Ribeirinha por alguns meses
Em 2016, tive a oportunidade única de morar por alguns meses em uma comunidade ribeirinha na Vila Mangal, nível médio do Rio Canaticu, município de Curralinho, no sul da Ilha do Marajó, Pará.
Para uma pessoa que cresceu em São Paulo, morar em uma comunidade ribeirinha é virar o mundo de ponta cabeça. Conheça mais sobre uma forma totalmente diferente de viver.
Como são as casas dos ribeirinhos
Uma casa no Rio Canaticu tem poucos móveis. Uma mesa e cadeiras na cozinha para a refeição e possivelmente é só isso. Para relaxar durante a tarde, ou senta-se na cozinha (enquanto se toma um café) ou senta-se no chão.
Todos dormem em redes — até os bebês! Ao invés de berços, eles têm pequenas redes ao lado da de seus pais.
As casas são literalmente em cima do rio. Feitas de palafitas, são construídas em madeira local, em geral pelos próprios moradores, e no período sem chuvas (verão). Para saber qual a altura da casa para que as águas de inverno não a invadam, deixam uma estaca fincada até que caramujos coloquem ovas: eles nunca a depositam onde a água pode chegar. É acima do nível das águas que se constroem as casas.
O transporte e a locomoção
Não é só que as casas são em cima do rio: é que praticamente tudo é alagável, seja na época das grandes chuvas, seja simplesmente nas marés de rio ao longo do dia. Por isso, algumas casas das comunidades são unidas por ponte, mas normalmente chega-se no seu vizinho de barco ou até nadando.
Inclusive, tudo chega de barco na sua casa: do pãozinho feito pelo padeiro da comunidade pela manhã à venda de carne de caça que foi demais para seu vizinho. Tem-se também o costume do comércio ambulante por barcos: não é raro passar alguém que vem de longe vendendo utensílios.
Todo este contato com a água faz com que as crianças já nasçam, praticamente, peixinhos e que perto dos 10 anos já saibam pilotar barcos de pequenos motores (rabetas).
Pessoas-peixes também fazem parte da cosmovisão ribeirinha: cobra d’água, boto, pessoas das águas, entidades serpentes são presentes no dia a dia do real e do imaginário do Canaticu.
A culinária
Com todas as diferenças, uma coisa em comum é a cozinha: os utensílios em geral são os comuns de uma pessoa cosmopolita e muitas pessoas tem até eletrodomésticos (apesar da energia elétrica em geral só funcionar 2 horas por dia, movida a gerador a óleo).
Mas há ainda quem opte por cozinhas tradicionais com forno a lenha (na panela, um vatapá paraense saindo)!
As soluções tradicionais e locais ainda são as preferidas em termos de medicina e produção de alimentos. Na foto, uma família está produzindo um pó antibactericida e cicatrizante a partir da semente de uma planta endêmica.
Também são produzidos localmente a farinha de mandioca, os próprios barcos. Muitas pessoas trabalham nestas profissões, em engenhos tradicionais e montam suas casas de farinha e marcenarias ao lado de suas casas.
A questão do trabalho
Falo em profissões, mas talvez o mais correto fosse falar de subsistência em coletivo. A atividade que, propriamente, gera renda no local é ainda o extrativismo, hoje em dia focado no açaí. Este trabalho ainda é muito mal remunerado e perigoso.
Mas se não há terra seca, onde se planta? Algumas plantas nativas (como o próprio açaí) se dão bem em zonas alagadas ou de igapó. Já os ribeirinhos constroem plataformas e caixas de madeira onde fazem suas hortas. Até antigos barcos que estão com pequenos defeitos se tornam base para plantações.
Mas onde há uma terra seca, faz-se um campo de futebol. E o esporte por lá não tem nada de coisa de menino: todos jogam, meninos, meninas, mulheres e mães.
A diversão entre os moradores
Nas duas horas de energia elétrica (em geral entre 19h e 21h), muitas famílias passaram a assistir televisão. Mas, principalmente, os mais velhos carregam suas tradições culturais: colocam uma cadeira na varanda de casa e assistem o espetáculo diário do nascer da lua.
Também é comum acordar cedinho, passar um café e sentar na frente da casa para ver o sol nascer. Estes costumes fazem com que os ribeirinhos saibam, melhor do que qualquer tecnologia, ler exatamente as fases do céu e os movimentos da natureza.
Se engana quem acredita que a locomoção na região é difícil: ela apenas não segue a mesma lógica que a das grandes cidades. Não há, por exemplo, transporte público, e muitas famílias não tem barcos a motor, apenas a remo.
A Vila Mangal fica a algumas (em barco a motor, a remo seriam muitas) horas de distância da cidade mais próxima, ou seja, para chegar lá é necessário conseguir uma carona ou pegar o barco de transporte privado que passa diariamente.
O curioso é que este barco não tem muita hora para passar: ele vem pela manhã. Os ouvidos treinados da comunidade fazem com que quando o barco já está a meia hora de distância de suas casas eles o ouçam e se preparem para embarcar.
O barco grande, de companhia, que vai da cidade para Belém (e demora toda a noite), impressionantemente, também não respeita muito horários e acaba funcionando da mesma maneira.
