Revista REALIDADE, lançada há 50 anos, introduziu a pauta feminista no Brasil

Edward Pimenta
8 min readJun 4, 2016

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Faz 50 anos. Faz 40 anos. A revista REALIDADE circulou no Brasil, publicada pela Abril, de 1966 a 1976, e se você der uma rápida olhada nas capas há uma sensação geral de que cumpriu uma tarefa civilizatória.

Faz 50 anos. Faz 40 anos. A revista REALIDADE circulou no Brasil, publicada pela Abril, de 1966 a 1976, e se você der uma rápida olhada nas capas há uma sensação geral de que cumpriu uma tarefa civilizatória.

Revi agora o registro de uma luta do Muhammad Ali escrito por Norman Mailer e fotografado pelo Frank Sinatra. Há Nelson Rodrigues e uma plêiade de jornalistas e escritores como João Antônio, José Carlos Marão e José Hamilton Ribeiro registrando o espírito daquele tempo.

REALIDADE promoveu a discussão de todos os temas relevantes e muitos continuam em pauta. Pense, por exemplo, nos pleitos feministas. Olhe as capas: a mulher brasileira esteve representada sobejamente, da mesma forma como foi e continua sendo tratada pela revista CLAUDIA, sua coetânea, hoje dirigida pela jornalista Tati Schibuola.

Reproduzo abaixo uma reportagem do jornalista Tiago Cordeiro que mostra números e fatos de um fenômeno editorial que merece ser lembrado e celebrado. E, eventualmente, reeditado para o conhecimento das novas gerações.

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Testemunho de uma época

REALIDADE fez história — e virou fenômeno de vendas — ao retratar o mundo em transformação dos anos 60, com talento, inteligência e coragem

Pelas mais variadas razões, certos períodos da história conseguem aglutinar mudanças profundas na humanidade — transformações que repercutirão por décadas à frente. Foi assim com os anos 60 do século passado. Em meio à Guerra Fria entre capitalismo e comunismo, o mundo passou por uma roda-viva de revoluções: nos costumes, na cultura, na política, enfim, na sociedade. Nessas horas, feliz é quem tem um guia para compreender o que acontece ao seu redor. Felizes eram os leitores de REALIDADE, a revista mensal editada pela Abril entre 1966 e 1976. Como nenhuma outra publicação, REALIDADE compreendeu, mostrou e explicou o espírito de sua época. Absoluto sucesso de vendas desde o seu primeiro número, ela cativou o público com um jornalismo “investigativo, inventivo e exaustivo”, na definição do seu então diretor e hoje presidente do Conselho da Abril, Roberto Civita. Nas próximas páginas, você conhecerá um pouco mais da história de REALIDADE. E verá como ela esteve à altura daqueles tempos inesquecíveis.

Cinco passos para uma revolução

Desde o início, em abril de 1966, REALIDADE mostrou que era uma revista diferente. Outras publicações brasileiras traziam grandes matérias, mas nenhuma até então fora tão ousada, criativa e profunda. A revolução começava pela base do jornalismo: a apuração. “Dedicávamos à investigação o tempo que fosse necessário”, lembra José Carlos Marão, editor da revista. Às reportagens de fôlego, a equipe de REALIDADE juntou outros recursos — inéditos não na forma, mas na maestria em sua execução.

1. NOVO JORNALISMO

Maio de 1968 — Enviado especial ao Vietnã, José Hamilton Ribeiro descreveu — em primeira pessoa — a explosão de uma mina que dilacerou sua perna esquerda. Os textos de REALIDADE lembravam em profundidade e técnica narrativa o new journalism praticado nos Estados Unidos.

2. TEMAS POLÊMICOS

Outubro de 1967 — Das 138 páginas desta edição, nada menos que 40 foram dedicadas à questão do racismo no Brasil e nos Estados Unidos. Por lá, brigava-se para derrubar a legislação racista. Por aqui, a revista mostrou que a tão propalada igualdade racial brasileira era um mito.

