Sobre as Festividades (por Girolamo Zanchi)

Tradição Reformada
7 min readMar 18, 2020

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O apóstolo São Paulo ensina três coisas sobre as festas dos judeus. Primeiro, ele ensina que os judeus tinham festividades, que eram celebradas em sua própria sequência; segundo, ele indica parcialmente sua divisão; terceiro, ele diz que estas foram revogadas: muito menos, portanto, são os gentios por elas vinculados.

Sobre nós, portanto (ou seja, sobre a Igreja de Cristo), surgem as seguintes perguntas. Primeiro, se a Igreja tem ou deve ter festivais; segundo, o que são; terceiro, se é certo santificá-los - onde também teremos que tratar o que significa “santificar” os festivais.

Algumas pessoas afirmam que não é certo que a Igreja de Cristo tenha certos momentos para celebrar alguns festivais, com base em Colossenses 2.16 - onde diz: “Portanto, ninguém vos julgue (...) por causa dos dias de festa”, etc. E Gálatas 4.10 “Guardais dias, e meses, e tempos, e anos.” - pelos quais o apóstolo São Paulo os repreende.

Eu respondo: Mas eles estão enganados, porque o apóstolo estava tratando das festas dos judeus. Isso está claro, porque ele acrescenta, “que são sombras”. Além disso, Deus instituiu o sábado pela lei natural, e isso é perpétuo. Pois mesmo antes de Moisés, por causa do exemplo de Deus descansando nas obras da criação, eles estavam celebrando o sétimo dia e o santificavam. Por esse motivo, ele disse nos Dez Mandamentos: “Lembre-se do dia do sábado, para santificá-lo”, etc., onde ele confirmou a lei natural.

Segundo: Há duas coisas neste mandamento, a saber, a substância e o acidente. Como Colossenses 2 coloca, “a sombra e o corpo”. A substância é um certo período da semana em que era obrigatório que o corpo descansasse de suas obras para que a mente estivesse livre das coisas divinas. O acidente é que foi o sétimo dia em particular. O último foi revogado, o primeiro não foi revogado.

Terceiro: Todos os gentios, desde a criação do mundo, consagram um certo tempo para a adoração divina. Portanto, é natural ter dias de festa.

Quarto: Dos fins para os quais foram instituídos. Certamente esses fins eram a glória de Deus e o bem do próximo. Desses fins, os gregos os chamavam de ἑορτάς [heortās, “festivais” ou “festas”], os latinos de festos dies [“dias de festa”]. Eles são chamados festi [“festivais” ou “dias de festa”] a partir do verbo feriari [“descansar do trabalho”], assim como a palavra “sábado” é retirada do verbo “descansar”, ou seja, de tarefas referentes ao corpo, para que alguém seja livre para adorar a Deus. No entanto, o título dies festus [“dia da festa”] é mais honroso do que dies feriatus [“dia de folga do trabalho”]: o primeiro está ligado ao culto solene a Deus, o segundo não. Ἑορτή [heortē] é do verbo Iρῶ, “eu amo”, “eu desejo”, porque os dias que foram consagrados a Deus devem ser amados e desejados. Pois os dias de festa eram, para os gentios, dias em que era apropriado para eles, tendo deixado de lado os negócios do fórum e da vida cívica, para celebrar (como diz Festus) sacrifícios, jogos e banquetes solenes; estar ocupado com assuntos sagrados; e abster-se de palavras profanas. É assim que Festus descreve os festivais gentios. Mas os jogos não são apropriados para nós cristãos nos dias de festa. Nossos “jogos” devem ser canções sagradas, leituras da Divina Escritura, visitas aos doentes, consolo para os aflitos, provisões para os pobres e coisas de natureza semelhante. Pois, embora devamos fazer essas coisas todos os dias, no entanto, porque somos impedidos por outros deveres, muitas vezes somos incapazes de fazê-lo. Por essa razão, certos dias foram instituídos para exercícios sagrados, que chamamos de “festivais”.

Que dias de festa a Igreja de Israel teve e que dias de festa a Igreja Cristã pode ter? Vou dizer algumas coisas sobre a Igreja de Israel e depois vou falar sobre a Igreja Cristã.

Havia dois tipos de festivais na Igreja de Israel. O primeiro tipo foi instituído por Deus; o outro tipo consistia naqueles que foram, por um lado, instituídos pelos homens, mas, por outro, foram aprovados e recebidos pelo consentimento de toda a Igreja. Para o primeiro tipo pertencia o sábado a cada sétimo dia da semana (Êxodo 20), e esse era o principal festival de todos; Lua Nova, comemorada todos os meses (Números 10 e 26); os festivais anuais, Páscoa (também chamada Festa dos Pães Asmos), Pentecostes (Levítico 23), Festa dos Tabernáculos no sétimo mês (também chamada Festa das Trombetas, Expiação e Assembléia); e a festa do jubileu a cada cinquenta anos (Levítico 25), na qual a liberdade era concedida a todos os escravos e cativos. Todas essas eram sombras de coisas futuras. Exemplos do Sábado dos hebreus, Páscoa, Pentecostes, Tabernáculos e ano do jubileu são encontrados em toda parte nas Escrituras. Eles pertencem ao primeiro tipo, ou seja, aqueles que foram ordenados por Deus por meio de Moisés.

