Teocracia sem Teonomia?

Tradição Reformada
7 min readMay 18, 2020

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Talvez seja um erro comum, mas muito ruim, confundir teocracia com teonomia.[1] Por outro lado, também é um erro equiparar a teocracia à eclesiocracia ou clericalismo. Os reformadores magisteriais eram teocratas, acreditando como no reinado de Cristo sobre todas as ordens terrenas e celestes, mas não eram teonomistas, porque negavam que a letra da lei mosaica fosse estabelecida em todas as políticas terrenas; nem foram eclesiocratas ou clericalistas, desde que eles não acreditam que o Magistério Eclesiástico foi a mais alta autoridade em qualquer política.

Neste texto, eu gostaria de focar na distinção entre a teocracia defendida pelos reformadores magisteriais e a teonomia. Os reformadores podiam manter sua posição de (1) teocracia não-teonômica (2) por causa de dois princípios complementares: primeiro, porque aderiam à idéia de que todas as questões temporais eram, bem, circunstanciais e, portanto, temporárias; essa é a natureza do reino terrestre. O código mosaico vinculava o povo de Moisés - isto é, Israel - e, portanto, expirou com a política mosaica, assim como qualquer outro código civil expiraria junto com a política que foi codificada para governar.

Mas, segundo, o que não expirou foi a lei moral, ou a lei da natureza, da qual a administração mosaica era uma concretização, especialmente adaptada às circunstâncias de seu tempo e lugar. A essa lei moral, todas as políticas terrenas estavam vinculadas, gregos, romanos, suíços e alemães não menos que os israelitas. Além disso, essa lei moral ou natural era teocrática, porque tinha Deus como autor e, depois da Ascensão, Cristo como rei entronizado. Portanto, esses dois elementos, lei natural e uma distinção rigorosa entre os reinos terrestre e celeste, levaram forçosamente à teocracia sem teonomia.

Um lugar em que podemos ver a formulação da negação do uso continuado do código mosaico está no comentário de Philipp Melanchthon sobre o décimo terceiro capítulo de Romanos. Aqui, a “lei das nações” está vinculada à lei da natureza como padrão para garantir sua legitimidade; essa lei é referida, por sua vez, como "razão".

Mas nesta definição [do magistrado] é perguntado: de onde sabemos que coisas foram feitas corretamente? Eu respondo: Paulo aqui omite uma discussão mais longa e fala geralmente pela seguinte razão: para que ele possa aprovar as leis de todas as nações [gentium] relativas aos assuntos civis - sob a condição, no entanto, de que elas concordem com a lei da natureza [lege naturae]. Pois é por isso que ele deseja que as coisas tenham sido feitas corretamente nos assuntos civis. Portanto, ele apóia esta terceira regra, a saber: que o cristão não está vinculado à política mosaica, mas tem permissão para fazer uso das leis de todas as nações que concordam com a razão [ratione]. De fato, assim como o cristão deve obediência ao magistrado encarregado dele [2], como foi dito acima na cláusula "ao magistrado que o encarregou de você", ele deve obediência às leis que o encarregam, se concordarem com a razão. Portanto, é permitido enforcar ladrões, é permitido dividir heranças por nossas leis, porque o Evangelho não estabeleceu uma nova política terrena [novam politiam mundanam], mas faz declarações públicas a respeito da vida eterna e espiritual. Enquanto isso, permite-nos fazer uso de diversas políticas, assim como em diversos intervalos de dias. Porque, como se ordena a obediência ao magistrado que nos encarrega, também se ordena que façamos uso das leis que nos cobram. E no terceiro capítulo do serviço militar romano de Lucas é aprovado. E em Atos 15, os apóstolos proíbem que os gentios sejam sobrecarregados com a política de Moisés. E Paulo diz: "Em Cristo não há judeu nem grego". [3]

Mais conhecida, eu acho, é a afirmação congruente de João Calvino nas Institutas (Vol. 4, Capítulo 20, verso 16), onde ele iguala a lei moral à lei eterna e à lei divina e argumenta que isso, em vez das aplicações particulares da lei moral no Código mosaico, deve ser respeitado nas comunidades terrenas:

