O espaço literário de Blanchot

ENSAIO
6 min readJul 3, 2023

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Jorge Henrique Bastos

Caricatura de Maurice Blanchot

Este ano se assinalaram os vinte anos da morte daquele que foi um dos nomes cruciais da crítica literária mundial, Maurice Blanchot, que faleceu em fevereiro de 2003. O autor de “O livro por Vir”, deixou a sua marca e influenciou sobremaneira meia França intelectual. O seu legado permanece vivo, disseminando-se para além do tempo estipulado. Não é uma tarefa fácil traçar o perfil daquele que se tornou mentor de figuras determinantes como Jacques Derrida, Emmanuel Lévinas, Roland Barthes, Michel Foucault, Paul Auster e Paul Celan.

Além deste espectro transdisciplinar, Blanchot legou-nos uma obra ensaística decisiva, cujos livros se tornaram marcos indiscutíveis, e ainda se dedicou à ficção. Isso tudo contribui para adensar ainda mais a obra deste francês, que recusava os holofotes, as homenagens e a exposição midiática desenfreada do mundo contemporâneo. Na altura do seu falecimento, eram raras as imagens que a mídia tinha dele, sendo que a mais atual era uma longínqua foto tirada num estacionamento, por um paparazzi, nos anos 80.

Duas décadas depois, finalmente o público mais afeito ao autor pôde aceder a um corpus de imagens que revelam um homem comum, vivendo serenamente, discreto, num cotidiano familiar sem excessos. Mas isso não é tão normal, tendo em conta que Blanchot foi um dos maiores críticos literários do século XX, e que a decisão em distanciar-se da sobre-exposição acabou por se tornar uma características do escritor. Na altura do seu falecimento, a mídia francesa só teve conhecimento do fato cinco dias depois do ocorrido, e isso porque fora alertada por vizinhos.

Em 25 de fevereiro de 2003, o Libé anunciava dessa maneira sobre a morte de Blanchot:

“O mais secreto dos escritores franceses faleceu em sua casa, em Paris, aos 95 anos. Durante longo tempo temera-se que Maurice Blanchot aumentaria a discrição, até o ponto de decidir que a sua morte passasse despercebida, rasurando a sua própria anulação, conforme a fórmula que manuseou ao longo da vida (…) Segundo o seu entendimento, o homem por trás do escritor não interessaria, bastava a obra como realidade possível de ser comentada”.

Uma passagem elucidativa de “Après Coup”, resume isso de forma exemplar:

“Se a obra escrita cria e legitima o escritor, assim que é concluída apenas testemunha a dissolução deste, o seu desaparecimento, a sua deserção e, usando uma forma mais brusca, a sua morte”.

Apesar de tal discrição obstinada, a preservação insubmissa da sua vida pessoal, e da exígua e rara difusão da sua imagem, que o protegia do poderio midiático, no início deste ano, na França, foram divulgadas uma sucessão de fotografias do autor. Trata-se de uma série curiosa, em que se vislumbra um senhor elegante, alto, esguio e jovial. As fotos foram quase sempre feitas por seu irmão. Aí podemos vislumbrar um Blanchot ao lado mãe, passeando com um sobrinho de mãos dadas, ou partilhando momentos de prazer num jardim. São momentos peculiaríssimos de um Blanchot em família, com a sua “elegância hierática”, em plena vida privada. Era o seu círculo íntimo, e o autor de “O Espaço Literário” parece fruir aquilo com uma felicidade tácita e a serenidade cotidiana, entrincheirado em seu paraíso particular. Mas isso só semeia curiosidade em relação ao autor de livros que deram a volta no parafuso da crítica, e até hoje centralizam a atenção.

Maurice Blanchot atravessou o século XX e ainda presenciou os alvores e as misérias do XXI. Ele esteve na Segunda Guerra, quando foi “resistente” e fez oposição aos nazistas; combateu com firmeza a barbárie da guerra na Argélia (subscreveu o célebre manifesto dos 121), tornando-se opositor De Gaulle; apoiou os estudantes durante o maio de 68; assistiu à criação da União Europeia e suponho que deve ter se indignado com a catástrofe ocorrida durante a guerra dos Balcãs, em meado dos anos 1990.

A rigor, foi jornalista político durante certo tempo, estudou literatura alemã e filosofia, em Estrasburgo, onde conheceu Lévinas, seu grande amigo. Em 1938 abandona o jornalismo e passa a se dedicar à crítica, e à obra densa que arquitetou até à sua morte.

