It’s Superman | De Volta à Era de Ouro

Érico Campos
8 min readFeb 14, 2018

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Capa de uma das primeiras edições de It’s Superman — a Novel

A Era de Ouro — o momento em que as histórias em quadrinhos deixaram as tirinhas de jornal e ganharam seu próprio espaço. Foi também a era dos super-heróis, iniciada com a revista Action Comics #1, onde fomos apresentados ao Superman. Em um mundo ainda sofrendo com a Grande Depressão de 1929, os quadrinhos foram um grande bálsamo e representando, ao lado dos pulps(literatura barata sobre ficção científica, horror e outros gêneros), uma válvula de escape para os problemas da época. Eram histórias descompromissadas e simples, com o herói combatendo vilões. Superman ainda se viraria contra políticos corruptos, gangsters e valentões, mas logo depois iria ganhar sua galeria de vilões excêntrica. Mas desde o começo, a proposta foi o bom e velho combate bem x mal, sem um grande desenvolvimento de personagens ou tons de cinza. Apenas a partir da década de 70, após a vinda dos personagens humanos da Marvel, houve uma maior preocupação em humanizar os heróis. Porém, por mais que os personagens da DC Comics sejam trazidos para mais perto de nós, sua essência é e sempre será divina. Clark Kent é meramente um disfarce para que Superman possa andar entre os mortais.

O pacato repórter e o homem de aço. Propriedade da Warner Brothers. Retirado do site ScreenTV

Eis que o escritor Tom De Haven nos traz de volta à década 30 para dar um olhar mais humano a este icônico personagem. O autor publica desde a década de 80 e criou uma fascinação pela década de 1930 ao pesquisar para seus livros. Após o lançamento de Derby Dugan Depression Funnies(ambientado na década citada), em 1996, este foi abordado pela DC para saber se poderia escrever um romance sobre o Superman ambientada na mesma época de Depression Funnies. O autor concordou, mas queria se dedicar após terminar seu último romance, que só seria lançado em 2001. Enquanto isso, a DC mandou cópias de quadrinhos do Superman da época, para que o mesmo se familiarizasse com o personagem e a época em que estava inserido. O livro demoraria uns quatro anos para ser lançado, pois De Haven produzira mil páginas e muito precisou ser editado até termos as 464 páginas do livro, publicado pela Chronicle Books. Ele ganhou o título de It’s Superman — A Novel.

Capa de Depression Funnies, de De Haven. Fonte: AbeBooks

O autor não queria uma típica história de super-heróis: embora o personagem fosse um ser superpoderoso, a história seria adulta e o mais próximo do mundo real. À exceção de Smalville, não haveriam cidades fictícias; Nova York seria o centro de tudo e Metrópolis seria apenas uma referência em uma exposição temática. De Haven também não poupou detalhes: a descrição de Smallville é riquíssima, com divisões entre as fazendas, área nobre, uma área segregada para pessoas “de cor”… O romance toca muito nos problemas da época, sejam econômicos ou sociais. O racismo não é uma constante, mas impossível não abordar dada a época. A cena em que somos apresentados às habilidades de Clark se dá exatamente quando este tenta defender um amigo, intimidado por um bandido racista.

Um eterno cidadão do mundo. Propriedade da DC Comics. Fonte: Newsrama

O romance é o que se chama de coming of age(tipo de história que mostra a transição de um jovem para a vida adulta), se passando originalmente em 1935 e mostrando o amadurecimento de Clark enquanto lida com seus talentos e a vida. A história é narrada do ponto de vista de vários personagens; além de Clark, predominam a visão de Lois Lane, Willi Berg e Lex Luthor. E todos são apresentados como humanos fascinantes, com virtudes e defeitos e nenhum necessariamente se pondo como bons ou maus. Em muitos capítulos, vemos o que se passa na cabeça de alguns criminosos e como veem com naturalidade e justificam o que estão fazendo.

Diferente dos quadrinhos da DC, em que as identidades civis são um disfarce para a verdadeira persona(o herói), Clark é a identidade primária. E muito do que sabemos sobre o personagem se encontra preservado: ele é apresentado como um jovem tímido, introspectivo e inseguro. Muito de sua insegurança tem a ver com o fato de se sentir como se ninguém pudesse entende-lo e muito disso vem de seus estranhos talentos. É descrito como um rapaz comum, nem bonito nem feio e esforçado. Não é especialmente inteligente também, diferente de sua contraparte dos quadrinhos. Embora seja um bom rapaz e de boa criação, Clark não é o escoteiro dos quadrinhos: ele usa seus poderes em benefício próprio algumas vezes. E é interessante vê-lo fumando, bebendo e se dando bem com uma garota(uma atriz que ele conhece) às vezes; sendo apenas um produto de sua época e sendo humano. E ele muitas vezes não consegue salvar vidas: o ofício de herói é algo que Clark aprende a duras penas e muitas vezes ele é tomado por muita frustração por não conseguir salvar alguém ou corrigir injustiças.

