Pensando o pensamento: a importância da epistemologia

Educação e Bem Viver
5 min readJun 3, 2019

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Não sei exatamente quando, mas em algum momento da minha adolescência eu comecei a me tornar rebelde com as ciências. Talvez fosse aquela raiva que sentimos quando, estudando para o vestibular, percebemos que todas as fórmulas de física levam como base uma realidade extremamente controlada e, portanto, não servem para nada no mundo real.

Por que decoramos fórmulas que não são aplicáveis ao mundo real? Se existe física einsteiniana, porque só aprendemos a newtoniana?

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Muito mais tarde, depois de bater muito a cabeça e achar que meu incômodo era só rebeldia por muitos anos, fui aprender no mestrado que ao estudar algo, podemos fazê-lo de modo ontológico ou epistemológico. Ao estudar o currículo escolar, podemos estudar a essência desse objeto de estudo (ontologia), ou seja, o que ele é, ou podemos estudar o que envolve o currículo (epistemologia), ou seja, como ele é, quais as relações em seu entorno.

Aprofundando o exemplo, estudos ontológicos sobre o currículo seriam coisas como “inovações no currículo”, “práticas pedagógicas e sua dimensão curricular”. Já os estudos epistemológicos iriam mais por uma linha de “filosofia do currículo”, “filosofia da educação”, “teorias sobre aprendizagem”. O objeto é o mesmo, mas a maneira de examiná-lo é distinta.

Exatamente entrando no campo dos estudos epistemológicos sobre o currículo conheci Foucault — e, na verdade, mais importante para mim, conheci os estudiosos foucaultianos do currículo, como Tomaz Tadeu da Silva e Thomas Popkewitz. Ambos os autores se preocupam não com a concatenação de disciplinas na escola, e sim com como o poder estrutura o conhecimento e consequentemente as disciplinas escolares.

Minha preocupação é com a forma como o poder se relaciona com o conhecimento” (…) “mas estou interessado também nas condições históricas dentro das quais predomina um discurso determinado.”

(Confesso que anotei essa citação em um caderno meu, sei que a frase é do Popkewitz e da página 13, mas não anotei de qual texto — erros de principiante).

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Ainda no mesmo texto desconhecido, Popkewitz diz:

“Minha dificuldade em separar os princípios teóricos e narrativos reside na convicção de que a narrativa é sempre um empreendimento teórico. Não existe um dado ou um fato sem teoria. Negar que a teoria esteja inserida naquilo que escrevemos é exatamente o que quero combater como uma prática social. Somos compelidos a questionar nossos trabalhos e os de outras pessoas para entender essa relação.” (p. 19)

Basicamente, o que minha rebeldia adolescente pulsava e o que compreendo hoje melhor nas palavras de Foucault, Popkewitz e Silva é: não existe conhecimento sem ideologia. Ou então: toda teoria está embasada em diversas outras teorias e formas de pensar.

Como pensamos a partir do que conhecemos (abordei isso brevemente na minha teoria do conhecimento), as teorias revelam também muito de quem as criou e do mundo e sociedade em que essa pessoa vive. Sociedade rurais por exemplo veem o divino na natureza, sociedades urbanas não conseguem ver o sol ou o mar como deuses — até por literalmente não verem o sol e o mar no dia a dia, não verem como os astros agem e seu papel na criação da vida.

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E isso importa para mim porque:

As teorias não flutuam no ar, no céu das ideias. Elas são criadas por pessoas, em suas sociedades e tempos, em seus contextos histórico-sociais, e são aceitas como verdade também por pessoas em seus contextos histórico-sociais.

Assim, escola, currículo, saberes escolares, são todos conceitos cujo significado tem uma pertinência no tempo e espaço. Tudo bem decidirmos usar escola para “qualquer instituição de educação”, mas é importante perceber que isso engloba uma quantidade gigantesca de sentidos diferentes.

Quando falamos por exemplo que São Paulo foi fundado a partir de um colégio, é essencial que entendamos a diferença entre ele e os que existem hoje ao redor do Pátio do Colégio. Quando falamos em professor, precisamos entender a diferença entre aquele da escola estadual de São Paulo em 2019 e o professor da educação pública de São Paulo em 1800. E eu nem estou falando para levarmos em consideração a escola indígena e o professor da Grécia Antiga.

Partindo dos conceitos para as teorias, quando falamos em conhecimentos escolares, é essencial sabermos que eles foram construídos social e historicamente. Termos geografia e não astrologia na escola não é algo que “é assim e sempre deverá ser assim”, e sim um reflexo de uma história de construção dessa escola e desse currículo.

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Toda idea tem uma raiz, um caminho, uma história. E é importante estudar esses caminhos.

Por isso, boa parte dos meus estudos foca no aspecto epistemológico. Mais do que o que essa escola ensina, importa porque essa escola criou esse currículo?.

A ontologia e a epistemologia, no entanto, têm uma relação de codependência como a teoria e a prática.

Acredito que o caminho é a práxis, ou seja, a teoria enquanto prática, ou a prática que tem a raiz em sua teoria e a teoria que tem a raiz na prática. Assim também, a ontologia e a epistemologia andam juntas.

Quero estudar porque essa escola criou esse currículo para discutir o que essa escola ensina, entendendo que é essencial entender os contextos, as relações de poder, e também como operamos no dia a dia. Ao discutir os cortes na educação, por exemplo, é importante entender o que são cortes, onde eles afetam, qual o histórico desses investimentos, e também entender quem está cortando, de que grupo de ações esses cortes fazem parte, quais são os interesses a que esses cortes respondem.

(Esse texto faz parte de uma série sobre porque eu acredito no que eu acredito)

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Educação e Bem Viver

Educadora e mestre em educação. Ecossocialista e defensora do bem viver.