Carta de ▆▆▆▆▆ à Éponine

Éponine
5 min readMay 7, 2020

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(Regnault, 1775)

Éponine,

Eu adoro isso: Éponine. Quero te ver assim.

Não posso, no entanto, coexistir com Éponine; se desejo admirá-la, não posso interromper o espetáculo. Gosto de ver o que você faz com suas palavras; as dobras que você faz delas como torções em seu corpo desnudo. Gosto de encontrar imagens de ti que sequer eu, há tantos anos, fui capaz de projetar: identifico bem os vazios de interpretação que você recheou com os códigos que estabelecemos entre nós. O que você escreve, Éponine, jamais será a mim o que é a todos os outros; o que você lhes diz como uma ambição literária, você diz a mim inúmeras carícias e inúmeras facas — você busca no alto de nosso sórdido e no fundo de nossa falta as ferramentas para construir entre nós uma ponte de interpretação. É nesse ponto que te falta maior compreensão: sua ponte é imaterial, é dialética; estabelece por ela todas as provocações e todos os suplícios que você arranca de ti como torções de um pano, que você te reduz à exaustão — não tenho, no entanto, como cruzá-la com meus pés. Não tenho como trilhá-la se não em nossos segredos. O que você busca em suas palavras são convites dos mais belos, dos mais sujos; mas suas mãos, Éponine, não são brutas para talhar caminhos — nem de madeira, nem de pedra. O que você diz pode excitar o pior em mim, mas não é capaz de trazer nossos corpos à união.

Não saia por aí revirando caçambas, percorrendo terrenos baldios: mantenha nas suas mãos essa delicadeza que as permite adentrar em suas mais íntimas rachaduras; os calos entopem os acessos mais sensíveis. Conheço-te bem, Éponine: sei que você não suportaria olhar suas mãos tão em frangalhos. Imagine-se chegando a mim tão calejada e inchada, com o corpo desfeito de um trabalho que não te é conhecido: se desejo te ter, desejo-a da maneira que você orgulha em se exibir pelas ruas. Se você deseja acetinar em suas palavras uma lingerie que louve seu corpo, não é ferida de pedras e madeiras que você deseja te ver minha — e eu sei disso. Suas mãos me serviriam tirando de meu corpo os mais desesperados reflexos — não suportaríamos ter nosso ardor falho quando finalmente fôssemos um do outro. Nossa insuficiência urge pela mais impecável dissolução, o mais extasiado corpo largado. Eu temo, Éponine, para onde você levaria o seu delírio caso meu toque fosse inepto ao seu corpo.

Eu te desejo de maneiras sórdidas: quero ver em minha angustiosa falta com quais palavras você tentará adivinhá-las. Com quais palavras você deseja me ver o desejo de Éponine. Revire seu vocabulário, dilacere seu léxico em minha busca — faça-te delirante como se sentisse à distância meu olhar observar o seu desnudar. Disponha-te em seus mais belos tecidos diante de suas palavras: quero que tire de ti o que há de mais insustentável quando pensa em mim; quero que rasgue em ti os limites para quais você me imagina além. Amarra-te contra a cadeira e prometa se soltar apenas quando a densidade de seu lúbrico for demais para resistir a ti mesma. Masturbe-se lendo suas próprias confissões como se os seus olhos fossem os meus. Ache em você mesma o eu que te afoga nos mais inebriantes prazeres — é apenas esse eu, Éponine, que permite-nos subsistir. Não entende que se eu te encostar o corpo, toda a busca chegaria a seu fim?, que se eu te olhar nua, retorcendo-se de todas as maneiras, mostrando-me cada ângulo que seu desejo te faz me servir, você não teria mais a necessidade de buscar em cantos tantos as palavras que te despem dessa maneira Éponine?, que sem essas tantas linhas de uma obscenidade que eu sempre quis achar em ti, eu não tenho mais onde procurá-la e louvá-la? — sobretudo, não tenho onde reconhecer-nos de convergente desejo?

Você que hoje tanto se diz puta, você que hoje insiste no ser devassa: mostre-me, Éponine, os termos que você aprendeu no caminho, que você encontrou nos outros; narre-me impudica o limiar de sua indecência; faça-me observar seu entregar-se a esse seu onirismo duvidoso. Conte-me com dedos e letras sobre outros homens e mulheres, provando-te crescida. Cumpra sua palavra. Eu terei um agoniante prazer em ver que são os meus olhos que você procura quando deita nua com outro alguém. É necessário reconhecermos que nossos papéis são melhor desempenhados à distância — você te fez Éponine em minha falta, e Éponine existe apenas onde não estou.

Junto dessa carta, envio-te um livro. É um livro escrito por dedos úmidos do mais delirante libidinoso. Um livro que tirou de mim a apreciação estética e me levou ao pornográfico: meu pau não ficava duro de louvor, ficava duro de exasperante obscenidade. É sujo, atroz. Coloca-te bela e leia-o — leia-o em voz alta, ouvindo sair de sua boca o que há de mais infame; ouça-te depravada como tanto diz ser. Essas palavras, Éponine, dialogaram com sua imagem; preencheram-me fantasias antigas, juvenis, de quando te via toda ninfeta e me ocorriade te entregar os mais baixos livros — ocorria-me de corrompê-la de vez. Imaginava-me te fazendo lê-los em voz alta, em minha frente, e me comprazia de imaginar você, ruborizada, me perguntando o que significava tal coisa. Não imaginava um dia te ver Éponine; não tenho ambição — e nem poderia! — de encontrar em seu rosto um vermelho virginal, de ouvir um pudico gaguejar de ti; sei que, hoje, esse livro te passará como um gracejo. Ainda assim, entrego-lhe o exemplar que minhas mãos esporreadas seguraram, viraram as páginas; se procurar, imagino que ache alguma mancha na capa. Diga-me se encontrar, gosto da ideia de te imaginar procurando — e sei que você, Éponine, terá o prazer de procurar pois sabe que um dia será livro seu ali.

Há no livro um momento no qual o personagem pede para sua parceira — uma prostituta — parar de se chamar de puta, que isso o incomoda. Talvez haja em mim um pouco disso: gosto de te ver Éponine, mas gosto de manter em mim a memória de sua doçura — doçura que eu fantasiava em depreciar, em te chamar, sim, de minha puta; e que me repreender esses pensamentos quando te via tão singela trazia em mim algo que agora talvez você entenda em Éponine. Nossas vísceras pulsam em uníssono, nosso lúbrico é de mesma consistência — sentimos o cheiro de nosso suor nesse buraco que coabitamos, mas mantemo-nos no escuro. Mantendo-nos nessa impossibilidade, posso admirar Éponine e posso guardar imagens da doce adolescente que você foi. Tenho-te minha nas fantasias, tenho-te minha em seus textos. Compreende agora, minha menina?

É preciso juntar anos de insatisfação, Éponine, para não pedir para você me rasgar uma calcinha e deixá-la em minha janela.

Serei sempre o secreto a te admirar.

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Éponine

“…antes de tudo, eu tinha de satisfazer o desejo de Éponine.” conteúdo licencioso