"A pior pessoa do mundo" e a angústia de uma pessoa incrível

ENSAIO
8 min readJan 17, 2023

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Ricardo Evandro S. Martins

"A pior pessoa do mundo" de Joachim Trier, 2022

O filme “A pior pessoa do mundo” (direção de Joachim Trier, 2022) se passa em Oslo, capital da Noruega. A narrativa se dá em torno da protagonista Julie, papel interpretado por Renate Reinsve.

A história conta o percurso de sua vida por volta de seus 30 anos de idade. Nesse período, Julie está indecisa. Ela procura por alguma coisa entre a sua carreira profissional e seus relacionamentos. No decorrer do filme, em um ritmo muito próprio, ora alucinadamente, ora mais lentamente, até com flashbacks alheios, vamos descobrindo sua personalidade, as características dos coadjuvantes, e os motivos de suas angústias pessoais.

O filme se inicia com Julie cursando Medicina em Oslo. Rapidamente, ela entende que não é a concretude do corpo lhe interessa, mas sim a alma das pessoas. Termina com seu namorado à época e, depois de um tempo no curso de Psicologia, passa a entender que aquilo que procura é a imagem, seu olhar sobre o mundo enquanto fotógrafa.

É numa festa, em pleno inverno escandinavo, enquanto saía com um modelo a quem fotografava, que Julie conhece Aksel (interpretado por Anders D. Lie), um famoso cartunista, 10 anos mais velho que ela. Será seu novo namorado e logo morará com ele. É daqui que o filme ganha outro ritmo. Vamos descobrindo mais das motivações de Julie para tanta inquietação angustiante sobre sua própria vida.

“A pior pessoa do mundo” é uma reflexão sobre a geração de mulheres nesta década de 20 do século XXI. Suas angústias, indecisões de quem veio depois de séculos de lutas pelos direitos das mulheres, pelo direito de decidir sobre carreira, com quem dividir a vida, a quem amar, se vai ter filhos ou não, e pelo direito de decidir se prosseguirá com uma gestação não planejada.

Sobre isso, uma das cenas centrais do filme se dá no dia do aniversário de 30 anos de Julie. Enquanto sua mãe e sua avó falam sobre um artigo que ela escreveu acerca de sexo oral e objetificação sexual em tempos de #metoo — texto que viralizou no Facebook –, a narrativa em off do filme nos conta um pouco sobre a família de Julie.

Quando tinha sua mesma idade, sua avó já tinha tido 3 filhos e havia interpretado a protagonista da peça “Rosmerscholm” no Teatro Nacional. A câmera passa a focar então na mesa da sala de estar da casa da mãe de Julie, onde há fotos desta mesma avó, mas também de sua bisavó e das ancestrais mais antigas. O recurso usado pela direção é interessante. As fotografias em preto e branco passam para a grande tela em forma de slides, como se fosse uma espécie de documentário genealógico.

A voz em off da narradora vai nos contando sobre quais foram os destinos dessas mulheres, enquanto assistimos aos seus rostos sofridos: “aos 30 anos, a bisavô de Julie, Astrid, era viúva, sozinha e com 4 filhos; a trisavó de Julie já teve 7 filhos, 2 deles, infelizmente, já tinham morrido de tuberculose; a trisavô de Julie, Herta, esposa de um comerciante, com 6 filhos e um casamento sem nenhum amor; a ‘tataravó’ de Julie nem fez 30 anos. A expectativa de vida das mulheres da época era de 35 anos”.

Por isso, a história de Julie é a do seu próprio tempo, muito diferente das mulheres antepassadas. Julie é uma personagem de descobertas tardias. Tem 30 anos e não sabe o rumo a que seguir. Mas isso não é demérito nenhum em relação às suas ancestrais. Elas também provavelmente não sabiam o que queriam ser. Apenas não tiveram sequer a chance, como Julie tem, de se angustiar com o próprio horizonte aberto de escolhas, devido às opressões de gênero que sofreram, como a maternidade compulsória, além de guerras e de crises econômicas.

Aqui é importante lembrar de que “A pior pessoa do mundo” está tratando de uma mulher europeia, que vive o pleno estado de bem-estar social nórdico, com acesso à saúde, educação, bens de consumo. Sua vida é levada com o gozo das conquistas dos movimentos feministas, dos movimentos trabalhistas e pela ação do Estado norueguês que garante uma vida cujo viver não se pauta pela sobrevivência material diária.

É nesse contexto que o enredo se constrói com o protagonismo de Julie. Distante do nosso contexto latino-americano, a angústia de se ver livre diante de tantos caminhos e opções pode ser mais acentuada para a personagem de Julie. Mas, ainda assim, há os desafios de uma Europa contemporânea que enfrenta neofascismos, forças em marcha pelo retrocesso (backlash) de direitos, crise de imigração, retrocessos neoliberais, risco de uma guerra nucelar no Leste Europeu, e crise ambiental, lembrada no filme, como causadora de tantas culpas nesse espectro étnico e socioeconômico de Julie.

E quanto aos homens no filme, eles são coadjuvantes no enredo. Com um tipo de “psicanálise selvagem” sobre o filme, talvez se pudesse dizer que, mesmo assim, a ausência de afeto do pai de Julie, que aparece em apenas dois momentos na película, poderia ser a fonte central de tanta angústia para ela. Mas isso seria incorrer no risco de reduzir sua trajetória de autodescoberta à uma psicologização que resume sua angústia existencial à luta pelo amor de um homem ou de todo seu gênero.

