As origens do futebol feminino no Brasil

Ela faz história
6 min readJul 11, 2019

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A Copa do Mundo feminina desse ano, na França foi um sucesso. Em sua oitava edição, teve jogos de alta qualidade, recordes de audiência, muito engajamento pelas redes sociais, principalmente no twitter, e certamente foi um grande passo para esse esporte que só tende a crescer. Tem tudo pra ficar marcada na história. E falando em história, você sabe alguma coisa sobre como começou o futebol feminino no Brasil? Essa discussão esteve presente durante o último mês, e ficou bem claro que, apesar de sermos considerados o “país do futebol”, somos, na prática, o país do futebol masculino.

Sentimos orgulho das nossas jogadoras nessa última copa, mas e as que vieram antes? foto: Reuters

Desde que chega ao país, no final do séc. XIX, o esporte ganha cada vez mais força entre os homens, enquanto as mulheres ocupam um espaço secundário, nas arquibancadas — se conta que a origem da palavra “torcida” tem a ver com a presença delas no estádio, que torciam luvas e lenços devido ao calor que fazia durante as partidas.

Torcedoras do Fluminense, no início do séc. XX. foto: acervo do Fluminense

Diante de um esporte que dentro de algumas décadas se espalharia por todas as regiões, entre todas as classes e se consolidaria como o mais importante do país, é evidente que as mulheres também se interessam por jogar. A partir de 1930, surgem alguns times de futebol feminino no sudeste do Brasil, em especial no RJ, que até 1940 possuía cerca de 10 equipes amadoras — logo silenciadas.

Jogadoras do Primavera Atlético Clube, clube do subúrbio do RJ. foto: Editora Hanoi

Ao decretar a lei 3.199, que dizia que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza” (art. 41) em 1941, o Conselho Nacional de Desportos praticamente afirma que o papel da mulher na sociedade é gerar filhos, e transforma o futebol feminino em crime. Em 1965, durante a ditadura, a proibição piora com a publicação de uma lista de esportes proibidos pra mulheres, na qual estava o futebol.

Arquivo Nacional/Museu do Futebol

Em 1979, após quase 40 anos de proibição, enquanto o futebol masculino do país já era tricampeão e suas competições nacionais floresciam, essas leis finalmente foram banidas — e dentro de alguns anos começaram a surgir ligas regionais e nacionais femininas desse esporte, enquanto a primeira seleção feminina aparece em 1988.

Matéria da Revista Placar com as 18 jogadoras convocadas para representar o Brasil no Torneio Internacional de Futebol Feminino de 1988. Acervo Suzana Cavalheiro

No entanto, em 1958, durante o período em que o futebol feminino ainda era ilegal, ocorre um fenômeno pioneiro na história do país: a criação do Araguari Atlético Clube, primeiro time feminino desse esporte a ganhar fama e cobertura midiática.

Conhecidas como as pioneiras do futebol feminino, jogadoras do Araguari A.C. foto: Acervo Araguari Atltético Clube

Na época, uma escola municipal de Araguari, a Visconde de Ouro Preto, estava passando por dificuldades financeiras, e a diretora teve a ideia de fazer uma partida amistosa de futebol com o time da cidade para arrecadar dinheiro. Porém, em cima dessa ideia, propôs-se a de fazer um jogo entre mulheres, pois chamaria mais a atenção. Mais de 40 estudantes da cidade se inscrevem pra jogar, e após uma “peneira” de jogadoras, então, surge o time feminino, que foi um sucesso instantâneo.

foto e legenda: Acervo Araguari Atlético Clube

Na época, chamou a atenção da revista “O Cruzeiro”, que publicou uma matéria inteira sobre elas, intitulada “As mocinhas de Araguari”. Também despertam curiosidade nas cidades vizinhas, e logo vão para Uberlândia e Belo Horizonte para jogar.

Foto do clássico feminino entre América e Atlético, no Independência, em 1959, com as jogadoras do Araguari. Estádio de Belo Horizonte recebeu 20 mil pessoas na 6ª Festa dos Melhores, do Diário da Tarde. foto: EM

Depois, em 1959, ganham alcance nacional e fazem uma turnê pelo Brasil, passando por cidades como Rio de Janeiro, Salvador e Goiânia, mostrando seu bom futebol.

foto e legenda: Acervo Araguari Atlético Clube

No mesmo ano, são convidadas para jogar no México, e são vetadas de fazê-lo pelo governo, que descobre o sucesso que o time está fazendo e relembra da lei de 1941. Depois desse impedimento, o time encerra suas atividades, não sem deixar essa bela história de estádios lotados e jogos disputados pelo país.