No lugar de seu melhor amigo, Jimmy Olsen, temos aqui o fotógrafo de origem judaica Willi Berg e ex-namorado de Lois Lane. Um rapaz de moral duvidosa, porém de bom coração, é acusado de assassinato e acaba se encontrando foragido da justiça. Durante este evento, ele acaba fazendo amizade com Clark e descobre seus poderes. Sua maior experiência de vida faz com que ele acabe sendo um guia para Clark e ambos acabam viajando juntos, cruzando os Estados Unidos, e conhecendo melhor o país que, na década de 1930, é tão grande quanto o mundo. Inicialmente interessado em usar os poderes de Clark para resolver seus problemas, acaba sendo cativado por ele e inicia uma bela amizade. Ironicamente, para fugir da lei, acaba tingindo o cabelo de ruivo, tal qual Jimmy Olsen.

Lois Lane é retratada desde seus tempos de faculdade até sua estréia como repórter de um grande jornal metropolitano(adivinhem…). Basicamente, não mudou: mulher de personalidade forte, determinada e à frente de seu tempo. Sempre se mostra insatisfeita com os relacionamentos e teme nunca achar o homem certo. Claro que Clark fica fascinado com ela e o relacionamento entre ambos é complicado, pois o primeiro não é exatamente um Don Juan e Lois não é fácil. Muitas vezes o trata com desdém, mas não o faz por mal, embora por vezes fira seus sentimentos.

Lex Luthor é aqui um vereador de Nova York e empresário milionário. Secretamente mantém um império criminoso e é um grande rival de criminosos da época, e também o responsável por incriminar Willi Berg. Um homem brilhante, aqui ele não é um cientista insano mas é mais similar à versão de John Byrne: um homem inteligentíssimo, astuto e capaz de enxergar oportunidades e empregar os melhores talentos para cumprir seus objetivos. Ele tenta fugir da memória de seu pai, um criminoso fracassado que passou o resto de sua vida em fuga com sua família. Nutre também vergonha por sua mãe, uma mulher danificada por uma vida de fugas e pelo alcoolismo. Lex não é exatamente um vilão ultra-confiante: muitas vezes o vemos com dúvidas, com as mãos tremendo e sempre cantarolando alguma canção para acalmar-se, um hábito que causa irritação em algumas pessoas. Tal nervosismo só desaparece após Lex se ver em perigo sobrepuja-lo, enchendo-o de uma emoção tão forte que o mesmo passa a cantar alto alegremente, após ter escapado. Isso mostra um Lex em parte motivado por desafios que o levem ao limite, algo que vai se repetir mais à frente. Ironicamente, apesar de ser um homem implacável, demonstra pouca tolerância com racismo e odeia o cigarro, De fato, ele se mostra bem tolerante, em uma época racista, sexista e homofóbica ao extremo.

A mente criminosa mais brilhante do século! Propriedade da DC Comics. Fonte: Comic Book Resources

Outro ponto de interesse é a relação de todos os personagens com seus pais. Todos são definidos de alguma forma pela relação familiar. A relação de Clark com seu pai, Jonathan, é mais interessante se formos explorar a relação entre Jonathan e seu próprio pai: um homem severo e amargurado. Jonathan sempre achou que não seria um bom pai devido à relação que teve com o seu, porém suas experiências acabaram gerando o oposto e ele se mostrou um homem amável e compreensivo com seu filho. De fato, Jonathan é um homem estudado e de mente peculiar. Embora tenha sido criada por militar rígido, a presença da mãe de Lois foi crucial para que se tornasse a mulher livre e independente que conhecemos. Willi também teve sua relação complicada com sua família, enorme e com muitos irmãos, que foi encerrada depois que foi pego roubando de sua irmã para financiar seus equipamentos de fotografia. E Luthor, como vimos antes, se tornou um homem implacável que jurou nunca se tornar a figura medrosa que foi seu pai; e o faria se tornando o mais influente e poderoso homem do mundo, chegando ao topo.

Menos esse. Esse não é exemplo pra ninguém. Propriedade da Warner Bros. Fonte: YouTube

Todas as tramas vão sendo contruídas separadamente até a convergência, quando todos os personagens chegam a Nova York. Clark vai evoluindo, aprendendo a lidar com seus poderes e lentamente com tudo convergindo para que ele se torne o herói que conhecemos. É interessante a descrição de sua habilidades e suas sensações ao usa-las: ele particularmente não gosta de usar a visão de calor, por seus olhos lacrimejarem. O climax também é interessante pois, só após encontrar aquele que se tornaria seu maior inimigo, é que Clark descobre alguém que o entende e também se vê destacado dos demais. A rivalidade entre ambos é algo diferente dos quadrinhos, nascida da inveja e ego de Luthor; aqui, Luthor vê Clark como um novo desafio, algo diferente e tão ou mais interessante do que já conhecemos.

O livro, infelizmente, não tem versão em português ou previsão de ser trazido ao Brasil. A linguagem apresentada, contudo, não é tão difícil pra quem entende inglês; o que pode complicar é o frequente uso de gírias da época, mas nada que o uso de um bom dicionário não ajude. As mais de quatrocentas páginas fluem bem, e a quantidade de detalhes fascinam, com referências a filmes e até mesmo à marcas de cigarro. Se este tem um defeito é em sua conclusão, que soou um pouco apressada em momentos, mas que em nada afetam o resultado final. Fãs dos quadrinhos podem estranhar a abordagem mais humana, porém ela é natural e faz sentido quando sabemos onde tudo vai indo.

Capa alternativa.

It’s Superman — A Novel é um romance maravilhoso e envolvente, dando uma visão mais realista a estes personagens icônicos mas preservando sua essência. Quem entende o inglês pode se deleitar com romance, que se encontra à venda na Amazon. Altamente recomendado!

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