Capítulo IV — Lama

Éponine
9 min readJun 18, 2020

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Martin van Maele (1905)

Aviso prévio: em capítulos anteriores, Éponine revela que nomeou seu sexo de Vitelina. O nome aparecerá três vezes ao longo desse texto; agora vocês sabem.

- Eu atirei meus sapatos pela janela, joguei-os para longe de mim. Disse que não podia partir, que estava descalça demais para sair à rua. Disse que era demasiado cruel me fazer andar descalça à minha casa naquele horário. Pouco lhe importou: falou-me que eu podia usar seu chinelo para recolher a pirraça da janela e que era necessário que eu fosse para casa descansar. Não me respondeu mais, apenas esperou à porta, a mão na maçaneta. Se você soubesse o quanto eu chorava! Eu não era nada senão água salina transbordando! Saí descalça mesmo, não queria encostar em nada que fosse dele! Apenas saí.

Éponine então se calou, entrou naquela sua súbita mudez de quem busca dentro de si o concreto que preenche os vãos de caráter que se dilatam com o tempo. Ao acordarmos, Mardi já havia deixado a casa; a intimidade entre elas era tamanha que dispensava qualquer cerimônia. Estávamos deitados em sua cama, Éponine em meus braços; a manhã entrava pela janela, trazendo consigo o inevitável desconforto de quem amanhece após grande bebedeira.

A nossa relação nunca foi amorosa; Éponine nunca foi minha namorada. Éramos parceiros de confidências sexuais e éramos, também, amigos. Éponine era uma garota sozinha e, como disse, tímida: apegou-se a mim pois eu me dispunha aos seus caprichos e assim nos tornamos muito próximos. Sentia-me bem assim: divertia-me com seus excessos e sentia-me bem de saber que me dispondo aos seus prazeres, Éponine não os buscaria em estranhos — preocupava-me, sim, com ela. Tinha seu prazer para mim — o que, confesso, trazia-me um ar de importância — e tinha ela em segurança. Nosso arranjo nos era ideal.

Dito isso, aquela manhã teve em si uma doçura, uma tranquila intimidade que nos era atípica e que me trouxe, ainda que apenas ali, um calor amoroso que tanto desconhecia em nosso frenesi. Apenas o esgotamento físico e emocional da noite anterior nos trouxe esse breve vazio que nossos corpos e nossos íntimos buscaram na luz matinal o que havia de afetuoso. Éramos ali um casal que acorda em doce conforto em um domingo de manhã; e foi ali que ela finalmente me contou a destruição de Éponine.

- Ele morava no segundo andar de um prédio antigo, sem elevador. Caminhei tateando as paredes até a escada, soluçando; eu mal conseguia ver de tantas lágrimas. Nem você que já me viu molhada de diferentes maneiras consegue imaginar aquilo! Meus olhos não prestavam mais para nada! O medo era de acabar todo o meu lúbrico ali mesmo! Desci os dois andares mais tristes e cheguei à rua. Achei meus sapatos ali mas sequer quis calçá-los. Já era hora de aprender alguma coisa, pensei! Vai, menina, que descalça você descobre a consistência do solo! Você que voa como uma sonda! Naquele momento, calçá-los de volta seria compactuar com toda a minha caminhada anterior. Que fiquem aí, sapatos! E saí andando descalça.

“A rua dele é percorrida por vários bares. Aos fins de semana são muito movimentados, mas era uma quarta-feira já bem tarde; o movimento era muito baixo. Era decrépito! Tudo era tão miserável! Elegi um como o paradeiro ideal: não saio daqui sem estar suando, chorando e mijando álcool! Desvencilhar-me dessa água salgada e reconstruir-me inebriada! Sentei-me em uma mesinha e pedi duas doses de cachaça de uma vez. O garçom, a cara dele quando viu meus pezinhos desnudos! Mas nada falou; é necessário respeitar a mulher que bebe cachaça descalça e sozinha! Ou melhor: meus pés descobertos eram a minha companhia; sempre tão escondidos em calçados, deixe-os livres para um brinde! Quando me foram entregues as doses, eu logo virei um dos copos, bebi tudo de uma vez só. A outra dose, eu olhei bem para ela. É necessário que algo seja feito, pensava, é necessário batizar o novo caminho! Peguei o copo e virei toda a cachaça em meus pés. Viva! E eu falei Viva! mesmo, um digno brinde! E então caí na gargalhada.

