No meu tempo era melhor: literatura respondendo o que não tem resposta

Enrico Pereira
4 min readJan 24, 2020

--

Na faculdade um professor vivia contando como o jornalismo vivia sua era de ouro antes da internet, como os alunos eram mais esforçados antigamente e como o mundo era um lugar muito melhor em tudo, basicamente.

Meus colegas todos tinham a inteligência de não ligar para o que ele dizia. Eu não tinha essa esperteza, não que eu acreditasse que as coisas estão piores, mas sempre que via um velho exaltando o passado eu levava a sério, me perguntava se eles tinham razão, pensava nisso o tempo todo, e o pior é que eu tinha certeza que nunca ia descobrir a verdade, que essa era uma dessas questões sem resposta que seguem sendo questionadas por séculos.

Um dia, sem esperar, a resposta veio e eu finalmente me libertei dessa dúvida. Foi importante para mim, e imagino que outras pessoas podem estar com a mesma inquietação, então resolvi escrever.

O começo do fim do meu mistério foi em uma tarde de tranquilidade no trabalho, resolvi usar o tempo livre para ler meu jornal digital (é isso mesmo, professor, um jornal que só existe na internet!) e descobri que pesquisadores da Califórnia estavam tentando entender o que leva os mais velhos a afirmar este tipo de coisa.

Inicialmente John Protzko, que conduziu o estudo, revisou resultados pesquisas que avaliavam a paciência de crianças (aquele teste famoso do marshmallow) e descobriu que, apesar de a maioria esmagadora dos psicólogos consideraram as crianças de hoje menos pacientes, elas na verdade têm conseguido esperar cada vez mais.

Então foi aplicado um questionário online para adultos, com perguntas de reconhecimento de autores. Independentemente da real performance do respondente, a página mostrava um resultado falso. Metade dos participantes era informada de que estava muito abaixo da média no teste, a outra metade descobria que estava muito acima dela. Os adultos que eram colocados para baixo tendiam a ser menos críticos dos jovens quando indagados sobre o assunto.

Em resumo, o estudo chega à conclusão de que nossas percepções sobre o passado mudam conforme nossas experiências no presente. Adultos que leem muito tendem a acreditar que toda sua geração lia muito. E um idoso que aos 65, por toda sua experiência, é mais sábio que um jovem de 20, tende a fazer uma projeção de que quando ele mesmo tinha 20 era mais esperto que esses jovens de hoje em dia.

Conhecer as conclusões do estudo já me trouxe um grande alívio. Então, tranquilo, eu pude relaxar e ler um livro para passar o tempo, e foi em um livro que encontrei mais uma prova de que os mais velhos estão enganados.

Uma ilustração de Portinari, estampada na capa do livro que eu estava lendo

A obra que li é um clássico super conhecido, conta a história de um homem que nasceu em uma família rica, sempre foi mimado. Na juventude começou a gastar o dinheiro dos pais de forma irresponsável, o castigo que recebeu foi um intercâmbio, teve que ir estudar direito na Europa. Só queria saber de levar uma vida tranquila e não foi um grande aluno, como podemos ver na passagem a seguir:

E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A Universidade esperava-me com suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel. (…) No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso.

Depois de enrolar, o jovem volta ao Brasil, não quer se casar porque acha as relações todas muito frágeis. Apesar da falta de empenho no geral, o protagonista alcança certo sucesso literário e intelectual, e até se torna deputado federal.

Não vou falar como o livro acaba. Toda a história que contei nos três parágrafos acima poderia muito bem ser sobre uma vida comum de um menino rico em 2020, mas foi escrita no século XIX. A obra que eu li foi Memórias Póstumas de Brás Cubas, um clássico indiscutível de Machado de Assis.

Muita gente não vê o valor da literatura, e pode ser difícil explicar para alguém que não lê todo o poder de um livro. Não li Machado de Assis com a expectativa de achar uma resposta para uma dúvida antiga que me perturbava. Li porque sim, e descobri algo revolucionário. Se todos soubessem dos vieses da memória e dos playboys do século XIX, talvez perdessemos menos tempo com discussões desnecessárias, com idealizações de um passado que nunca existiu, talvez não desgastássemos os mais novos com expectativas inatingíveis, e cobrássemos o que precisa ser cobrado mesmo.

P.S.: A edição que li de Memórias Póstumas é da editora Antofágica. Além de ser uma versão lindíssima do livro, tem notas de rodapé essenciais. Fica aqui a recomendação de uma obra maravilhosa.

--

--

Enrico Pereira

Jovem jornalista que é apaixonado por literatura, cultura e por aprender tudo que gera um bom debate.