As Jogadoras do Araguari em uma reunião, 2009. foto: Teresa Cristina/Arquivo pessoal

O exemplo do time de Araguari ilustra muito bem algo que pudemos ver agora com a Copa: existe, e muito, o interesse no futebol feminino no nosso país — afinal, como já dito, somos o país do futebol. O que não existiu e ainda existe pouco é apoio institucional, incentivo social e investimento, obstáculos que, junto com o machismo que permeia o meio esportivo e o geral, nos afastam dessa prática que tem efeitos indiscutíveis na sociedade brasileira. Qualquer um que acompanha futebol sabe o quanto o esporte permeia nossas relações e faz parte da nossa identidade. Dessa forma, é injusto que as mulheres ainda não tenham seu espaço também estabelecido e respeitado.

Outra coisa que fica clara ao contar a história do Araguari é que, como historiadoras, sabemos que não seria possível falar dessa história sem os relatos, documentos, fotos e fatos coletados pela jornalista Teresa Cristina Cunha, cujo pai, Ney Montes, idealizou o Araguari AC e acompanhou o time feminino durante o curto tempo que existiu. Tão importante quanto fazer história é registrá-la, e enquanto fazíamos essa pesquisa, percebemos a grande lacuna que existe nessa área de estudo. São poucos os artigos, matérias e livros sobre a origem do futebol feminino que encontramos, e isso pode se dar, em partes, pela falta de documentação da época, já que o esporte provavelmente acontecia na “clandestinidade”.

Ressaltamos também que, mesmo falando de futebol feminino, os autores que lemos para essa pesquisa são predominantemente homens, algo que mostra que, ao tratarmos de futebol, mesmo que seja o praticado por mulheres, ainda nos deparamos com uma área muito masculina — algo que também pode ser sintomático da falta de produção de textos sobre o futebol feminino. Gostaríamos de destacar aqui o trabalho de uma historiadora, Aira Bonfim, que pesquisa sobre as origens do futebol feminino e ajudou a implementar o Centro de Referência do Futebol Brasileiro.

Em síntese, queremos mostrar que, ao falar de futebol feminino no país, temos que levar em consideração o contexto histórico e os fatores que prejudicaram sua existência e que agora prejudicam seu desenvolvimento, e devemos, a partir de agora, assumir certas responsabilidades com esse esporte. Coisas básicas, como acompanhar os times brasileiros, cobrar investimento e visibilidade, nos preocupar com a condição do esporte no país desde a base e mostrar que dessa vez o futebol feminino não vai ser silenciado como em 1941 — mas sim que ele veio pra fazer muito barulho. Porque o que as torcedoras do Flu, as primeiras equipes amadoras em 1930, as jogadoras do Araguari, Sissi, Formiga, Marta e todas as que representaram nossa seleção, nossos clubes e nosso país têm em comum, é que todas elas fizeram e fazem a história. Cabe a nós levar esse legado adiante e continuar fazendo história — e se possível, jogar um pouco de bola também, né?

As fontes que usamos neste trabalho são muitas e são ótimas. A primeira que destacaremos é o museu online da Visibilidade para o Futebol Feminino, a versão virtual da área de futebol feminino do Museu do Futebol — inclusive, para quem é de São Paulo ou vai passar por lá até outubro, não deixe de prestigiar a exposição CONTRA-ATAQUE!

A seguir, anexaremos algumas threads ótimas do Twitter sobre o assunto:

do @sescsp, sobre futebol feminino no Brasil

do @renan_damasceno, sobre o especial Pioneiras FC

do @historiadofut11, sobre o Araguari AC

Recomendamos como leituras complementares os seguintes textos, que utilizamos de base para fazer o nosso:

Você sabia que o futebol era proibido para mulheres no Brasil até 1979?

O futebol feminino já foi proibido até pela lei brasileira, mas segue na luta pela emancipação

Há 40 anos, mulheres ainda eram proibidas de jogar futebol no Brasil

Aira Bonfim, a pesquisadora que resgata a verdadeira história do futebol no Brasil

entrevista sobre futebol feminino com Aira Bonfim

Pioneiras do esporte proibido: histórias do início do futebol feminino no Brasil

Araguari, berço do futebol feminino

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Três estudantes de História (UFRGS) contando a trajetória de mulheres brasileiras e divulgando a pesquisa feminina. Vamos democratizar o conhecimento!