A incrível experiência de conhecer a Vila Mangal ainda não é para todos: não há um modelo de turismo pensado ou estrutura para se receber pessoas. Mas a vida ribeirinha existe por todo o Brasil e por toda a Amazônia. Em algumas cidades, como Santarém ou Belém (PA), é possível encontrar pacotes para vivências em comunidade ribeirinhas pela região.
(Até aqui, esse texto é uma cópia do que foi publicado originalmente no Jardim do Mundo)
Uma lição indígena sobre a efemeridade
Na defesa de sua dissertação de mestrado na UNB, Célia Xakriabá Mindã Nynthê conta uma história sobre duas mestras Xakriabá, uma etnia indígena do tronco Macro Jê, Akwen, do norte de Minas Gerais. Na história, as duas mestras, dona Libertina e dona Lurdes, estão contando sobre suas construções tradicionais, em um curso na Universidade Federal de Minas Gerais, quando recebem de um estudante a proposta de aprenderem uma técnica que faria com que estas casas durassem para sempre. Sem hesitar, respondem:
“Não meu filho. Obrigado, mas isso é perigoso. Se aceito sua oferta, como é que vou ensinar meus filhos e netos a construir? A casa usada tem que se desfazer para eles observarem como fazer uma nova. Não é a casa que tem que durar, mas o conhecimento. Se a casa cai, mas fica a forma de aprender, a gente aprende e levanta outras.”
Em sua resposta, as sábias Xakriabá nos dão uma importante lição sobre a efemeridade da natureza e a essência das coisas. Este ensinamento é frequente entre os povos indígenas, que muitas vezes relatam acreditar que nós pertencemos à natureza e não ela à nós, e é comumente esquecido por nós, moradores das cidades.
Outra etnia, os Guarani Mbyá, acreditam na perenidade da natureza e de tudo que ela nos oferta. E como tudo o que precisamos nos é dado pelo planeta, seria tolo tentar tornar as coisas mais duradouras ou estocá-las: o que é estar sempre se renovando.
Estes pensamentos valem tanto para materiais e produtos que usamos quanto para sentimentos e situações que queremos que se prolonguem. Se estamos pensando em coisas concretas, vale o apelo de usar aquilo que é mais natural, que acaba mas que é compostável, que produz o tipo de lixo que podemos jogar no gramado e saber que está apenas colaborando. E se formos pensar em coisas abstratas, é importante separar também o que é apego do que é realmente felicidade.
A nossa presença e entrega nos momentos e a consciência de que eles são apenas passageiros não os torna desimportantes, e sim eternos. Outra característica dos povos Guarani é a de utilizar os mitos para perceber a repetição das vidas: somos partes da natureza e, como ela, cíclicos. Se, por um lado, é necessária a escuta do corpo e a criação de rotinas, por outro, tudo pode mudar a cada instante e é necessário percebermos o quanto isso é essencial para o avanço do todo.
(Até aqui, esse texto é uma cópia de parte do que foi publicado originalmente no Jardim do Mundo)
Ribeirinho ou indígena?
Ser indígena é ter como referência primordial a relação com a terra em que nasceu ou onde se estabeleceu para fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no sertão, uma comunidade de beira-rio ou uma favela nas periferias metropolitanas. É ser parte de uma comunidade ligada a um lugar específico, ou seja, é integrar um ‘povo’. Ser cidadão, ao contrário, é ser parte de uma ‘população’ controlada (ao mesmo tempo “defendida” e atacada) por um Estado. O indígena olha para baixo, para a Terra a que é imanente; ele tira sua força do chão. O cidadão olha para cima, para o Espírito encarnado sob a forma de um Estado transcendente; ele recebe seus direitos do alto.
(Viveiros de Castro em Os involuntários da pátria)
A comunidade ribeirinha onde vivi não é indígena no sentido legal da palavra, mas sim no sentido antropológico de Viveiros de Castro. É uma comunidade que vê a terra aos seus pés como sua raiz, que se vê pertencente à terra e não dono dela.
É um povo que acorda sem despertador mas sempre antes do dia nascer, marca horário com base na chuva ou no sol, cria a rotina da vida sobre a estação do ano. Eu morava na casa de um senhor que sempre sabia a hora e o ponto no céu exatos do nascer da lua, e de uma senhora que conseguia distinguir qualquer som a km de distância no silêncio da floresta.
Os peconheiros sofriam por vender o açai a um preço irrisório (1 real o kg de fruta), mas isso não mudava seu modo de viver. Se ganham pouco não trabalham horas impossíveis a cada dia, e sim criam outras maneiras de subsistência. E o açai mais bonito de cada manhã é sempre o que vai ser comido pela família, nunca vendido.
Por que isso importa para mim?
Conhecer outras epistemologias e cosmovisões no papel é uma coisa. Mas viver uma vida pautada na natureza é uma experiência totalmente impactante.
Voltei para São Paulo com dificuldade de andar na rua, com medo de atravessar porque os barulhos e luzes me confundiam. Passei meses sem conseguir comer em um lugar público porque as refeições no Canaticu eram um rito em que cada um fala por vez, mas todos têm sempre a chance de falar: e portanto o ato de comer podia se alongar por horas.
Viver no meu corpo a saúde de uma vida da floresta trouxe para a carne o que eu nunca poderia ter aprendido apenas na razão. E conhecer outras formas de viver e a absoluta incapacidade da escola de acolhê-las e reconhecê-las me fez repensar totalmente o papel e forma da escola.
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