Perspectivismo e multinaturalismo: outras epistemologias

Educação e Bem Viver
4 min readJun 4, 2019

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Nas Antilhas, alguns anos após o descobrimento da América, enquanto os espanhóis despachavam comissões de inquérito para saber se os indígenas possuíam alma ou não, estes tratavam de submergir prisioneiros brancos, para verificar, com base numa longa e cuidadosa observação, se seus cadáveres apodreciam ou não.
(citação de Lévi-Strauss na página 35 do livro metafísicas canibais do Eduardo Viveiros de Castro)

Eu sei que soa exagerado, mas essa citação e a reflexão que o Viveiros de Castro constroi em cima dela mudaram a minha vida. Eu li esse livro logo após ler A queda do céu, do Davi Kopenawa, e a junção dos dois oferecem uma olhada para outras cosmovisões que tornam evidente a nossa própria epistemologia.

Viveiros de Castro segue a anedota, primeiro, com uma reflexão sobre o caráter etnocêntrico do ser humano. Depois, explica que “foi a meditação sobre esse desequilíbrio que conduziu à hipótese perspectivista” (p. 36). Enquanto os europeus partiam da premissa de que o indígena tem corpo e duvidavam se o Outro tinha alma, os indígenas partiam da obviedade de que o Outro tem alma, e duvidavam se ele também tinha corpo.

Independentemente do que é aquele ser, o indígena tinha a certeza de que ele tem uma alma.

Isso é muito profundo para mim.

Para os Guarani Mbyá, todos os seres têm uma alma, o ñe’eng, a palavra-alma, e a alma humana tem a capacitada de manifesta o ayvu, o fundamento da linguagem e a conexão com o divino. Já n’A queda do céu, Davi Kopenawa explica que todos os seres tem uma alma, aparentemente sem distinções. E aqui não estou falando apenas dos seres que nós consideramos vivos, e sim realmente de todos os seres, englobando por exemplo a pedra. Em ambos os casos, não se duvida sobre a alma.

Na linha da alma Yanomani, o conceito perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro foi criado a partir de povos amazônicos com crenças semelhantes. Ele consiste na ideia de que os seres não-humanos (mortos, plantas, fenômenos metereológicos, animais, deuses, etc) são não-humanos apenas nesse momento de sua existência, mas são todos providos de uma alma semelhante.

Todos os seres são pessoas

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Essa alma comum tem manifestações “perceptivas, apetitivas e cognitivas” (p. 43), e uma dessas manifestações é o fato de que todos os seres “se veem como pessoas” (p. 43–44). Consequentemente, portanto, todos os seres são, de uma certa forma, pessoas.

Assim como o homem olha para si mesmo e vê pessoa, enquanto olha para a vaca e vê vaca. Já a vaca também olha para si mesma e vê pessoa, enquanto olha para a planta e vê vaca. E a onça olha para si mesma e vê pessoa, enquanto olha para o humano e e vê vaca. “Todos os seres se veem (‘representam’) o mundo da mesma maneira — o que muda é o mundo que eles veem” (p. 64).

Esse é perspectivismo: a ideia, nas minhas palavras, de que é tudo uma questão de perspectiva. Todo o ser se vê pessoa.

Isso, no entanto, não quer dizer que todos os seres são iguais ou homogêneos. “O que o perspectivismo afirma, enfim, não é tanto a ideia de que os animais são ‘no fundo’ semelhantes aos humanos, mas sim a de que eles, como os humanos, são outra coisa ‘no fundo’: eles têm, em outras palavras, ‘um fundo’, ‘um outro lado’; são diferentes de si mesmos” (p. 61).

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Aí entra o multinaturalismo: a ideia de que o natural não é a igualdade e sim a diferença.

Se o humano bebe cerveja e o jaguar bebe sangue, a questão não é que todos os seres veem algo como x, os humanos olham algo como sangue e os jaguares olham para esse mesmo algo e enxergam cerveja. “Só existe o limite entre o sangue e a cerveja (…), há, desde o início, um sangue|cerveja que é uma das singularidades ou afecções características da multiplicidade humano|jaguar. A semelhança afirmada entre humanos e jaguares ao fazer com que ambos bebam ‘cerveja’ não está lá senão para que melhor se perceba o que faz a diferença entre humanos e jaguares” (p. 67).

Não há uma supralíngua ou supramundo significante, não existe a bebida, ninguém bebe a bebida-em-si. Existe apenas/estamos todos apenas no sangue ou na cerveja. O problema, portanto, do perspectivismo ameríndio não é encontrar o significante comum e sim compreender que quando o Outro diz “cerveja”, o que ele quer dizer é “sangue”.

É algo como somos todos diferentes, e por isso, há algo de igualdade em todos nós.

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E por que isso importa para mim?

Falamos de epistemologia e a questão aqui para mim é também epistemológica. Compreender os diferentes povos existentes, e ainda mais existentes tão perto de nós, no Brasil, é interessantíssimo. Mas só saber que existem tantas cosmovisões já é muito inovador.

Abre minha cabeça conhecer a ideia de que há povos que pensam tão diferente, e de que há povos que acreditam que uma pedra olha para o mundo se vendo humana e vendo, talvez, o humano como uma pedra.

E dentro do ecossocialismo, tentar pensar através dessa epistemologia, em uma igualdade de todos os seres, é um golpe contra o antropocentrismo e a nossa economia que destroi o entorno pensando apenas no bem estar humano — ou melhor, de alguns humanos.

(Esse texto faz parte de uma série sobre porque eu acredito no que eu acredito)

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Educação e Bem Viver

Educadora e mestre em educação. Ecossocialista e defensora do bem viver.