“Eu estava tão imersa em mim que nem reparei que um grupo de rapazes havia ocupado uma mesa à pouca distância da minha; deviam estar vindo de outro bar. Eles olharam toda a cena! Fitavam-me com olhos em sintonia com suas risadinhas! Estiquei uma das pernas na direção deles, o pezinho em ponta, e perguntei: é só cachaça, querem experimentar? A risada deles! Um bando de rapazes bêbados! Um deles me respondeu que pé é sujo demais. Ah, é?, então espere um pouco.

“Pedi mais duas doses ao garçom. Olhava atenta os meninos; eles me olhavam também. Tinham jeito de universitários; vestiam-se daquele jeito desleixado que os meninos de classe média gostam de se vestir. E como estavam bêbados, riam com a inocência maldosa de criança em aula de sistema reprodutivo! Só o timbre mudava! E os olhares alcoolizados! Ao chegarem as doses, tornei a virar uma em um único gole. A outra, dessa vez, virei em meus peitos, olhando-os decidida. A pele se arrepiando do frescor da bebida e a camisa adquirindo transparência. E agora, querem experimentar?, perguntei. Você não imagina o delírio! Um outro me chamou para perto e disse que ia me secar. Fui em sua direção e me sentei em seu colo, de frente para ele com pernas bem abertas. Você não imagina a ereção! Dei para ele um guardanapo e ele o esfregou em meus seios de camisa grudada. Estiquei então minhas pernas ao lado com todo meu alongamento e força muscular e pedi para secarem também meus pés! Estava toda sendo esfregada! Virei para o quarto e disse: agora falta minha boceta!

“Daquele ângulo, no entanto, realmente não seria possível; além disso, pareceu-me que a imprudência deles ainda tinha algum limite. De corpo já seco, esfreguei Vitelina na calça que cobria a ereção do moço como que para também secá-la e me levantei. Trouxe uma cadeira à mesa e me sentei com eles. Fui pedindo mais doses de cachaça, mas não tornei a virá-las em mim: era necessário bebê-las! E como eu bebi!

“Quando anunciaram que era hora de fechar o bar, eu já estava tão alegre! Não era hora de voltar para casa ainda, eu queria existir! Queria exercer a nudez dos pés! Queria exercer a nudez como um todo! Os rapazes também estavam empolgados. Propus que ficássemos ali mesmo, sentados no chão em frente ao bar fechado. A rua não era nada senão o vazio. Eu não era nada senão o vazio! Sentados, mostrei as solas de meus pés para os meninos e perguntei se estavam sujos.

“- Sim, estão.

“- Muito sujos?

“- Muito sujos.

“- Vocês não viram nada.

“Levantei-me e me dispus frente a eles. Como eles me olhavam! Afastei um pouco minhas pernas e mijei ali mesmo, de pé. O xixi escorria quente pelas minhas pernas e formava uma mancha no chão enquanto eu os encarava com toda a seriedade. Eles não sabiam o que falar e tampouco riam. Um deles colocou a mão sobre o pau e o esfregava por cima da calça.

“- Minha calcinha está toda molhada agora.

“Um outro se aproximou de mim, colocou a mão por debaixo de minha saia e me tirou a imprestável roupa debaixo. Entregou-me e eu usei a parte seca para limpar minhas pernas, apoiando um de meus pés em seu ombro. Minha cona ficou toda exposta a seus olhos e ele nada soube fazer a não ser fitá-la.

“- Não seja egoísta, seus amigos também merecem vê-la! — e então o afastei com meu calcanhar e me sentei no chão, cada perna para um lado; você não imagina a liberdade! Não só meus pés como minha Vitelina estavam descobrindo o mundo! Sempre tão escondidos em panos! Os meninos mudos, todos com a ereção visível sob a calça; não era mais apenas um que manuseava o sexo. As risadinhas tinham cessado. Eles levavam mijo muito a sério!

