Tempo de nascer

Alex Bretas
Educação Fora da Caixa

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A resposta que recebi da Luísa

Veja aqui a carta que gerou essa resposta.

São Paulo, 2 de outubro de 2015,

Sim, grávida de sonhos! Alex, que presente foi receber a sua carta e reconhecer nas suas palavras um profundo cuidado e delicadeza com algo que me é tão querido. Suas palavras têm a força de quebrar muros e construir pontes! Muita gratidão por esta instigante oportunidade de reflexão, de diálogo e de novos olhares.

Quero compartilhar com você o meu encantamento com a capacidade de conexão do ser humano quando impulsionado por essa curiosidade de qual você fala, que é movida pelo saber interno e pelo potente desejo de desvendar o desconhecido. Fico maravilhada com as sempre surpreendentes conexões que se estabeleceram neste percurso de encontrar pontos de interseção nas nossas jornadas do saber, descobrindo o belo diálogo entre nascimento e aprendizado. Ler e reler sua carta me rememora da fecunda conversa que tivemos e de quantas janelas para infinitos jardins se abrem quando nos permitimos de fato ouvir e dizer, em uma troca ambientada pelo respeito e acolhimento.

A primeira conexão ocorreu na estreia do CDI em São Paulo (já vai fazer um ano!), quando no almoço você captou a minha vontade e o meu pensamento, que estava (e ainda está) em construção. Eu não encontrava palavras claras para expressar o que fazia tanto sentido para mim a respeito das questões relacionadas ao nascimento, e você desenhou esta nuvenzinha de ideias num guardanapo. Tudo ficou mais simples e mais complexo. Como lhe contei, aquele guardanapo ficou colado na parede da minha casa e também nas minhas reflexões.

Até que a segunda conexão aconteceu! Alguns meses se passaram sem que eu retomasse aquele desenho pra valer. Um dia, caminhando na rua, tive um insight sobre a provocação que você me deu de presente naquele pedaço de papel. Rapidamente rabisquei algumas linhas para não perder as ideias. E o que aconteceu? Poucas horas depois recebo uma ligação sua, me chamando para conversar e retomar aquele assunto. Nesta altura, além de impressionada com a “coincidência”, eu ainda me perguntava: “por que será que ele se interessou tanto pelo assunto da doulagem?”

Fui para o nosso café e que delícia de conversa tivemos. Novas conexões, compreensões, troca de conhecimento e perspectivas. Quase ao final, mesmo certa do sentido pleno que fazia tudo que havíamos acabado de conversar, eu ainda não entendia muito como poderia ajudá-lo de fato. Então você me contou sobre uma parte do seu projeto que consistia em escrever cartas para pessoas que, de alguma forma, dialogavam com os saberes que você está construindo no seu doutorado informal. Preciso lhe dizer da profunda surpresa e verdadeira alegria quando soube que eu seria uma de suas remetentes.

O impacto desse convite ainda reverbera em mim. E reverbera porque foi um novo lembrete para que eu confiasse na minha capacidade, na potência do meu desejo e na força da partilha. Compreender que somos todos capazes de afetar e colaborar com o outro, independentemente do estágio em que estejamos no processo, ainda não é algo natural e constante. Somos filhos de uma educação e um sistema que nos forma a aceitar e, muitas vezes a ingenuamente acreditar que quem vale é aquele que já chegou. Por isso são especiais os lembretes que a vida dá, mostrando-nos quão valioso é o caminho. Como diz a canção de Siba e a Fuloresta: “toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar”.

A mais recente sintonia aconteceu no momento escolhido por você para publicar no blog a carta que me escreveu alguns meses atrás. Mesmo sem nos falarmos já há algum tempo, ela chega em um momento em que eu, grávida de sonhos, sinto-me muito prestes a parir!

Alex, lembro-me que em nossa conversa lhe contei sobre os partos que acontecem com menos ou mais semanas de gestação do que o considerado “normal” e como isso é um problema para os sistemas que insistem em padronizar a vida. Mesmo a mãe e o bebê estando saudáveis, há uma intensa pressão para que aquele nascimento aconteça dentro do prazo estipulado no calendário.

Numa concepção e prática humanizada do nascimento, existe a presença de uma equipe que zela pelo ambiente e segurança daquele trabalho, mas dá-se tempo ao que precisa de tempo, movimento ao que pede movimento, espaço para o que precisa expandir, recolhimento para quando é percebido o silêncio. Assim, cada um dos indivíduos ali presentes tem a oportunidade de se conectar com o que é necessário, aprender com o processo e superar os conflitos internos que o viver autônomo e autêntico pode trazer.

Quando você me pergunta se estamos, na educação, negligenciando o processo e focando apenas no parto, acredito muito que sim! Sem contar nas vezes em que forçamos e violentamos esse parto, ou o transformamos em uma extração cirúrgica. Não enxergo a metáfora entre o nascimento frio e a educação apressada ou violenta como uma simples coincidência ou paralelo, mas talvez como diferentes frutos de um mesmo vício social. Afinal, a linha de produção não pode parar.