3. REVISTAS TEMÁTICAS

Mulheres (janeiro de 1967), juventude (setembro de 1967), Amazônia (outubro de 1971), metrópoles (maio de 1972), Nordeste (novembro de 1972). Todos esses assuntos mereceram, cada um, uma edição inteira. Viraram documentos históricos, usados até em livros e pesquisas acadêmicas, tamanha a abrangência das pautas e a qualidade das informações.

4. FOTOS EMOCIONANTES

A. Show da vida

Abril de 1966 — Hoje ela parece trivial. Mas, em 1966, era uma extraordinária novidade. A foto de um feto em gestação, publicada na edição número 1, integrava um ensaio que levou sete anos para ser concluído pelo sueco Lennart Nilsson.

B. Horror da Guerra

Outubro de 1969 — Biafra era uma nação africana praticamente desconhecida dos brasileiros. Mas virou sinônimo de tragédia humana depois que REALIDADE publicou um ensaio fotográfico sobre a guerra civil instaurada por lá.

C. Natureza em Risco

Outubro de 1971 — A imagem de uma onça escalpelada, feita pelo fotógrafo Jean Solari, consternou milhares de leitores. Essa era apenas uma das quase 200 fotos que ilustraram a premiada edição especial sobre a região amazônica.

5. EDIÇÃO INTELIGENTE

Outubro de 1966 — Afinal, ele é palhaço ou não é? Na abertura da matéria, o título parecia uma ofensa gratuita. Ao virar a página, contudo, o mal-entendido se desfazia. Sim, aquele homem era realmente um palhaço: Arrelia, que por mais de uma década tinha feito sucesso com um programa infantil na TV Record. Escoltado por belas fotos de Lew Parrella, o texto de Roberto Freire revelava o empresário Waldemar Seyssel por baixo da maquiagem. E analisava o sucesso, já em franco declínio, do personagem que tinha virado sinônimo de circo para o público paulista.

Abaixo o tabu! O leitor agradece

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Ao longo de seus dez anos, REALIDADE seguiu um padrão claro: tabus existiam para ser enfrentados. “Ela desnudou todo o universo conservador que povoava a moral da classe média urbana”, afirma o historiador José Salvador Faro, autor do livro Revista Realidade, 1966–1968: Tempo de Reportagem na Imprensa Brasileira. A coragem das matérias incomodava muitos, mas agradava a muitos mais. Desde o primeiro número, foi sucesso de público e logo virou a líder de circulação no país.

OS ESPINHOS DA SOCIEDADE

Capas e matérias pareciam um corolário dos males de todos

As hipérboles são sempre perigosas, mas neste caso ela faz justiça. Não houve tabu, preconceito, tema relevante que a revista não tenha tratado em suas páginas. Sexo, drogas, aborto, prostituição, homossexualidade, miséria, corrupção, drogas… Tudo mereceu a atenção de REALIDADE.

O leitor nas páginas da revista

Uma das explicações para o sucesso de REALIDADE era a interatividade com o leitor. Pesquisas de opinião feitas por meio de cartões-resposta ou encomendadas a institutos foram frequentes. Os resultados serviam como base para o aprofundamento da investigação jornalística. Veja alguns exemplos:

DIVÓRCIO: na primeira de suas pesquisas, publicada em julho de 1966, cerca de 15 mil respostas indicaram que 79% dos leitores eram favoráveis ao divórcio, que ainda não existia; JUVENTUDE: na edição de agosto de 1966, aproximadamente 116 mil respostas, colhidas entre jovens dos 18 aos 21 anos, revelaram o que eles pensavam sobre sexo; UNIVERSO FEMININO: a revista ouviu 1 200 mulheres para descobrir o que elas tinham a dizer sobre vários assuntos. Mas o acesso à pesquisa acabou prejudicado — ela integrava a edição censurada em janeiro de 1967.

