“Não estou criticando ele por estar cortando das universidades, estou criticando por estar cortando sem nenhum critério, por razões ideológicas”

Educação e Bem Viver
7 min readMay 31, 2019

--

Finalizamos a semana com #30M e mais uma entrevista polêmica da deputada que divide os corações brasileiros. Já aviso desde o começo que sou ecossocialista, professora e mestre em educação, então acho que está claro de que lado estou em relação a essas declarações.

https://www.instagram.com/xicogoncalves/

Já fiz uma explicação de dados e mitos da educação esses dias, no post (des)governo e educação pública: comentários. Ali eu encaro as questões:

1) O ensino público vem sendo sucateado há anos?
2) O investimento em Ensino Superior é maior que na Educação Básica?
3) A escola privada é melhor?;
4) Um dos problemas da escola pública é que sempre tem greve;
5) O problema do voucher é que continua sobrando para a população as mais baratas e piores escolas? e
6) Humanas não dá dinheiro?

Trago aqui embaixo rapidamente apenas dois gráficos da seção 2 e alguns dados do outro artigo, para partirmos de algumas premissas que estão claras:

  • O Brasil gasta mais por aluno do Ensino Superior do que da Educação Básica, mas gasta muito menos do PIB em Ensino Superior
  • Gastamos não apenas menos do que os melhores colocados no PISA (avaliação externa internacional de educação), mas muito menos do que a média dos países da OCDE
  • Os investimentos em educação até 2015, apesar de cortes que sim aconteceram, estavam em uma reta de crescimento
  • Os resultados do Brasil no IDEB (avaliação externa nacional de educação) também, apesar de ainda ruins, também estavam melhorando a cada ano
Gasto por nível de ensino: por aluno (esquerda) e por PIB (direita)

O fato de essas informações nunca serem explicadas em entrevistas e nas declarações de grande parte dos comentadores da educação já é bastante problemático. Você que está lendo isso, sabia que os gastos em educação no ensino superior, em números absolutos, não são maiores do que na educação básica? Aposto que não. Eu mesma demorei muito a descobrir isso e tive dificuldade de acreditar, já que se fala tanto o contrário.

Além disso, ainda que se invista mais por aluno no Ensino Superior, o Brasil ainda investe muito menos do que a média da OCDE. E quer cortar gastos na educação agora com a nova justificativa de que é porque não estamos atingindo os resultados esperados. Como pretendemos melhorar desempenho diminuindo investimento? Não faz sentido.

Créditos: Twitter/juyamauti

O podcast Durma com essa, do Nexo Jornal, fez ontem um episódio sobre Os cortes que levam estudantes às ruas. E a reação do MEC. Nele, eles explicam porque faz sentido falar em corte como sinônimo a contingenciamento (a partir do minuto 6).

Recomendo escutar! Mas em síntese: o orçamento do governo é previsto na Lei Orçamentária Anual, que pode ser descumprida sem qualquer consequência. Na prática, o empenho real pode variar de acordo com o arrecadamento do governo naquele ano, que depende de impostos. Como os impostos dependem do desempenho da economia e estamos com um prognóstico bem ruim (apesar das promessas de melhoria), a tendência é que ocorram cortes. A depender desse arrecadamento, faz-se uma revisão do orçamento que pode propor o bloqueio ou contingenciamento do orçamento.

Não é necessário voltar atrás e gastar o dinheiro bloqueado, e nem mesmo há uma garantia de que esses bloqueios temporários não se tornem definitivos. Na prática, o que ocorrem são cortes.

Crédito: Brasil de Fato PE

Assim, o que estamos falando é:

  • os melhores países no PISA hoje são os que fizeram maiores investimentos em relação ao próprio PIB ao longo de anos, e consequentemente tiveram também impressionantes melhoras na economia
  • de qualquer forma, a média dos países do PISA investe mais em educação do que o Brasil
  • o Brasil estava em uma ascendente de investimentos e desempenhos na Educação
  • agora, o Brasil está cortando investimentos na Educação com a justificativa de que a economia vai mal
  • e está cortando mesmo, porque naturalmente já haveriam prováveis contingenciamentos pela economia: para além deles, estão sendo feitos novos cortes

Percebam que estou aqui fazendo um debate sobre a gestão de investimentos na educação e sobre os resultados do PISA em diversos países. Não estou discutindo os próprios conceitos de educação, avaliação externa e economia.

Isso, por si só, é ao meu ver uma postura criticável. Não é possível não ser de esquerda e nem de direito e fazer um debate sem ideologia — todo discurso tem uma ideologia, e se você não está ciente da sua, provavelmente é porque simplesmente está seguindo a hegemonia. Mas se estamos simplesmente aceitando que sim, estamos fazendo um discurso dentro da ideologia hegemônica e que nem vamos debater a necessidade de uma transformação radical do Brasil, ainda assim é possível mostrar com dados que não há justificativas em termos de gestão para os cortes que estão sendo feitos.