No Brasil, além de sermos campeões no número de cesáreas desnecessárias e termos altos índices de violência obstétrica, colocamos horários rígidos para a amamentação e nos afligimos se aos seis meses de idade o bebê não senta sozinho ou se com um ano de vida ainda não anda. A alfabetização deve estar perfeita com x anos e a tabuada na ponta da língua com y. As fórmulas e datas históricas devem ser memorizadas para que a resposta seja a certa na prova do vestibular.

Nestas práticas, o desejo interno, a pulsão de cada indivíduo em sua busca pelo conhecimento fica perdida no meio do caminho. Se pensarmos, então, que o prazer engravida e que estamos valorizando mais os resultados apressadamente “nascidos”, como pode haver partos se não há gestação, ou seja, se não há prazer ou desejo? O que estamos, então, parindo em nossa educação? O que está nascendo, de fato? Por isso achei muito linda, profunda e urgente a sua reflexão: “Quem sabe com mais jardins nascidos do desejo autêntico de cada um tenhamos paisagens coletivas mais desejadas por todos nós?”

Quando o desejo é autêntico, assim também é o caminho. Todo o trajeto é aproveitado e, como você disse, todas as pequenas conquistas merecem ser celebradas. Por isso não existe data marcada para o nascimento de um filho, de um aprendizado, de um projeto. A referência de tempo é interna.

Não sei se compartilhei isso com você, mas muitas doulas e parteiras contam em seus relatos que é bem comum que as mulheres, instantes antes de parirem, digam que vão morrer. Muitas acreditam que vão, literalmente, morrer. Em alguns casos, essa sensação pode trazer alguns bloqueios que travam a conclusão do parto. Quando, então, as mulheres de alguma forma elaboram essa percepção e se entregam para uma morte simbólica, um canal se abre e o nascimento, enfim, acontece.

O momento do parto é a expulsão de algo que não cabe mais ali apenas, que precisa expandir, que precisa ser entregue ao mundo. Essa entrega é difícil e dolorida e, ao mesmo tempo, vigorosamente prazerosa e transbordante. Por isso, é o momento que carrega em si o luto e a vida; a transmutação.

Penso que algo parecido aconteça no processo de educação e me alinho a você quando diz do paralelo entre a doula e o mentor. Enquanto a primeira, no parto, é uma figura de confiança na qual a mulher pode encontrar apoio para suas elaborações, o papel do mentor no caminho de parir um sonho é também amparar, estar ao lado, incentivar, propor alternativas quando o esgotamento se achega e vislumbrar junto o milagre do nascimento que está por vir.

Lembro-me que te contei que os projetos e sonhos que fazem mais sentido para mim são aqueles que eu mais tenho dificuldade de colocar em prática, de entregar para o mundo. Talvez isso carregue alguma semelhança com o que ouço de muitas mulheres: gostariam que seus bebês ficassem para sempre em suas barrigas, acolhidos, protegidos, embalados. No entanto, sabemos que uma gestação não dura para sempre. É preciso desapegar-se.

Sinto que a hora de parir já vem, posso vislumbrá-la mais à frente. Dizem que, dos nove meses de gestação, os primeiros oito passam voando e o último dura uma eternidade. A barriga já pesa, não há posição, é difícil respirar. E aqui — grávida de tantos sonhos — também já é quase insuportável, cansativo e desgastante ter só para mim este projeto longamente gestado, ainda que inconcluso. Ele precisa nascer! Só então conhecerei seu rosto e seus modos de viver.

Após o nascimento, intensifica-se o chamado da natureza para o exercício da confiança na potência do filho e do sonho. O pós-parto é o período em que as mulheres declaram vivenciar o aprendizado mais intenso: a não possibilidade de controle. Cuidar de um bebê, amamentá-lo, acalentá-lo, acolhê-lo é um ato de profunda entrega e fé.

O relacionamento com o filho, até então vivenciado em relação muito interna e particular, ganha amplidão. Ele não está mais dentro, agora está fora. Por um longo período — conhecido na maternidade como puerpério — essa relação será ainda simbiótica: mãe e filho se entendem como um só ser. É tempo de se conhecerem, dia a dia. Lembro-me novamente de Erich Fromm e seu conceito sobre o amor. Para ele, o amor não é algo dado, mas uma arte a ser talhada diariamente. O cuidado, a responsabilidade, o respeito e o conhecimento — em relação ao outro e consigo — são os instrumentos que possibilitam essa construção.

À medida que os meses passam, porém, o bebê e o sonho vão ganhando autonomia e vontade de mundo. O que vem pela frente nós, parideiras, não temos como prever. O sonho vira filho e o filho vira sonho num infinito de desejos, curiosidades, gestações, partos, nascimentos e entregas. Confiança no cultivo e fé no que virá!

Obrigada pela partilha,

Luísa.

Cartas

Este texto dá continuidade à série de cartas do livro da Educação Fora da Caixa. A ideia é escrever intimidades a pessoas que abriram novas portas em minha jornada no campo da aprendizagem.

Leia a outra carta que já publicamos: Carta a Paul Feyerabend

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Alex Bretas
Educação Fora da Caixa

Alex Bretas é escritor, palestrante e fundador do Mol, a maior comunidade de aprendizagem autodirigida do Brasil. Saiba mais em www.alexbretas.com.