Coleção - São Francisco, de Descartes Gadelha. Acervo: Museu de Arte da UFC (Reprodução).

DEUS E O PROFETA NA TERRA DO SOL: GRIÔ PROFETA NO MAUC E O LEGADO DE DESCARTES GADELHA.

Erivan Cordeiro

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A trajetória de Descartes Gadelha é fundamental para a construção do fazer artístico cearense. Tal afirmativa tenta, de forma lógica, elencar a Descartes Gadelha a sua importância para a cultura cearense e para a formação do fazer artístico enquanto político. Nascido em Fortaleza, devora a cidade como um artista de vanguarda, inaugura com sua pintura um dos elementos essenciais à arte cearense, pensar a cultura pelo povo. O que poderia ser interpretado por uma ressignificação do fazer artístico, na medida em que elencou suas potencialidades para pensar o concreto das relações sociais, as dinâmicas simbólicas dos rituais humanos e ou a temática do sofrimento de corpos tidos como degradantes. Etnografia da arte e o pensar as imagens seria justamente o ponto chave para entender as pretensões de Descartes Gadelha, afinal, usando arquétipos e construções sociais o autor anuncia uma arte popular e denunciante com pretensões de transformação social. Reivindica a figura do sertanejo, nordestino, pobre e suas derivações na cidade de Fortaleza, palco de inúmeras desigualdades e em movimento crescente.

Descartes Gadelha cresce próximo ao porto da Praia Formosa e torna-se um apaixonado pela mecânica das jangadas dos trabalhadores do mar, desenhava suas extensões e era um conhecedor da área e dos arredores da cidade, popularmente conhecida e efervescente dentro de Fortaleza. A cidade olhava essa região como uma região potencialmente fértil e a região foi banhada, além do mar de descrição alencarianas, por estadunidenses, em sua maioria nos anos 20. Tal situação e contexto histórico possibilitaram um contato maior com as tensões sociais do seu tempo. A região da Praia Formosa foi reinventada nos anos 90 abrigando o luxuoso Hotel Marina Park e sua classe hoje perceptíveis sobre o trecho já sem identificação geográfica. Esta é a Fortaleza que Descartes Gadelha descobriu nascer em seu meio. Longe de apontamentos deterministas, mas Gadelha é um fruto do seu meio, bebe incondicionalmente das fontes de seu entorno e as identifica como elementares. Iniciado nas artes por Zenon Barreto, consagrou-se pelo Mauc como um potente artista cearense e conhecedor das vicissitudes internas da arte popular, Zenon que dava aulas de desenho na época, orientava o aluno nos primeiros anos de sua atuação e foi crucial no aparelhamento artístico de Gadelha.

FONTE: Descartes Gadelha — Pintura de Antônio Conselheiro, imagem do acervo do MAUC.
FONTE: Descartes Gadelha — Site do Museu de Arte da UFC (MAUC).

I. DESCARTES NO MAUC: DUAS POTÊNCIAS PIONEIRAS DA ARTE CEARENSE.

Sua primeira exposição no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará aconteceu em 1963, na coletiva intitulada “A Paisagem Cearense”. Seu objetivo geral era reunir cerca de cinquenta obras que mesclasse os aspectos da construção da paisagem de Fortaleza, garantindo a Descartes uma definição digna como representante da vanguarda artística. A exposição apresentava Gadelha como o expoente mais atual do abstracionismo, ainda que envolvido com o figurativismo já superado. A obra de Gadelha estava no segundo grupo da exposição, dividida em três blocos. O primeiro bloco era liderado por Ottoni Soares, M. Barata, J. Siqueira, R. Vieira da Cunha, R. Melo e Goebe, representantes de um fazer artístico antigo que ocasionalmente se relacionava com as artes plásticas. No segundo grupo da exposição, encontravam-se Bandeira, Floriano, Inimá, Nearco, Nice e Sérvulo como representantes de um abstracionismo vivo com influências antigas do figurativismo reinante. No terceiro grupo estavam Barboza Leite, Barrica, J. Eduardo, J. Fernandes, Garcia, Murilo Teixeira e Júlio Azevedo, além de Hermógenes Gomes da Silva, Raimundo Cela e Vicente Leite, que eram mencionados no catálogo da exposição como “desaparecidos” e compunham o quarto e seleto grupo da exposição.