TIRA-TEIMA

Desempenho impressionante, como demonstra a comparação abaixo

Fevereiro de 1967

505 mil exemplares ÷ 90 milhões de habitantes = 1 exemplar para 178,2 habitantes

A maior revista semanal do Brasil — hoje

1,1 milhão de exemplares ÷ 192 milhões de habitantes = 1 exemplar para 174,5 habitantes

O maior jornal diário do Brasil — hoje

365 mil exemplares**÷ 192 milhões de habitantes = 1 exemplar para 526 habitantes

Em setembro de 1966, o número de leitores já chegava a 1,5 milhão por edição — cada exemplar era lido, em média, por três pessoas. Os diretores da revista mal podiam acreditar: eles esperavam pelo menos seis meses de maus resultados.

Nove vezes melhor

Entre 1966 e 1973, REALIDADE recebeu nove Prêmios Esso — o mais importante do jornalismo brasileiro. Foram três de Reportagem, quatro de Informação Científica e duas condecorações entregues ao especial Amazônia: Prêmio Principal e Melhor Contribuição à Imprensa.

Vítima do arbítrio e do tempo

Capaz de antecipar e até mesmo provocar mudanças, REALIDADE acabou ela mesma vítima dos novos tempos. No final dos anos 60 e início dos 70, a revista estava num país diferente. De um lado, havia menos liberdade de imprensa, com o recrudescimento da ditadura militar a partir do Ato Institucional nº 5 (leia mais na reportagem à página 20). De outro, jornais diários ficavam mais ágeis, concorrentes chegavam às bancas e a TV se tornava, de fato, um meio de comunicação de massa.

Equação mortal

DE TODOS OS LADOS

Com a censura fortalecida a partir de 1968, REALIDADE passou a ter dificuldades nas pautas. Seus relatos humanizados deram espaço a textos cada vez mais analíticos. As mudanças não agradaram e as vendas caíram. O público preferia, agora, a cobertura acelerada e dinâmica oferecida pelas TVs e por revistas semanais como a recém-lançada VEJA.

Até setembro de 1973

Formato: 30 x 24 cm

Reportagens: média de 12 por edição

A partir de outubro de 1973

Formato: 26,5 x 20 cm

Reportagens: média de 24 por edição

MUDANÇA DE CURSO

Em outubro de 1973, REALIDADE chega às bancas de cara nova. A revista fica menor em tamanho, mas com número maior de reportagens. “As abordagens passaram a ser mais superficiais, menos contundentes”, diz a historiadora Letícia Nunes de Moraes, autora de Leituras da Revista Realidade.

REFORÇO DE PESO

A revista convida artistas para colaborar — e alguns até viram repórteres

DRUMMOND DE ANDRADE

Março de 1969 — REALIDADE publica trechos de uma biografia inédita dos Beatles, que àquela altura já caminhavam para o fim. E surpreende os leitores com um presente e tanto: seis letras traduzidas por ninguém menos que o poeta Carlos Drummond de Andrade.

PLÍNIO MARCOS

Julho de 1969 — O dramaturgo, mestre na arte de retratar o universo da marginalidade urbana, tinha suas peças — entre elas o clássico Navalha na Carne — proibidas pela censura. Ele topa escrever um conto-reportagem sobre os batedores de carteira do centro de São Paulo.

ADONIRAN BARBOSA

Dezembro de 1975 — Ícone paulista, o autor de Trem das Onze vai conhecer o então recém-inaugurado Metrô de São Paulo e relata o episódio numa matéria. A revista sabia como transformar pautas aparentemente comuns em reportagens bem sacadas e humoradas.

Março de 1976

Os números que chegavam das bancas comprovavam o declínio de REALIDADE. Em janeiro de 1976, ela vendera apenas 120 mil exemplares, metade do que conseguira em sua edição de lançamento. Dois meses depois, em março, circulou seu último número

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