Por que não é possível ser “nem de esquerda nem de direita” na educação — e na vida?

Educação e Bem Viver
8 min readApr 21, 2019

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(Texto adaptado do meu TCC de pedagogia)

Educação; ideologia; eficiência; gestão; hegemonia.

Recentemente ficou famoso o vídeo de Tábata Amaral cobrando o ex-Ministro da Educação Velez sobre seu conhecimento e propostas para a pasta. Se por um lado é refrescante ver alguém, ainda mais uma mulher jovem e periférica, questionando o absurdo que o MEC se tornou, por outro é essencial ficarmos atentos ao tipo de questionamento que é feito e ao tipo de educação que se está propondo.

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(Quem quiser falar sobre “não é hora de criticar”, recomendo que primeiro assista o “Não pode criticar”, da maravilhosa @teseonze)

Os temas da gestão educacional e da eficiência na educação são amplos e polêmicos, e recebem cada vez mais atenção do público. Em tempos de Escola sem Partido, esses temas vêm sendo reduzidos a uma discussão que rejeita a ideia de ideologia e tenta propor uma educação que cumpra com as promessas, sem fazer uma avaliação crítica, histórica e social sobre elas.

O que não se diz é que a própria ideia de gestão eficiente é, por si própria, uma ideia ideológica da nova direita (BALL, 2006). Compreendemos aqui ideologia como um sistema de crenças que envolve questões de poder; no conceito de Thompson (1984), a ideologia seria a significação que mantem as relações de dominação.

Ideologia da eficiência

De acordo com Ball (2006, p. 55–56) os inícios da disseminação teoria da gestão eficiente na educação na Inglaterra podem ser encontrados na sociologia da educação produzida pela London School of Economics em meados do século passado, e Goodson (2001, capítulo 10) relata discursos no mesmo sentido. O ideário difundido por essa instituição, em síntese, era baseado na justificativa de que o conhecimento seria formado a partir dos empregos comuns das pessoas, de suas vidas diárias. Como consequência, estipulam-se três dicotomias sobre os conhecimentos, que seriam: a) sensorial e concreto OU intelectual, verbal e abstrato; b) simples OU complexo e c) passivo OU ativo.

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Ball (2006) e Goodson (2001) fazem recuperações históricas dos inícios dessas ideias. Com base em uma manipulação dos fatos para associar as camadas pobres aos conhecimentos sensoriais, concretos, simples e passivos, e as camadas da elite aos conhecimentos abstratos, complexos e ativos, e para associar esses últimos tipos de conhecimentos aos que podem causar transformações na sociedade (uma vez que são gerenciados pelas pessoas que detém poder), camadas hegemônicas criaram a narrativa de que aqueles que têm “melhor” educação (BALL, 2006, p. 65) são os capazes de promover mais avanços sociais e individuais. A melhor educação seria aquela que causa mudanças sociais, e que só pode ser aprendida pelos ricos.

As verdades criadas por esse discurso são, então, vendidas para a sociedade separadas de suas origens. Quando experiências educacionais tentaram provar que qualquer classe social pode ser capaz de aprender conteúdos de qualquer tipo, elas foram alvos de golpes destruidores. São diversos os relatos de reuniões políticas coletados por Goodson (2001) em que se defende que “se as classes trabalhadoras fossem aprender ciências, o que iriam as classes médias e superiores aprender, para manter as devidas distâncias?” (GOODSON, 2001, p. 221). Ou seja, deveria-se criar um sistema educacional que segrega propositalmente as crianças de diferentes classes sociais, sob a pretensa ideia de que este sistema é o mais eficiente: entrega a cada classe social apenas o que ela pode aprender, promovendo assim o melhor uso de cada recurso.

Segundo Ball (2006, p. 58), a discussão sobre efetividade da educação tem diversos efeitos. Primeiro, coloca a escola como foco, como única causa para a performance dos alunos, excluindo qualquer fator social e econômico — assim, exima-se a importância da desigualdade e da opressão estrutural, e toda a responsabilidade recai sobre os professores e os alunos como indivíduos. Segundo, discute uma “excelência” acrítica que permite a seleção, divisão e punição daqueles indivíduos identificados como fracos ou inadequados, justificando a segregação social e consequentemente as desigualdades. E por fim, permite o controle das escolas através de indicadores chamados “neutros”, permitindo uma competitividade e hierarquização entre escolas, comunidades e pessoas.

Marcuse (1998) refere-se a esse sistema de produção de valores através de conceitos como “gestão” e “eficiência” como racionalização tecnológica, que tem como objetivo a manutenção do status quo (MARCUSE, 1998, p. 49). E alega que essa racionalidade é totalizante, tornando qualquer esforço de transgressão inútil, e impedindo qualquer fuga. Assim, a racionalidade tecnológica vai de encontro, pelo menos em tese, com a própria mentalidade libertária e individualista que a criou, tornando-se simplesmente uma nova forma de totalitarismo.

