “sampleada”. Misirlou, a princípio, é uma canção popular grega, sem autoria registrada, cujo primeiro registro de gravação é do ano de 1927, na voz de Tetos Demetriades. Ela explodiu na época e até hoje é considerada muito tradicional, principalmente em algumas regiões do Oriente Médio, do sul do Mediterrâneo e do Leste Europeu. Além disso, é erótica e seu nome, em uma tradução aproximada, significa “Garota egípcia”.

Dick, descendente de libaneses, herdou a canção e a transformou num clássico também do surf rock em plenos anos 60. Numa loja de CDs, durante uma turnê dos Black Eyed Peas aqui no Brasil, will.i.am encontrou Misirlou. Então, samplearam e produziram Pump It, que logo se tornou um clássico da primeira década dos anos 2000. No ano passado, o DJ Gabriel Goulart, conhecido como DJ GBR, estourou com o surgimento do rave funk, que faz muito sucesso em São Paulo. O estilo mistura o funk com música eletrônica e algumas outras referências. GBR lançou, meses atrás, Rave Pump It, sampleando o hit do grupo norte-americano.

E uma canção popular grega, que nem sabemos quando exatamente surgiu, foi parar nos bailes e rolês universitários paulistanos em pleno 2020. A gente não imagina, mas esse legado cultural tá todo lá. E querendo ou não, a sonoridade e os tons que ele carrega trazem consigo mensagens e histórias sobre quem somos. Por mais curtinho e editado que o trecho seja, é interessante observar o quanto nossa cultura está em constante transformação, o tempo todo sendo remixada.

Caso você queira mais alguns exemplos, toma aí:

On the Floor (2010), de Jennifer Lopez e Pitbull, contém um sample de Lambada (1989), do Kaoma.

Hotline Bling (2015), de Drake, contém um sample de Why Can’t We Live Together (1972), de Timmy Thomas.

Crazy in Love (2003), de Beyoncé e Jay-Z, é sampleada de Are You My Woman (1970), dos Chi-Lites.

Toxic (2003), de Britney Spears, é sampleada da trilha sonora de um filme bollywoodiano, chamada Tere Mere Beech Mein (1981), de Lata Mangeshkar e S.P Balasubramaniam, como é possível ver aqui.

Somebody That I Used To Know (2011) contém um sample de Seville (1967), do jazzista brasileiro Luiz Bonfá.

O tema de abertura das Meninas Superpoderosas contém um sample de bateria de James Brown (sim!)

Pra mais exemplos, confiram o site do WhoSampled! Lá tá cheio de material!

Se você quiser rever essa mesma matéria, agora em vídeo, é só clicar aqui embaixo:

Referências e créditos

Sobre plágio e direitos autorais

Lei Nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm

Sobre o impacto na cultura

--

--