Ao lado dessa ópera burlesca e trágica da contemporaneidade, Blanchot erigiu uma obra crítica e ficcional, cujos pontos nevrálgicos até hoje incitam pesquisadores e especialistas, que tentam desemaranhar o pensamento deste autor nascido em 1907, no seio de uma família católica oriunda da região do vinho Borgonha, em Quain.

Blanchot estreou na década de 1940, transitando ora na ficção, ora no ensaio, demarcando as vias expressas de um pensamento que se deteve sobre questões densas. A rigor, ele ostenta duas facetas. Escreveu ficções como “Thomas, o obscuro” (1941), “Aminadab” (1942), “A pena de morte” (1948) e “O último Homem” (1957), entre outras.

Livros como “A parte do fogo” (1949), “O Espaço literário” (1955), “O livro por Vir” (1959), “A conversa infinita” (1969), asseguraram a presença indiscutível do seu pensamento sobre os autores citados no início, o que nos ajuda a mensurar a sua influência. Uma das suas obras centrais, “A Escritura do desastre” (1980), foi publicada anos atrás, é mais um exemplo da densidade que Blanchot fixou nos fundamentos da sua visão do fenômeno literário.

Para além de tais fatos, pouco mais se sabe desse senhor, embora a biografia escrita por Christophe Bident (“Partenaire Invisible”) nos esclareça algumas pistas, já que ele rasurou os aspectos biográficos, pois desapareceu detrás da obra que é um clássico do século passado.

Algumas categorias instituídas em seus livros — a negatividade, a morte, o neutro, o silêncio, o fora — urdem uma trama conceptual que entrincheirou num círculo de fogo vagas literárias francesas como o existencialismo e o estruturalismo. No fundo, a aliança entre filosofia e crítica literária que ele articulou de maneira eficaz (por isso Foucault apodou-o de “Hegel da crítica”) lhe garantiu esse território privilegiado. Tais ensaios marcaram gerações. Ainda marcam, embora a França já não seja tão hipster … e não lance uma moda intelectual há muito tempo.

Àquelas inquirições que assombram autores e críticos: o que é ler? O que é escrever? Blanchot contrapõe apreensões irredutíveis. Em “A Escritura do desastre”, ele assume o tom fragmentário, recorrendo à expressividade quase aforismática (lembrando um pouco o estilo que o poeta René Char também exercitou em “Folhas de Hipno”, por exemplo), esboçando uma linha dialógica com a psicanálise, Hegel e Heidegger.

Após o caudal ensaístico dos primeiros tempos, Blanchot enclausura seu pensamento, se distanciando do discurso comum. Ele observa o acontecimento da linguagem com uma lente cruciante, talvez percebendo a realidade agônica: “Pensar o desastre (se isso for possível, e não é possível, na medida em que pressentimos que o desastre é o pensamento) é não ter já porvir para pensá-lo”.

Antes de falecer, em 2003, publicou textos sobre Paul Celan, Louis René des Forêts, René Char e Henri Michaux; além da pequena novela, “O Instante da minha morte” (1994). Logo em seguida, silenciou.

SOBRE O AUTOR

Jorge Henrique Bastos nasceu em Belém do Pará. É jornalista, crítico literário, poeta, tradutor e editor. No Brasil trabalhou na editora Martins Fontes. Em Portugal, entre os anos de 1989 e 2006, colaborou em revistas e jornais tais como Diário de Lisboa, Independente, LER, Colóquio-Letras e Camões. Em 1994 organizou o livro “A Criação do Mundo Segundo os Índios Ianomami” [Editora Hiena], e coordenou a publicação de uma coleção de ensaios para a editora Pergaminho, onde, entre outros, publicou Paul Valéry, Mathew Arnold e Alexander Blok. Traduziu René Char, Yves Bonnefoy e Ezra Pound.

Em 1998, publicou o livro de poemas «A Idade do Sol» (Fenda Edições, Lisboa). Organizou, entre outros, a antologia «Poesia Brasileira do Século XX — dos modernistas à atualidade» (Antígona, 2002); «O CORPO O LUXO A OBRA» (Iluminuras, 2000), primeira edição brasileira do poeta Herberto Helder publicada no Brasil. De volta ao Brasil, em 2006, fixou residência em São Paulo e contribui com diversos projetos editoriais.

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