O segundo tipo, como eu disse, consistia daqueles que foram instituídos por certos homens, mas foram celebrados com o consentimento de toda a Igreja, como Purim ou a Festa de Lotes, que Mordecai instituiu, como é explicado em Ester 9; ou a Festa da Dedicação [Encoenia], instituída por Judas Maccabeus para a comemoração do conserto do templo e a libertação dos judeus da tirania de Antíoco Epifanes (1 Macabeus 4). Cristo honrou esses festivais com sua presença. Deste fato, infere-se que os festivais que foram aprovados pela Igreja Católica não devem ser desprezados. Santo Agostinho argumenta nesse sentido na Epístola 118, onde ele fala sobre a preservação de todos os festivais originados após o fechamento do cânon que se diz terem sido observados em todo o mundo.

Apenas um tipo deles (isto é, um tipo de festivais cristãos) tem sua origem nos apóstolos; os outros têm origem nos pais, mas com o consentimento de toda a Igreja. Ao primeiro tipo pertence o Dia do Senhor, que foi o sucessor do sábado (Apocalipse 1: “Eu estava no Espírito no dia do Senhor”). Por que é assim chamado? Como a Ceia é chamada de “Ceia do Senhor”, porque é a sucessora da Páscoa, da mesma maneira que o “Dia do Senhor” é o sucessor do sábado; o mesmo acontece com a circuncisão de Cristo, isto é, o batismo (Colossenses 2), que é o sucessor da circuncisão mosaica (2 Coríntios 16). É feita menção deste dia (isto é, o primeiro dia da semana) em Atos 20: “No primeiro dia da semana, os irmãos se reuniram para partir o pão”; e Paulo pregou naquela ocasião.

Não se pode provar com clareza que os outros festivais tiveram origem nos apóstolos. Quanto às afirmações que algumas pessoas fazem sobre o Pentecostes a partir de Atos 20 e de 1 Coríntios 16, onde Paulo faz menção ao Pentecostes, elas não têm nada a ver com o assunto em questão, pois ele fala do Pentecostes dos judeus. Pois ele estava indo a esta celebração sem superstição apenas para ensinar e não parecer um desprezador da lei.

Mas que logo após os apóstolos foram instituídos os festivais da Páscoa e do Pentecostes, e da mesma forma outros festivais a respeito de Cristo, não muito tempo depois disso, em que ocasiões, é claro, os relatos históricos dos mistérios de Cristo são lidos em voz alta solenemente: tudo isto é estabelecido a partir das histórias da Igreja e dos textos dos santos padres gregos e latinos a respeito daqueles dias. Estes são os dias em que é comemorada a natividade do Senhor Jesus Cristo [Natal]; a circuncisão dele; seu jejum [Quaresma]; sua transfiguração; a última Ceia; sua paixão, morte e enterro; sua ressurreição; sua ascensão ao céu; o envio do Espírito Santo [Pentecostes].

Tudo isso está incluído nas histórias evangélicas; os santos padres estavam acostumados a explicar isso às pessoas em horários fixos, uma vez que as pessoas não podiam estar presentes nas assembléias religiosas todos os dias. Além disso, quão grande é o uso disso para pessoas que nunca leem as Escrituras? Eu, certamente, não me afasto da antiguidade, a menos que tenha sido obrigado. E mantenho minha opinião em comum com o divino Agostinho, que diz (Tomo II, Ep. 118) que, depois dos livros sagrados, as coisas que se julga terem procedido dos apóstolos por tradições não escritas ou que foram definidas por concílios ecumênicos devem ser preservadas por nós. Além disso, essas coisas são aquelas que se lê serem observadas em todo o mundo.

Portanto, tanto pela reverência pela antiguidade quanto pela utilidade que as pessoas ganham com esses festivais se forem celebrados corretamente, esses dias de festa não devem ser simplesmente negligenciados por nós.

Mais tarde, seguiram-se festivais de apóstolos e mártires. São Jerônimo discute isso em seu comentário sobre Gálatas 4. Eles diferem dos tratados acima que têm a ver com Cristo, porque os últimos eram costumeiramente celebrados em todos os lugares, o primeiro apenas onde os mártires morreram. Mas eles tinham um duplo fim: foram instituídos (1) para a memória daqueles que os precederam e (2) para a utilidade daqueles que os seguiram. Primeiro, suas ações, fé e assim por diante são proclamadas para a glória de Deus. Segundo, as pessoas são assim estimuladas à ação de graças e à imitação. Assim São Basílio no Salmo 114; cita as orações eclesiásticas:

Concede, ó Deus, àqueles cujos aniversários honramos, também imitamos as ações dos mesmos.

Portanto, os próprios mártires não estavam sendo invocados. Sobre inúmeros outros festivais, que não têm testemunho genuíno, é inútil falar.

Mas por que esses festivais antigos foram eliminados em muitos lugares? Eu respondo: Porque eles foram transformados em idolatria, abusos, ruína e corrupção moral. Por esses motivos, Bucer e Calvino seguiram o exemplo do rei Ezequias (2 Reis 18.4) ao abolirem as festividades.

Mas, por esse raciocínio, a Ceia e o batismo do Senhor não deveriam também ser eliminados? Eu respondo: Os exemplos não são do mesmo tipo, porque eles são ordenados claramente à igreja, enquanto os outros são apenas permitidos. Por esse motivo, basta purgar a Ceia e o Batismo de abusos e manter as festas necessárias.

Girolamo Zanchi (1516 — 1590) foi um clérigo, teólogo escolástico e docente italiano de confissão reformada continental. Zanchi influenciou o desenvolvimento da ortodoxia reformada durante os anos seguintes à morte do reformador João Calvino.

Esse texto foi extraído do seu tratado De Festis, em seus Comentários de Colossenses (Cap. II, verso 17).

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