Aquele sobre as mentiras que os sitcoms nos contaram

Escre(vi)vências
6 min readFeb 24, 2016

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De todas as mentiras que os sitcoms estadunidenses nos contaram — que é possível ter 20 e poucos anos, estar em início de carreira, e morar em Manhattan sozinho em um apê razoável; que é possível almoçar hamburguer e fritas todos os dias depois dos 30 e ser magra — nada é mais cruel e mentiroso do que o mito sobre a amizade. A história de que eu “estarei lá por você — e você também estará por mim”.

Stephen King, no conto que deu origem ao filme Conta Comigo, dizia que jamais se faz amigos como na adolescência. Não sei se concordo com a frase, necessariamente. Mas certamente concordo que jamais se tem a disponibilidade para os amigos como na adolescência.

Quando você vira adulto de verdade certas atividade que definiriam anteriormente uma amizade tornam-se impossíveis. Tomar um café no meio do dia, de bobeira, no lugar que todo mundo vai? Como as personagens de Friends conseguiam? E, mesmo que fosse no final do dia…em uma cidade grande você enfrenta trânsito pra voltar pra casa. Demora no mínimo uma hora. Não raro já tem agendado outros compromissos, como uma atividade física, ou mesmo dar um jeito na casa. Ou continuar trabalhando. Ou você está tão morta(o) que só quer desmaiar na frente do sofá ou na cama. Não vou nem entrar na questão de quem tem filhos.

That’s 70 show

O fato é que, para maioria das pessoas, nas quais eu não me incluo, quando você cresce, os amigos passam para um segundo plano. O mais importante passa a ser a família. Digo que não faço parte disso, porque acredito que há amigos que são família, ou até muito mais que família — embora na prática conte nos dedos de uma mão quem é assim.

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Aí você se organiza com meses de antecedência. Tenta marcar com todo mundo. Pensa nos horários. Se esquematiza. As pessoas te dão o bolo. Chegam atrasadas. Saem cedo. Ou quando vão você começa a se perguntar por que realmente era amiga dela.

Quando você é adolescente, tudo (ou quase, pra maioria, pelo menos) o que você quer é se encaixar um grupo, mesmo que este seja diferente de todo o resto. As diferenças são minimizadas. Quando você cresce se dá conta do oposto: seus amigos são completamente diferente de você. Eles também cresceram. Têm gostos próprios. Se casaram com gente muito mala pro seu gosto— isso quando esse tipo de gente não o/a proíbe de ver os amigos ou de formas sutis passa a boicotar essa proximidade. Passam a ser se extrema direita ou extrema esquerda, quando você se encontra no outro espectro político. Se convertem a seitas bizarras, religiões fundamentalistas. Mudam-se para o meio do mato e param de atender os telefonemas até mesmo da própria mãe. Viram ermitões de hábitos esquisitos do tipo só sair de casa até às 20h e só tomar cerveja de garrafa do boteco X. Ou, às vezes, o mala é você. E aí quando não sobra nenhuma afinidade, sobra muito pouco. Só o sabor das aventuras vividas outrora. O carinho. Lembranças. Pelo menos pra mim foi assim. Não consigo ser amiga — da forma como eu entendo a amizade — de gente tão diferente assim de mim.

Todo mundo com quem eu converso, diz “ah, mas é assim mesmo. Isso não quer dizer que as pessoas não sejam amigas”. Será? O que define uma amizade? Caso eu realmente precise, sei que tenho muito mais do que cinco amigos para me ajudar. Caso eu tenha, sei lá, uma doença mortal (toc, toc, toc) ou minha case pegue fogo e eu perca tudo, um monte de gente virá me ajudar, tenho certeza. Mas será que é isso que define a amizade? Alguém que em caso de extrema doença ou dificuldade “estaria lá pra você”? Eu “estaria lá” também por um monte de gente que não conheço, mas que precisasse de mim. Onde estão os amigos para compartilhar os momentos repletos de nada no meio do dia? Se perderam pelo caminho?

Talvez porque o tema da amizade seja um dos mais caros a mim, ou talvez porque nenhuma série retratou tão bem a amizade quanto esta, Anos Incríveis (The Wonder Years) é um dos melhores seriados que eu já vi na vida. Me lembro de assistir dublado na TV Cultura (um dos raros casos em que eu prefiro a versão dublada do que a legendada). Eu tinha uns 16 anos, talvez, e já pressentia todo um mundo meu que ruiria com a ida para a faculdade, tal como aquele descrito na série. Um dos meus irmãos que já não morava na casa dos meus pais vinha uma vez por semana trabalhar na nossa cidade natal e me lembro de assistir com ele. Era raríssimo o episódio em que eu não terminava com um nó na garganta e o sentimento de que eles estava falando de algo que eu sabia, ainda que a série fosse sobre jovens estadunidenses dos anos 60. Mesmo meu irmão, dez anos mais velho, também adorava.

Não vejo essa série receber todas as homenagens que ela merece. Não vejo muitos estudos acadêmicos, inclusive, sobre o tema. Não comparado a tantas outras que eu citei neste mesmo texto. A belíssima trilha sonora dos anos 60, recheada de Beatles, Stones, Janis Joplin, Joe Cooker, Jimmy Hendrix etc, foi também um dos empecilhos para que a série fosse comercializada. Muitos problemas com direitos autorais envolvidos. Só há relativamente pouco tempo a série passou a ser comercializada. Nunca foi reprisada por esses canais de série e sempre foi impossível de se achar para baixar em sites de download.

E o que uma série sobre a adolescência pode ter de tão especial até hoje? Ela fala sobre uma fase que acaba pra todo mundo. Talvez a sua dure até que você tenha 25 anos, não sei. Ou que você tenha menos ilusões do que eu a esse respeito — o que, convenhamos, é fácil, já que quase todo mundo que eu conheço fala “a vida é assim mesmo, você não sabia?”. Não, não sabia. Ou talvez saiba, mas esqueça com frequência, outro defeito meu, aliás. Há uns 20 e poucos anos que tento me acostumar com o fato. E dia desses me mandaram uma foto pelo whats app de um grupo de amigos que era puro “Os Goonies”. E eu não pude conter as lágrimas ao pensar em como estavam todos daquelas fotos radicalmente separados de forma quase irremediável para todo sempre. Sem a menor chance de volta. Sendo que nenhum deles estava morto.

Anos Incríveis é tão lindo porque ele mostra a amizade enquanto a vida ainda não separou as pessoas. Acredite, a vida vai separar até aquele amigo que você julgava inseparável. A série é toda narrada pelo Kevin Arnold, o protagonista, mostrando as agruras de um adolescente tentando se encaixar no duro High School estadunidense. No último episódio — ah, é. Vou dar spoiler, sim — ele nos conta que a menina por quem fora apaixonado na maior parte da série se casaria com outro e ele nunca mais a veria. Paul Pfeifer (pelo amor de Deus, ele não é o Marilyn Manson!), seu fiel escudeiro e melhor amigo, também seria alguém com quem ele perderia completamente o contato. O pai dele morreria de ataque cardíaco pouco tempo depois.

E não é assim a vida de todo mundo?

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