Créditos: Twitter/PatoCorporation

Não dá para falar: a educação é prioridade e como é ruim vamos fazer cortes em investimentos. Isso não tem sentido lógico: se está ruim e é necessário melhorar, é necessário investir mais — como faz quem tem essa tal de educação melhor.

Só dá para falar que a educação é ruim e vamos cortar gastos se melhorá-la não é prioridade, se a educação não é importante.

Em tempo, aproveitemos para retomar brevemente o caso dos chocolatinhos.

O ministro, infantilizando o público, ao invés de explicar Lei Orçamentária e gastos obrigatórios, usa o argumento de que o corte anunciado de 30% seria fake news e que na verdade ele só “guardaria para mais tarde” 3 dos 100 chocolatinhos.

  1. Ele perde, assim, uma importante oportunidade educativa de conversar sobre orçamento público
  2. Ele não explica o que seria a diferença entre esses 30 e 3%: na verdade, é sim 30% do orçamento cortável, que é 3% do orçamento total
  3. Bombaram nas redes piadas sobre o Ministro não saber contar 30% de 100, quando na verdade o que ele está fazendo não é não saber contar, e sim manipular os dados e infantilizar o público
  4. Ao não discutir o que é orçamento cortável, segue a ideia pública de que ele está cortando “nas aposentadoria e salários absurdos de professores dinossauros da academia” — quando esses são exatamente os gastos obrigatórios, ou seja, que não foram cortados
  5. As pessoas, então, não entendem que ele está cortando exatamente no elo mais frágil da cadeia: funcionários terceirizados e acesso dos alunos a condições minimamente dignas (limpeza) e à própria universidade (eletricidade e água)

Em entrevista do Estadão a Tábata Amaral, aconteceu a seguinte conversa:

E: Vieram à tona nesse corte algumas discussões sobre o investimento nas universidades federais, que é cerca de quatro vezes maior do que no ensino básico. Tem também a questão das despesas obrigatórias bloquearem o orçamento. Um debate quanto à gestão seria bem-vindo, não?

T: Uma crítica que eu faço em relação ao ministro, e acho que essa é uma coisa pela qual sou criticada, inclusive dentro da esquerda, é por tentar sair um pouco desse embate ideológico. Não estou criticando ele por estar cortando das universidades, estou criticando por estar cortando sem nenhum critério, por razões ideológicas. Esse é o meu ponto. Concordo que esse debate sobre onde a gente investe mais deva existir. Ele é muito válido, só que não é o que está sendo feito agora.

Vamos pensar em novas formas de financiamento, tipo endowments (fundos patrimoniais) que o governo não quer implementar sabe-se lá Deus por quê. Tem outra coisa que é que quando a gente corta, tem que fazer OBZ (Orçamento Base Zero). Faço isso com minha equipe: você olha linha a linha. Tem faculdades e universidades que dá para cortar mais do que outras. Universidades que fazem uma gestão muito eficiente são penalizadas quando você faz um corte burro.

Fazer o tal do debate não ideológico, deputada, é assumir que você está dentro da ideologia dominante, OK, e a partir daí apresentar dados e falar de gestão.

A deputada deveria ter corrigido o dado totalmente contorcido e explicado que não se gasta 4x mais nas universidades federais do que na Educação Básica (na verdade de gasta mais de 4x mais do PIB em Básica do que Superior). Ela também poderia ter explicado onde serão feitos esses cortes e no que isso impacta. E aí explicado onde ela acha que esses cortes poderiam ser feitos, se ela não é contra. Essa resposta dada na entrevista não tem nada de técnica ou focada na gestão e orçamento.

No segundo parágrafo, no entanto, ela mostra a que veio. Discute o dinheiro isolado da educação, das consequências. Propõe o método de investimento/financiamento usado pelo financiador de sua campanha — os tais endowments, que são tão complexos e cheios de problemas.

Se você quer saber mais sobre os mecanismos de investimento dos endowments e os problemas que eles geram, inclusive, recomendo o filme Push. Nele, é explicado como endowments de aposentadorias investem, sem qualquer filtro, exatamente nas empresas e mecanismos que pioram a vida dos aposentados — e do povo.

Minha ideia com esse texto era aprofundar o debate sobre cortes na educação e demonstrar que não tem nada de “técnico” e “não-ideológico” nas falas de Tábata. Se você quer defender a deputada, podemos conversar — o que não dá é para defendê-la sem entender o que ela realmente está dizendo.

--

--

Educação e Bem Viver

Educadora e mestre em educação. Ecossocialista e defensora do bem viver.