Mas é bem significativa a cena em que Julie, com seu namorado à época, Aksel, estão na casa de seu pai, que nunca tem tempo, saúde ou outro motivo qualquer, para ir visitá-la no centro da capital norueguesa. Julie recebe de presente uma jaqueta esportiva de seu pai e, logo em seguida, surge sua meia-irmã na cena, mais nova, vestindo uma roupa igual. Julie, a “pior pessoa do mundo” está diante, portanto, de um fato: seu pai, quando não ignora sua existência, também não consegue torná-la singular aos seus olhos de nenhuma maneira, nem como “pior”, nem como “melhor” filha do mundo.

Mas Julie é especial ao menos para dois de seus namorados. Mesmo sendo mais velho e temendo incialmente seu frescor de vida e sua inquietação, Aksel é capaz de se apaixonar justamente pela indecisão de Julie. É o que ao menos ele diz para ela, quando estão encerrando o relacionamento amoroso deles por decisão dela.

Julie havia conhecido seu namorado seguinte, Eivind (interpretado por Herbert Nordrum), enquanto estava com Aksel. Julie é literalmente vista por Eivind em uma festa de casamento que entrou sem ter sido convidada, após ter fugido da festa de lançamento do novo desenho de Aksel. Na tentativa de não trair seus parceiros, os dois dividem toques e intimidades como dois adolescentes. E Eivind acessa as fantasias mais íntimas de Julie — como a de ter tesão por endurecer o pênis amolecido de seu parceiro. Ela é vista pelos olhos dele, faz-se ver e se vê a si mesma como alguém capaz de ser quem ela quiser — como uma falsa médica ou alguém com apenas um nome, incapaz de ser procurada nas redes sociais.

Mas é Aksel que acaba por ver Julie de modo mais admirador. Sentado sobre sua cama, num quarto de hospital, na véspera de uma cirurgia para tratar seu câncer no pâncreas, Aksel dedica à Julie seu amor. Ela foi sua namorada mais especial, aquela a quem ele tentou mostrar o quanto era incrível, pois tem tempo de vida, juventude e pode ser quem ela quiser ainda.

Aksel talvez seja o representante da geração anterior a de Julie. Ele é daquela última geração offline, de um tempo em que a cultura era muito material, e que se vê, hoje, defasado e diante de muita incompreensão, sem conseguir acompanhar os debates da mídia, seus novos critérios e parâmetros. E a noção própria de arte de Aksel, enquanto, segundo ele mesmo, espaço terapêutico aberto e perigoso, é confrontada com a acusação de só estar usando seu privilégio para zombar de pessoas mais fracas por meio de seus desenhos.

Julie está em dialética com todas essas pessoas e sentimentos singulares: com sua mãe, avó, mulheres do passado mais longínquo de sua família, com a ausência de se pai, com a admiração e angústias de seus relacionamentos com Aksel e Eivind. E também Julie está em dialética com a gravidez indesejada em que se encontrou. As angústias de Julie são o eixo dessas situações, inclusive diante da morte iminente de um de seus namorados — que diz já não ver mais futuro do que passado em sua vida.

Mas o filme se encaminha para a dissolução de algumas dessas angústias — carreira, gravidez e relacionamentos. E o sol nasce de novo no horizonte. Julie se vê sem tanta liberdade quanto pensava e, por isto mesmo, tem algum alívio na sua angústia. Pois só é angustiado quem existe e quem está no mundo diante de tantas possibilidades, de tantos arbítrios livres, no limite de sua própria finitude, na busca por sua singularidade — seja por ser a pior ou a melhor pessoa do mundo.

Vida e morte não estão sob a escolha de ninguém. E a trajetória narrativa de Julie talvez esteja em aprender aquilo que, no seu O conceito de angústia (1844), o inaugurador da filosofia existencialista, o dinamarquês Søren Kierkegaard — um escandinavo como Julie — nos disse sobre estar angustiado diante dos caminhos da vida. Ao comentar sobre um personagem dos contos dos irmãos Grimm, o filósofo diz que “aquele que aprende a angustiar-se corretamente, aprendeu o que há de mais elevado”.

Segundo Kierkegaard, esta é a aventura pela qual temos de passar: “a de aprender a angustiar-se, para que não venham a perder, nem por jamais terem estado angustiados nem por afundarem na angústia”. E a personagem de Julie em “A pior pessoa do mundo” talvez tenha aprendido esta lição existencialista: que a angústia não cessa; é o preço alto da nossa liberdade e do nosso fim iminente, totalmente fora do alcance de qualquer escolha.

Enfim, por meio de Kierkegaard, podemos aprender com as histórias de Julie e dos personagens ao seu redor que nos angustiar serve justamente para que não nos afoguemos na nossa própria angústia e para que possamos aprender uma última lição: que podemos ser incríveis na ordinariedade angustiante de nossas vidas, ao menos para algumas pessoas que passam por nós, aquelas que nos lembram de que somos nossas vicissitudes, angústias, injustiças, sendo singulares sem sermos especiais. Nem a melhor, nem a pior pessoa do mundo. Incríveis.

SOBRE O AUTOR

Ricardo Evandro Martins é professor de Teoria e de História do Direito na UFPA, doutor em Direitos Humanos e coordenador do Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia.

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