Amigo Chico: um fazedor de profetas

ENSAIO
6 min readMay 20, 2023

Dawdson Soares Cangussu

“Não se pode falar no movimento literário do Pará, sem que o nome de Francisco Paulo Mendes venha em primeiro lugar”.

Ruy Barata

Francisco Paulo Mendes — retrato de Waldemar da Costa

A epígrafe sinaliza o reconhecimento ao intelectual que orientou, sobremaneira, o metié dos jovens paraenses da ‘turma do Central’. Esses rapazes (e as mulheres?), constituíram um grupo de leitores e escritores que marcou a produção literária, e também filosófica, que, apesar da distância dos grandes centros, mantinha uma busca pela atualização da sua poética. E para este fim, criaram um suplemento literário, que foi veiculado de 1946 a 1951, no jornal Folha do Norte. Para além do periódico, os jovens também contavam com o professor Francisco Paulo Mendes, carinhosamente apelidado de Chico. Segundo Benedito Nunes, ele foi um fazedor de poetas e “todos lhe ouvíamos a opinião, confiávamos no seu bom gosto, seguíamos o seu juízo crítico”.

Havia um lugar em especial para os encontros literários. Um espaço que possuía uma poética (parafraseando Bachelard), uma identidade e uma humanidade, lugar onde Mendes e os jovens poetas se reuniam para falar de literatura e de outros temas, como crítica literária e política, visto que ele não separava política de literatura. Este lugar era o Café Central, que ficava no terraço do Hotel Central, situado à Avenida Presidente Vargas. Muitas xícaras de chá e bandejas de torradas foram certamente consumidas em meio às discussões, afinal, foram mais de duas décadas de encontros.

Mendes não se cansava. Após lecionar o dia inteiro, ainda tinha disposição para, todas as noites, ir ao Café Central para encontrar os amigos e discutir seus assuntos prediletos. Ele era o foco das discussões, era quem tomava a frente. Todos os dias tinha algo novo para ensinar aos mais jovens. E de onde vinha tanto conhecimento? Visitando as memórias escritas acerca da vida do Chico, vimos o quão intensa foi a trajetória intelectual desse homem que apreciava o magistério.

Mendes nasceu por entre os livros. Quando garoto, visitava a casa do avô materno João Affonso do Nascimento, que era pintor, desenhista, escritor e dono de uma grande casa aviadora na Belém do Intendente Antônio Lemos. A partir daí, Mendes começou a ter contato com a literatura e foi também onde iniciou seu gosto pela leitura. Com a morte do avô, herdou uma vasta coleção de livros, a qual foi aumentando no passar do tempo. Comprava muitos livros e também doava muitos àquelas pessoas que lhe demonstravam interesse real às letras. Era um incentivador, um fazedor de poetas e de estudiosos.

Assim foi se construindo aquele homem das letras, polido e bem-vestido, de ânimo anti-acadêmico e anárquico. Seja nas aulas dos vários colégios em que lecionava, seja na Academia dos Novos, seja no Café Central, Mendes, crítico mordaz da literatura mal feita e da política excludente, influenciava, em suas falas, conferências e aulas, a geração que naquele momento nascia.

Ele representava uma espécie de elo entre duas gerações. Uma do final dos anos 1930, da qual ele pertenceu, e a nova, da qual faziam parte Max Martins, Haroldo Maranhão, Alonso Rocha, Jurandir Bezerra, Cauby Cruz, Mário Faustino e Benedito Nunes.

Não escreveu muito e publicou menos ainda, o que tinha a dizer o fazia em sala de aula ou em palestras, conferências e nas reuniões no Café Central. Escreveu “Raízes do Romantismo”, em 1944, como requisito do concurso para professor da antiga Escola Normal (atual Instituto de Educação do Pará — IEP), e publicou alguns ensaios de crítica literária no Suplemento Literário da Folha do Norte e na revista Encontro, em 1951. Nas palavras do poeta e professor João de Jesus Paes Loureiro, Mendes “não quis escrever nenhuma obra. Não se queria autor no sentido livresco e acadêmico. Era o texto de si mesmo. Um texto a se escrever na eternidade inquieta de uma vida. Como numa página do tempo. Nesse tempo universal de uma Belém que ele escolheu para viver”.

Mendes era um exímio conhecedor da literatura contemporânea e admirador do existencialismo. Em artigo publicado no Suplemento Literário da Folha do Norte, “Notas para uma conferência sobre a poesia contemporânea” (1947), ele tece alguns comentários sobre aspectos da literatura existencialista, os quais são perceptíveis na escrita da ‘turma do Central’.