Após essa exposição, a vida e o currículo de Gadelha no mundo das artes mudaram completamente. Premiado por seus trabalhos mais notáveis, ele expôs várias vezes no MAUC, criando um elo de amizade que se refletiu em uma ação conjunta múltipla entre produtor e receptor. Em 1963, ele também participou de uma coletiva intitulada “Pintores do Nordeste” no Museu de Arte Popular da Bahia. Rapidamente, ele conquistou o primeiro lugar no Salão de Abril nos anos de 1964 e 1965 em sua cidade natal e, em 1967, recebeu Menção Honrosa no 1º Salão Nacional de Artes Plásticas do Ceará. Historicamente, o MAUC representa uma peça fundamental na trajetória de Descartes Gadelha. Não apenas por ter sido pioneiro ao expor o artista pela primeira vez, mas também por ser um motor poderoso na promoção artística, transformando o MAUC em um local de contemplação da arte cearense em seu sentido mais notável, categórico e efetivo. O MAUC também merece destaque por imortalizar a figura de Gadelha na arte contemporânea do estado, proporcionando ao artista uma notável projeção nacional. Assim, o MAUC, como padrinho de um artista transgressor, pulsante e abstracionista por natureza, consolidou-se como um museu do futuro, poderoso e efervescente.

II. DESCARTES GADELHA: ARTE E RESISTÊNCIA NO SERTÃO

A produção artística de Gadelha ficou imortalizada em representações simbólicas do homem nordestino. Peças de bronze, gravuras, telas e peças de argila marcaram sua produção nos primeiros anos. Inspirado pela obra máxima de Euclides da Cunha, “Os Sertões”, que seria considerado o primeiro tratado antropológico do Brasil, Gadelha criou uma das esculturas mais importantes, que está intrinsecamente ligada à causa dos trabalhadores liderados por Antonio Conselheiro no interior da Bahia. Além dessa representação, destacamos também a obra “Cicatrizes Submersas: uma ilustração sobre Canudos”, criada em 1997 no exuberante Palácio da Abolição. É importante ressaltar que Gadelha levou cerca de 30 anos para produzir as estátuas de Canudos, que agora estão no MAUC e recebem visitas constantes.

Em 1989, um ano decisivo em sua obra, Gadelha retratou o ilustre cenário do Jangurussu, um bairro de Fortaleza que aborda questões sociais no campo da segurança pública, violência e acessibilidade na contemporaneidade. Essa mostra de Gadelha rendeu duas exposições significativas no MAUC: a primeira retrata a produção das telas “Catadores do Jangurussu” e a segunda apresenta uma coleção retrospectiva das obras mencionadas e produzidas pelo autor. As obras causam espanto nos visitantes da exposição, pois são carregadas de teor crítico e descritivo, demonstrando um Gadelha muito preocupado com uma arte revolucionária que possa atravessar as emoções líricas daqueles que a contemplam. Na verdade, o brilhantismo dessa mostra reside justamente no papel revolucionário da arte como criação revolucionária, de teor exigente e potencialmente transgressor. Sobre isso José Alcides Pinto(1923–2008), importante literato do Estado do Ceará, alertava:

“Uma exposição rica, arrancada à miséria. A divisão, a partilha, a luta bruta pela sobrevivência. O lixo-pasto da vida. Prato. Sabor amargo. O espaço da miséria preenchido em sua dor. A força e a esperança sobrepujam a indiferença humana. A perversidade. Gadelha soube aproveitar o que não se aproveita. O dejeto ganha luz, expressão, força no pincel desse artista de gênio. A criatura humana não desfalece por dentro. A alma continua inteira na esperança de um novo sol, um novo dia. Sua pintura tira da impureza a beleza do horror. A arte é soberana. O tema não importa. Ou importa muito, como este — o dos catadores de lixo do Aterro Sanitário de Jangurussu. O lado social neste pintor é importante: a denúncia. O lixo, aqui, é fonte de vida dos desamparados, sem outra opção. Embora o sensualismo seja uma constante na arte de Descartes, nesta exposição, porém, a degradação superpõe-se ao sensualismo. É que a miséria é muito forte. Parabéns, Descartes, por mais esse tento artístico. (PINTO, 1889).”

FONTE: Jr Panela — Descartes Gadelha enlaçando os pioneirismos da arte cearense em conjunto ao Museu de Arte da UFC, recém fundado.

