O que o recorde do Lil Nas X representa pra indústria da música?

Eric Schmidt
5 min readJul 31, 2019

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Em primeiro lugar, deus abençoe Mariah Carey.

Segundo, é oficial: o monstro conhecido como Old Town Road acaba de quebrar o recorde de single com mais tempo em #1 na maior parada musical dos EUA, a Hot 100. Antes salvaguardado pela rainha dos falsetes, o recorde permaneceu intacto por mais de 23 anos, ameaçado apenas pela ameaça caribenha Despacito.

E por que isso é importante?

Pra quem não sabe, o single em questão é o primeiro da carreira do Lil Nas X, de apenas 20 anos, (repare, mais novo que o próprio recorde que acaba de quebrar). Como se ter um single em primeiro lugar por 17 semanas consecutivas não fosse histórico por si só, o jovem já havia feito história se tornando o primeiro homem negro abertamente gay a conquistar o pódio, além de ser o homem gay com mais estabilidade nesse posto desde Elton John nos anos 90.

A importância sócio-cultural que essa realização tem para a comunidade negra LGBT mundial dispensa explicações, servindo como exemplo de excelência pra uma nova geração de pessoas queer marginalizadas que já são capazes de encontrar muito mais referências de sucesso do que quaisquer gerações passadas. Fora isso, é também um passo largo em direção ao progresso para as comunidades do hip-hop e do country, ambas historicamente afetadas por falta de diversidade e LGBTfobia em geral.

A mudança é clara: cada vez mais estamos vendo artistas LGBT tomando protagonismo na mídia e isso é uma reparação histórica mais do que necessária, sobretudo para a comunidade negra. Mas agora vamos falar de outra coisa muito nece$$ária: o dinheiro

Esse recorde nada mais é do que um grande case de marketing musical, não seria possível sem as condições ideais de estratégia e expertise de mídia. O arrebatador sucesso de Old Town Road é fruto da fecundação entre internet, redes sociais e uma geração Z de jovens sedentos por ocupar esses espaços, carimbando sua identidade pessoal no processo. Em outras palavras, é fruto do TikTok. Muito popular entre crianças e adolescentas, a plataforma é atualmente uma das maiores potências no que diz respeito à disseminação de novas músicas e artistas, além de ser o destino de boa parte da verba de gravadoras que investem no digital influencing (todas?). Se o single tomou vida própria, se alastrando pela internet e rádios de todo o mundo como um vírus mortal de country-trap-fusion, é porque conquistou essa comunidade de ávidos consumidores de música digital primeiro. Outros hits virais derivados dessa seita de fãs e influenciadores incluem outras estrelinhas em ascensão como Billie Eilish, Lizzo, Bazzi, entre outros.

Se o TikTok foi o berço, o leite de marketing mais ordenhado na campanha de Old Town Road foi a já batida onda dos remixes. Por mais que já venha se tornando cansativo nos últimos anos, a Columbia Records conseguiu acertar em cheio. Aproveitando a polêmica que o trapper já estava causando mesmo antes de ser descoberto (muito se debatia se o single poderia ou não ser considerado do gênero country), resolveram agarrar o proverbial touro conservador sulista pelos chifres e oficializar a faixa nos charts country, convidando Billy Ray (pai da Miley) Cyrus para completar o single. Essa união marcou não só a primeira empreitada de Lil Nas X com a parceria de uma gravadora, mas também o começo de sua ascensão meteórica. Remixes subsequentes incluem o arroz de festa Diplo (nutrindo o público EDM), Young Thug (fortalecendo o público rap) e até um dos integrantes do BTS (para garantir a cota lavagem cerebral asiática). Diga-se de passagem que tantos remixes em tão pouco tempo chegam a ser até uma sátira da cultura de remixing em si. Assim, além de tudo, ainda conseguem ser donos da própria narrativa.

De todas as versões, as que realmente trouxeram a janta pra mesa foram as duas primeiras (a original e o primeiro remix). Inclusive, o fato de haverem duas versões da mesma música foi fundamental pro seu estrondoso impacto, visto que, realizando o sonho de todo marketeiro, ambas viralizaram quase na mesma medida, garantindo um fluxo literalmente dobrado de streams e royalties. Dito isso, tanto sucesso não seria possível sem a soberania da cultura do streaming. Com o Spotify e YouTube como principais ferramentas globais de alcance, o poder se mantém cada vez mais nas mãos do público. A incansável presença dos singles em charts e playlists ao longo do ano, além de outras tendências atuais como o fato de todas as versões da música serem surpreendentemente curtas, o tornam um sucesso inevitável e garantem um replay factor digno de smash hits atemporais.

Falando em tendências, esse case abastece uma discussão muito recorrente em 2019: a morte do gênero musical. Criativos disruptivos como Lil Nas X e Billie Eilish representam uma nova geração de artistas jovens pouco preocupados em se encaixar em caixas pré-definidas, entregando trabalhos fluidos e multifacetados que dificilmente são definidos com apenas um termo mercadológico como “pop” ou “hip-hop”.

Por fim, a estratégia para evitar que o menino se tornasse um one-hit-wonder também foi certeira. Seguindo o embalo do single de estreia, a Columbia já se prontificou a lançar seu o primeiro EP, que conta com 7 faixas e 2 versões de Old Town Road, abrindo e fechando o disquete. A pequena coletânea de faixas de 2 :30 se provou um ótimo cardápio de novos hits virais em potencial para dar continuidade ao reinado. Inclusive, duas das faixas já apresentaram sucesso espontâneo o bastante para começarem a receber investimento de single — Panini, que já substitui o lugar de OTR no top 10 do Spotify e Rodeo, com participação da também arroz de festa Cardi B. Acho que é certo dizer que ainda ouviremos muitos outros casos de sucesso da jovem poc Lil Nas X.

Respondendo a minha própria pergunta, o recorde do Lil Nas X representa uma nova era. Representa uma nova mentalidade muito mais receptiva e aberta em relação à todas as formas de diversidade e menos presa aos velhos padrões da indústria. Uma nova geração de artistas e ouvintes digitais que já nasceu sem barreiras físicas ou comportamentais, sem medo de tomar o poder nas mãos e de se tornar interlocutora das próprias narrativas na mídia.

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