Quando analisamos a poesia da geração de Max Martins, fica evidente que houve contato com esse tipo de literatura. Dá para imaginar isso sendo discutido às mesas do Café Central? É possível perceber o quanto esses jovens foram influenciados pelo discurso de Francisco Paulo Mendes? Não há duvidas quanto a isso. A influência de Mendes é unânime, visto ser forte a presença — nas publicações do grupo que fundou o Suplemento Arte-Literatura, da Folha do Norte — de poemas com “ideias absurdas, desejos obscuros, sentimentos aberrantes, os sonhos e os desvarios, toda uma confusa, mas fervilhante vida subterrânea do nosso ser”, nas palavras do próprio Mendes.

Max Martins não escondia a satisfação de ter convivido e aprendido fartamente com Mendes. Ele era o líder das discussões no Café Central. Segundo Max, “ali ele tomava seu chá com torradas e ensinava-nos literatura, falava sobre artes plásticas, da poesia de Rilke, do simbolismo, do modernismo, de romances, teatro e questionava tudo”.

Mendes sempre estava se renovando, se colocando a par das novidades do universo das letras e sempre ligado às questões de seu tempo. Amarilis Tupiassu guarda na memória “o Mendes político, de olho sempre posto na polis, muitas vezes manifestando indisfarçável mal-estar, irritação frente aos desacertos sociais, culturais, políticos, o Mendes nunca reacionário, jamais atrasado, jamais retrógrado”. Era muito admirado também como professor, sobretudo, por causa de sua habilidade em fazer correlações entre campos artísticos díspares.

Não separava vida e teoria. Para Mendes, elas eram imbricadas. Acreditava que, sem o acesso à cultura e ao conhecimento, dificilmente as pessoas teriam os instrumentos cognitivos para pensar de maneira totalizante sobre as razões da injustiça e da desigualdade.

Tais pensamentos foram, de alguma forma, sendo transmitidos e adequados àqueles jovens que com ele reuniam-se nas noites do Café Central. Em meio às torradas e aos cafés e chás, a ‘turma do Central’ compartilhava suas experiências literárias e políticas, nas quais Mendes era o centro de onde saiam as críticas mais contundentes e as poesias mais fundadas. Possuía muitas leituras, conhecia muitos poetas nacionais e estrangeiros e isso o tornava o mais sabedor entre os demais.

Chico se considerava um dos ‘novos’, mas não negligenciava a tipologia da geração anterior, a de Murilo Mendes. E clamava: “Um dos nossos deveres, dever dos Novos, é tirar do esquecimento e reabilitar todos aqueles dos quais recebemos a herança literária do Pará e que foram, como nós somos hoje, fiéis à divina religião da poesia”.

A respeito dessa nova poesia que estava sendo produzida pela geração de Benedito Nunes, Mendes, como crítico literário, ressaltava que “o crítico permanece na expectativa. E, se é certo, esta poesia que está sendo ultimamente criada entre nós é a expressão autêntica e exata do nosso espírito e da nossa vida, aceitemo-la e nos esforcemos por compreendê-la. Todo poeta novo é um novo profeta: anuncia uma nova idade. E é na palavra dele que nós depositamos a nossa esperança”.

Essa nova geração de ‘profetas’ caminhou muito sob a direção do Chico. Então, fazendo um trocadilho com Benedito Nunes, podemos afirmar que Mendes era um ‘fazedor de profetas’, posto que essa nova geração paraense de poetas foi, como estamos frequentemente endossando, bastante influenciada e, de certo modo, direcionada, no que tange à poética, por Francisco Paulo Mendes. Este, por assim dizer, tem um vínculo histórico com a literatura paraense, que tende a se tornar cada vez mais reconhecido.

À guisa de compreender qual foi a contribuição de Mendes para a literatura paraense da geração de 1945, caímos em um problema, o de encontrar não só uma contribuição, mas várias, o que torna incompleto esse panorama. Talvez em outra oportunidade, esse tema possa ser retomado. O que não faltam são sujeitos e fontes relacionados a esse advogado, ensaísta e professor, quem, na pena de Ruy Barata, em 1947, foi “um dos críticos e ensaístas mais brilhantes do Brasil e se ainda não ganhou a proporção a que a sua inteligência faz jus, se deve unicamente à natural pequenez do meio, aliada à sua já tão proverbial timidez e modos”.

SOBRE O AUTOR

Dawdson Soares Cangussu é professor, com graduação e mestrado em Historia Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Possui artigos e livro publicado sobre a segunda fase do modernismo em Belém (1946 e 1951). É criador e proprietário do canal “O Lembrador”, no Youtube.

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