O que eu disse ficará claro se atendermos, como deveríamos, a duas coisas relacionadas a todas as leis - a promulgação da lei e a eqüidade sobre a qual a promulgação se baseia e repousa. A equidade, como é natural, não pode ser a mesma em todos e, portanto, deve ser proposta por todas as leis, de acordo com a natureza da coisa promulgada. Como as constituições têm algumas circunstâncias das quais dependem parcialmente, não há nada que impeça sua diversidade, desde que todos busquem a eqüidade como seu fim. Agora, como é evidente que a lei de Deus que chamamos de moral nada mais é do que o testemunho da lei natural e daquela consciência que Deus gravou na mente dos homens, toda essa equidade da qual agora falamos é prescrito nele. Por isso, por si só, deve ser o objetivo, a regra e o fim de todas as leis. Onde quer que leis sejam formadas após esta regra, direcionadas para esse objetivo e restritas a esse fim, não há razão para que elas sejam reprovadas por nós, por mais que possam diferir da lei judaica ou entre si (Agostinho. De Civit Dei, Lib. 19 c. 17). A lei de Deus proíbe furtar. A pena que foi estabelecida aos furtos, no governo dos judeus, pode ser lida em Êxodo [22.1-4]. As leis antiqüíssimas de outros povos puniam o furto em dobro; as leis que depois se seguiram fizeram distinção entre furto manifesto e furto não manifesto. Umas procederam ao banimento; outras, ao chicoteamento; outras, enfim, à pena capital. Entre os judeus, o falso testemunho era castigado pela pena de talião [Dt 19.18-21]; em outra parte, apenas de grave ignomínia; em outra, pelo enforcamento; em outra, pela crucificação. Todas as leis, igualmente, vingam o homicídio com sangue, contudo com gêneros diversos de morte. Contra os adúlteros foram decretadas, em uma parte, penas mais severas; em outra, penas mais leves. Vemos, entretanto, que em diversidade de tal molde, todas tendem ao mesmo fim. Ora, com uma só voz, a um tempo, pronunciam penalidade contra aqueles delitos que foram condenados pela eterna lei de Deus, a saber, homicídios, furtos, adultérios, falsos testemunhos; mas, não houve concordância quanto ao modo da pena. Aliás, isso não é necessário e nem mesmo conveniente. Há região que, a menos que proceda severamente com horrendos exemplos para com os homicidas, logo a seguir ele se perderá em matanças e latrocínios. Há época que demanda aumento no rigor das penas. Se algo foi conturbado na ordem pública, os males que daí costumam nascer devem ser corrigidos por novos editos. Em tempo de guerra, no estrépito das armas, todo senso de humanidade sucumbiria, a menos que seja introduzido insólito medo de castigos. Em tempo de improdutividade e na epidemia, a não ser que se aplique maior severidade, tudo irá abaixo. Gente há mais propensa a certo vício, salvo se for reprimida de forma austera. O que se desse por ofendido por tal diversidade, mui própria para manter a observância da lei de Deus, não seria um malvado e subversivo do bem público? Ora, o que alguns costumam objetar, que se faz injúria à lei de Deus dada por mediação de Moisés, quando ao aboli-la preferem em seu lugar outras novas leis, é coisa absolutamente fútil, porque não lhe são preferidas como simplesmente melhores, mas em razão da condição e circunstâncias de tempo, de lugar e país. Além disso, ao agir assim não fica abolida, já que nunca foi promulgada para nós, que procedemos dos gentios. Porque nosso Senhor não a deu por ministério de Moisés para que fosse promulgada a todas as nações e povos, nem para que fosse guardada por todo o mundo; mas que, havendo ele recebido de modo especial ao povo judeu sob sua proteção, amparo e defesa, quis também ser seu particular Legislador; e como convinha a um bom e sábio legislador, teve presente em todas as leis que lhes deu a utilidade e proveito do povo.

Por que isso importa? Porque as distinções são importantes, e porque deveríamos desejar entender os reformadores magisteriais em seus próprios termos, e não por fusão com um movimento moderno tardio ao qual seu próprio pensamento tem pouca semelhança. Como eles eram, em geral, melhores estudantes da tradição clássica da filosofia jurídica e política do que nós, devemos fazer todos os esforços para entender sua reflexão no nível de princípio (se chegamos a um acordo final com esses princípios ou não) da melhor maneira/grau possível. Antes de abrir os olhos, é melhor ficarmos de pé sobre os ombros do que primeiro dar as costas.

NOTAS

[1] Ambos, afinal, têm a ver com Deus e com o governo.

[2] praesenti, ou seja, seu próprio magistrado, aquele que está "presente" a ele a esse respeito. Como Melanchthon notara anteriormente, um cidadão de Colônia não deve obediência ao magistrado de Paris. É nesse sentido que ele está usando o "presente" nesta seção. Traduzi que ele "deve se encarregar" de, o que significa "ter autoridade legítima".

[3] A tradução é minha.

Escrito por E. J. Hutchinson. Extraído de Theocracy without Theonomy?, traduzido pela equipe Tradição Reformada.

E. J. Hutchinson é professor assistente de clássicos no Hillsdale College.

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