Além dessas parcerias, outras colaborações já haviam surgido, como a exposição “Canindé: Canaã Nordestina” em 1974, “De um alguém para outro alguém” nos anos 1990 e “Caldeirão de Fé” em 2006. Além disso, no VII Festival UFC de Cultura, o Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, em parceria com a Coordenadoria de Comunicação Social e Marketing Institucional da universidade, realizou uma retrospectiva com todas as coleções do artista em 2014. Em 2006, como reconhecimento de sua contribuição, foi criada a sala “Descartes Gadelha” como uma sala permanente no MAUC, a partir da doação de 200 obras ao acervo. Suas representações mais marcantes agora estavam no museu que lhe havia dado destaque nas exposições anteriores. Em sua exposição de 1974, o catálogo da mostra trazia os mais sinceros elogios de intelectuais, artistas e admiradores de sua obra. Referenciando seu professor Zenon, que registrou durante toda a sua vida a figura mítica de Iracema, Gadelha deixou para o acervo inúmeras produções sobre a indígena dos “lábios de mel” e que “corre como uma ema”. Destaca-se a imagem que integra o Salão de Iracema, na casa de José de Alencar da Universidade Federal do Ceará, e essa tela está sob guarda do acervo da Universidade. Em 2015, Gadelha recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade das mãos do reitor Henry Holanda.

FONTE: Acervo do Museu de Arte da UFC.

O LEGADO DE DESCARTES GADELHA: ARTE E CONTEMPORANEIDADE.

Grandes personalidades ocupam espaços nas lacunas da subjetividade humana de forma impressionante, e a partir dessa premissa, surge o brilhante pintor cearense Descartes Gadelha. Vinculado ao Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, ele marcou um importante ponto de discussão na arte cearense. Desde criança, Gadelha era um vanguardista e se apaixonou pelas jangadas da Praia Formosa, sendo assombrado pelos contextos sociais complexos enfrentados pela região desde sua fundação.

O pintor decidiu direcionar suas produções para retratar os marginalizados, sejam eles figuras históricas como o velho Antonio Conselheiro de Canudos, ou personagens socialmente construídos como os catadores do Jangurussu. A obra de Descartes Gadelha se destaca como uma vanguarda de um Ceará autêntico, preocupado e pioneiro na luta por uma etnografia denunciadora na arte brasileira. Através de suas produções, que por vezes são vistas como assombrosas aos olhos de uma exposição de arte, o Museu de Arte da Universidade conquistou a reputação de ser um importante promotor da arte popular, abrigando uma das maiores coleções de arte do Brasil.

Os pioneirismos de Gadelha e do MAUC são elementos singulares na história dessas duas instituições. Não é possível contar a história da arte em Fortaleza, e especialmente da arte cearense, sem passar pelos corredores da sala “Descartes Gadelha”, criada em 2006 em função da aquisição de 2000 obras do autor. Dessa forma, Descartes Gadelha marcou um ponto de inflexão na mentalidade artística contemporânea, ao denunciar e construir novas formas de pensar a arte e as transformações de um Ceará tomado pela consciência de liberdade e pela essência popular.

REFERÊNCIAS:

NOBRE, Leila. Resgatando a Fortaleza antiga : A antiga Praia Formosa. Fortaleza Nobre. Disponível em: Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : A antiga Praia Formosa. Acesso em: 03 de Junho de 2023.

SECULT-ARTE-UFC. A Fabulosa obra de Descartes Gadelha.Secult-Arte-UFC. Disponível em: SECULT-ARTE (UFC): A FABULOSA OBRA DE DESCARTES GADELHA (secultarte.blogspot.com). Acesso em: 03 de Junho de 2023.

SECULT-ARTE-UFC. Descartes Gadelha: Perfil histórico. Ceará Cultural. Disponível em: Descartes Gadelha (cearacultural.com.br). Acesso em: 03 de Junho de 2023.

GARCIA, Fátima. Descartes Gadelha. Fortaleza em Fatos e Fotos. Disponível em:. Fortaleza em Fotos e Fatos: Descartes Gadelha. Acesso em: 03 de Junho de 2023.

CORDEIRO, Jaqueline Aragão. Descartes Gadelha — Coisa de Cearense. Coisa de Cearense. Disponível em: Descartes Gadelha — Coisa de Cearense. Acesso em: 03 de Junho de 2023.

MUSEU DE ARTE DA UFC — MAUC, Exposição de 1974,02 — Descartes Gadelha — 18/04/1974. Site do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará. Disponível em: Exposição 1974.02 — Descartes Gadelha — 18/04/1974 — Museu de Arte da UFC — M A U C. Acesso em 03 de Junho de 2023.

https://www.youtube.com/watch?v=pV7T2Ordu1k&pp=ygURZGVzY2FydGVzIGdhZGVsaGE%3D -

Texto, revisão e pesquisa: Antonio Erivan Cordeiro da Silva.

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Erivan Cordeiro

Estudante de Ciências Sociais na UFC, atua nas pesquisas de acervo no Mauc, Estagiário no Museu da Indústria e podcaster no programa "Leituras", no Spotify.