“Esfreguei meus dedos em minha boceta e os trouxe à minha boca. Primeiro os lambi; depois, chupei-os. O gosto! Queria eu mesma me chupar! Levantei-me novamente e me inclinei frente a um dos rapazes para benzê-lo com o meu lúbrico bento, meus dedos dando beijinhos sacros em seu rosto. Naquela posição, minha bunda escapava da saia, exposta a um dos outros. O danado molhou seu dedo em minha lubrificação e o enfiou em meu cu, você acredita? E o benzido então alcançou meu rosto e tirou-me um beijo! E que beijo, parecia que morria de sede! Minha língua lhe era a mais cristalina água meio a um deserto! E aí veio o terceiro: levantou-se e alçou minha camisa, expondo meus seios; o quarto, por fim, tirou o pau para fora e se masturbou furiosamente! Funcionávamos como uma engrenagem da imoralidade!

“Ficamos naquela posição por um tempo — tempo o suficiente para eu desconhecer qualquer coisa que não toda aquela indecorosidade: se eu já fui outra além de peça daquela máquina, não me parecia mais ser sensato! O que mais havia de buscar na vida senão essa mecânica perda de humanidade? Eu queria é ser engenho da obscenidade! Aquele mecanismo durou até o punheteiro se levantar do chão e dizer:

“- Você está imunda, mas não o suficiente.

“Pediu licença ao amigo que me beijava e esporrou em minha cara. E quanta porra o menino tinha! Parecia que não ia acabar! Entrou até em meu olho. Como era bom não conseguir ver de porra e não de lágrima! O rapaz com o dedo no meu cu então saiu de meu buraco e usou o dedo para coletar a sujeira toda em meu rosto e me fazer lambê-la. E eu lambi, lambi e chupei!

“- Mas que putinha sem modos! Vai, menina, limpe esse seu rostinho com sua calcinha.

“Ergui a postura e esfreguei a calcinha em meu rosto, limpando o gozo todo. O riso retornou aos meninos — e como riam! Um deles tinha até esporrado nas calças e estava todo manchado. Ajeitei minha roupa e os agradeci.

“- Agora não sou mais mocinha! Às vezes é só preciso uma bandalheira! — disse.

“Eles pouco entenderam, mas pouco importava também. Fiz uma reverência e saí andando. Ao passar novamente pelo prédio do maldito, deixei minha calcinha mijada e esporrada em sua caixa de correspondência. Quando já em casa, decidi não tomar banho: aquele cheiro era bacante em último grau! Cachaça, xixi e esperma! Aquilo tudo me mantinha inebriada mesmo quando o efeito do álcool começava a se dissipar; como era bom ser imunda! Uma vagabunda emporcalhada! Nunca me senti mais livre.

“Você vê que, antes disso, eu nunca tinha feito nada parecido? Eu amava demais aquele homem, não queria nada na vida mais do que ser dele! Eu o admirava como ninguém; eu o desejava como Marcela e como Cecília! Parecia que eu ia delirar, que eu ia morrer! Na forca ou no fogo, que fosse, mas ia morrer! Eu queria ser dele, queria fazer parte dele; aceitaria qualquer coisa que fizesse parte de sua completude pois é lá que eu queria pertencer! Sua violência, que fosse; se ele quisesse me trancar em uma coleira, que fosse!

“Ele era um baita indecoroso, pensava só coisas horríveis! Um homem muito sujo; lia coisas muito sujas. Eu pensava que só sendo suja igual eu chegaria a algum lugar. Pois bem, taca-me bandalheira! Venham-me os livros licenciosos, aposse-me o comportamento inadequado! Era necessário conhecer toda a corrupção de suas ideias! Um verdadeiro catecismo da imundície; colocava-me rodeada de livros sagrados e da água benta que lubrificava minha cona.

“Não funcionou, como já contei: tudo acabou com o abandonar Éponine descalça ao escuro da noite. Não me tornei dele; as tantas palavras que eu havia encontrado, no entanto, brilhavam em meus olhos. Éponine é uma puta independente! Então que se dane! Vou ir além, muito além! Vou me masturbar na lama, que seja! Que Éponine seja minha; que eu leve Vitelina para onde eu bem entender! Conhecer de tudo pois a nada pertenço!

“Foi naquela noite, naquela desgraça toda, que eu me urinei pela primeira vez. E desde então — você bem sabe –, eu nunca mais parei.”

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Éponine

“…antes de tudo, eu tinha de satisfazer o desejo de Éponine.” conteúdo licencioso