“A promoção da humanidade é submetida à promoção da eficiência. A eficiência da escola é algum tipo de zênite do modernismo intelectual, a final acomodação entre senso comum e pesquisa social. Uma acomodação que, talvez não surpreendentemente, dá espaço para manchetes estilo “Lista das escolas fracassadas” e “Professores incompetentes serão punidos” — estridentes em seu terror simplista. É claro que tudo isso se encaixa com várias outras medidas populistas e punitivistas do Novo Trabalhismo [nova direita] — horário de recolher para os jovens, zero tolerância (nas ruas e nas escolas), o assédio de pedintes (…).” (BALL, 2016, p. 61, tradução minha)

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De acordo com Bourdieu e Passeron (1970), as relações de força entre classes vão cada vez mais se escondendo ao longo da história, e a atual consagração escolar é uma maneira de ocultar, de modo mais sutil, as técnicas brutais de imposição de força. Os autores, assim como Foucault, defendem que as classes que estão no poder nele chegaram através da violência física, mas a partir de então passam a construir na cultura as justificativas para manterem o status quo sem a necessidade de continuar a opressão física.

“[…] a hegemonia atua para “saturar” nossa própria consciência, de maneira que o mundo educacional, econômico e social que vemos e com o qual interagimos, bem como as interpretações do senso comum que a ele atribuímos, se torna o mundotout court, o único mundo. Assim, a hegemonia se refere não à acumulação de significados que estão em um nível abstrato em algum lugar “da parte superior de nossos cérebros”. Ao contrário, refere-se a um conjunto organizado de significados e práticas, ao sistema central, eficaz e dominante de significados, valores e ações que são vividos. Precisa ser entendida em um nível diferente do que o da “mera opinião” ou da “manipulação”.” (APPLE, 2006, p. 39, grifos do autor)

Colonialismo

A situação do Brasil e dos países colonizados é ainda mais grave. Em O Local da Cultura, Homi Bhabha (1998) explica que nas jornadas colonizadoras pelo mundo o europeu cultivou a ideia de sua supremacia cultural, história e racial, um essencialismo civilizatória para se legitimar como dominador. Para isso, cria uma comunidade europeia imaginária, modelo a ser seguido pelo outro, o nativo, o marginal, o excluído.

Munanga (1999) trata da construção das identidades no Brasil, e comenta que o processo de mestiçagem brasileiro dissolveu a diversidade racial e cultural, homogeneizando a cultura e a sociedade, porém manteve a predominância e hegemonia do branco, da cultura do branco. O projeto educacional segregador no Brasil atinge um nível ainda mais alto de violência, uma vez que é construído sobre a destruição de diversas outras culturas aqui presentes e com outras matrizes de pensamento.

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A educação brasileira reflete uma cosmovisão que, além de elitista, tem raça e origem. Além de segregar o corpo e a mente, o complexo e o simples, e fazê-lo mantendo classes sociais historicamente construídas através da violência física, o faz criando a hegemonia de uma cosmovisão (eurocêntrica, iluminista, moderna) sobre outras cosmovisões (africanas, ameríndias).

É necessário, sim, garantir condições iguais para todos no mundo existente, e consequentemente no mercado de trabalho. É importante, sim, garantir a possibilidade de acesso de todos ao amplo arcabouço cultural construído pela humanidade. Mas é essencial reconhecer que a hegemonia hoje operante não foi construída com base na igualdade de oportunidades, e que a cultura sempre opera através de arbitrários.

Perseguir uma melhor educação para todos envolve, necessariamente, uma postura crítica e uma escuta ativa. É essencial perceber os diferentes agentes sociais e suas agências, é essencial perceber todas as exclusões e silenciamentos da educação que levaram aos problemas hoje existentes.

A construção da hegemonia ocorre através da violência simbólica, toda cultura reflete uma visão parcial do mundo e não há defesa não ideológica sobre a educação. Assim, não é possível discutir gestão de maneira supra política: ação educacional reflete uma ideologia, e o próprio conceito de eficiência e sua defesa na educação são ideológicos.

Referências bibliográficas

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APPLE, Michael W. Ideologia e currículo. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.

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BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução. SP: Francisco
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CHERVEL, André; COMPÈRE, Marie-Madeleine. As humanidades no ensino. São Paulo: Educação e pesquisa, 25, n2, p 147–170, jul/dez, 1999.

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Educação e Bem Viver

Educadora e mestre em educação. Ecossocialista e defensora do bem viver.