A tal da natureza humana

Elayne Pontual
5 min readApr 19, 2019

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Releitura do quadro Operários, de Tarsila do Amaral. Autora: Gabi Torres

Você consegue perceber as diferenças e semelhanças entre aqueles que têm suas vidas ameaçadas há longos anos por conta de suas origens, cores, crenças, ideias, sexualidade, gênero e aqueles que os ameaçam? Aponto duas semelhanças: ambos são humanos e têm medo. Sobre as diferenças: um tem medo de uma ameaça real e, por isso, precisa de amparo e o outro alucina em suas batalhas subjetivas e precisa de qualquer coisa que o faça começar a entender ao menos sua própria complexidade.

Você sabe também as diferenças e semelhanças entre o agressor que tem todo o suporte da sociedade e de instituições, tem comida na mesa, mas delira em seus preconceitos, e aquele agressor que teve toda a sua vida desconsiderada como vida desde antes do seu nascimento? Semelhanças: são humanos e têm medo. Diferenças: um, como dito, está delirando, não concatena com a realidade e precisa urgente de suporte para começar a compreender a complexidade da vida e entender de uma vez por todas que o “eu” reflete no todo e vice versa (e temos potencial para essa compreensão, mais a frente tento explicar isso). O outro, por outro lado, está à míngua, não tem nenhuma perspectiva de futuro e rasteja na existência porque sobrevive como pode.

Ambos são agressores por serem vítimas de um sistema criado e alimentado por humanos que tentam, a todo o custo, se desumanizar. As crises do Brasil ou de qualquer país nesse planeta vão muito além da corrupção. Na verdade,o sistema precisa da corrupção, assim como da ignorância sobre nós mesmos, para continuar funcionando. Isso é muito louco, eu sei! Humanos que desumanizam. O mais importante na vida toda de alguém parece ser o ter e esse alguém fará o possível para conseguir ter a ponto de ser mais que os outros. Essa é a lógica.

E nesse ponto, inevitavelmente, entramos no campo metafísico que é motivo para debates infinitos (os melhores, claro). Conheço algumas pessoas, e até já flertei com esse tipo de raciocínio, que dirão: “O ser humano é egoísta e violento por natureza e não há o que se fazer a respeito disso.” Pois bem, essa questão sobre a natureza humana é antiga, tem sido debatida no campo filosófico e teológico há um tempo considerável, e agora ela também é alvo de pesquisas científicas.

Recentemente um grupo de pesquisadores de Harvard e Yale forneceram dados, coletados através de experimentos, que nos permitem analisar se nosso impulso automático — nosso primeiro instinto — é agir de maneira egoísta ou cooperativa. Os resultados foram publicado na revista Nature. Em resumo, a pesquisa sugere que nossas respostas intuitivas, nossos primeiros instintos, tendem a levar à cooperação em vez de levar ao egoísmo. Ótimo para nós e espero que mais pesquisas com esse foco sejam realizadas.

Mas, digamos que nosso primeiro impulso seja aquilo que costumamos chamar de “egoísmo”. Que no fim das contas sempre agiremos a nosso favor, pela nossa sobrevivência enquanto indivíduo — por mais que haja diversos exemplos de pessoas que se sacrificam em prol de outras, dando literalmente suas vidas por alguém ou por uma comunidade ou por ideias. Ainda assim, digamos que a maioria, e até mesmo essas últimas, tenha unicamente como o foco o “eu”, suponhamos que, quando elas fazem algo pelo outro, elas estejam apenas desejando serem vistas como heróis. E aí eu te pergunto: Por qual razão isso deveria nos fazer desistir de tudo e passarmos a aceitar nossos erros? De onde tiramos que “já que somos egoístas mesmo” devemos estimular esse tipo de comportamento?

A partir daqui, tudo será apenas especulação, suposições e eu adoro conversar sobre isso e levantar as mais diversas hipóteses, mas é preciso retornarmos sempre para o campo prático e lembrar que, independente da nossa natureza humana, seja lá o que isso queira dizer, há fatores externos a ela e que a influenciam em alguma medida. A realidade, até onde sabemos, é tudo aquilo que existe fora ou dentro da nossa mente, portanto é tudo aquilo que deve e, inevitavelmente, vai ser levado em consideração por nossa racionalidade. Por mais que a gente tente, enquanto estivermos vivos, não conseguiremos deixar de pensar por definitivo. Então, racionalmente, se sabemos que fazemos parte do todo e o todo faz parte de nós, por que estimular um raciocínio que exclui, que individualiza, que separa ou subtrai, muito mais do que acrescenta? Por que razão devemos concluir que as coisas são como elas são e que por conta disso o esforço para melhorá-las deve ser mínimo? Aonde queremos chegar com isso? Por qual razão devemos não desejar chegar em algum lugar? Por que apenas permanecer onde estamos se há possibilidades para um caminho melhor?

E é aí que, esse raciocínio de imutabilidade, da natureza humana egoísta, só pode nos levar a um lugar: ao da inércia . É na inércia que desistimos até de compreender a nós mesmos e aí voltamos para aquele sujeito lá de cima, aquele completamente perdido em relação a si, ao outro e à realidade. Tudo se esvazia de sentido e não há mais o ontem ou o amanhã, apenas o hoje, o tempo que conseguimos enxergar com os nossos próprios e limitados olhos. E nesse ponto voltamos para as vidas desconsideradas, já que esse é o destino delas mesmo. Já que é assim que as coisas funcionam e sempre vão funcionar. Percebe o quão irresponsável é essa lógica? Porque ela não se sustenta e no fim só nos leva ao esvaziamento de ideias. É contraproducente e, desculpa, é, portanto, uma burrice.

@tirasarmandinho

Inteligência, a meu ver, está mais para o não saber das coisas, porque quando você sabe você pensa que não há mais nada para além daquilo que se vê, que se acredita, que se aprendeu como única verdade. Portanto inteligência está mais próximo do continuar, do prosseguir apesar dos pesares, é acrescentar, é tentar compreender e entender que o nosso tempo não é nada em relação ao tempo do mundo ou do universo, é perceber que somos nada em relação ao todo, mas que fazemos parte dele e que, por isso, precisamos de tudo que se projeta dentro ou fora de nós.

O que significam 70 milhões de anos para seres que só vivem uma milionésima parte desse tempo? Somos como borboletas que pairam no ar durante um dia e pensam que isso é para sempre. (Carl Sagan)

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