[Tradução — Texto] William C. Anderson — Uma nota sobre o ‘estado falho’

Escurecendo o Anarquismo
5 min readMar 1, 2023

Uma Nota sobre o Estado Falho[1] [2]

O estado não pode falhar com aqueles aos quais nunca deveria proteger. Chamar os EUA de um “estado falho” implica que ele tinha a intenção de servir ao povo ao qual ele foi designado oprimir. Ainda assim, a proliferação desse tipo de crítica entre progressistas, esquerdistas e outros se tornou mais prevalente no acontecimento de uma combinação de crises de todo o tipo durante a última metade da presidência do Trump[3]. Analisar o que esse termo implica poderia nos ajudar a responder os problemas expostos por suas limitações.

Pessoas diferentes possuem intenções diferentes quando rejeitam os EUA como um estado falho, mas a suposição oculta para muitos é que o estado deveria beneficiar o povo. Em um tempo onde o abolicionismo está crescendo, particularmente em relação ao complexo prisional industrial[4], é muito importante entender as conexões entre o estado e as pessoas as quais ele destrói. Assim como o sistema judicial não está “quebrado”, o estado não está fracassando porque exclusão e subjugação são aspectos definitivos da sua formação.

É possível observar como o estado sanciona a violência através da polícia e do exército para melhor compreender a violência do estado como um todo. Quando a polícia mata, tortura ou agride pessoas, sempre ouvimos ser descrito como “excesso de força”. Sabemos que o estado concede à polícia poder para usar força (mortal e extrajudicial se quiserem) em primeiro lugar, então condená-la como “excessiva” é dar-lhe alguma medida de aceitabilidade. É como dizer, “Você pode ter o direito de matar, mas talvez você não deva tê-lo nesse momento.” Rotulá-la em termos de excesso reautoriza a norma quando não é considerada insensata para executar pessoas livremente. Isso mão faz absolutamente nada para confrontar o padrão de tamanha atrocidade porque casualmente reforça e legitima a violência.

De forma similar, dizer que os EUA é um estado falho é ignorar o fato de que a fundação do estado é a violência imensurável infligida contra os povos Nativo, Preto, imigrantes, pessoas pobres e muitas, muitas outras. Quando sugerimos que ele está falhando com essas pessoas, isso implica que podemos mudar ou reformar o núcleo de funcionamento de um aparato que foi estruturado com a dominação e morte do nosso povo como o resultado pretendido. Isso não é meramente um fenômeno dos EUA. Junto a Grace Lee Boggs e Cornelius Castoriadis, C.L.R James escreveu o seguinte:

“O mundo inteiro hoje vive às sombras do poder do estado. Esse poder do estado é uma força sempre presente autoperpetuadora sobre e a acima da sociedade. Ele transforma a personalidade humana em uma massa de necessidades econômicas a serem satisfeitas por pontos decimais de progresso econômico. Rouba a todos a iniciativa e obstrui o livre desenvolvimento da sociedade. O poder do estado, seja qual for nome pelo qual seja chamado, estado de partido único[5] ou estado de bem-estar social, destrói toda pretensão de governo para o povo, do povo. Tudo que resta é um governo em nome do povo.”[6]

Logicamente, nem todos os estados são iguais em termos de poder e destruição, mas se quisermos castigar estados tornando violência sistêmica em falha, então precisamos perguntar o que é um estado bem-sucedido e se ele não inflige violência inaceitável às pessoas? Chamar os EUA de estado falho corre o risco de se engajar em um ato inadvertido de esperança no projeto dos EUA dele mesmo sugerindo que acreditamos que ele faria o que nunca fez ao povo oprimido: servi-lo. O termo “estado falho” também carrega a bagagem excepcional da superioridade Ocidental nele porque é sempre designado a lugares no Sul Global como Somália, Iraque ou a República Democrática do Congo. Possui a violência da hegemonia e financiamento globais incrustadas nele como uma designação. Enquanto isso, a violência e exploração imperialista dos estados ocidentais que tornam outros países “falhos” são perdoados pela noção liberal que estados falham porque não estão funcionando corretamente ou porque são “corruptos”. Entretanto, é nítido que esses países sofreram agressões odiosas nas mãos de outros estados.

O que é rotulado como fracasso — como deixar as pessoas para morrer em crises ecológicas ou não prover recursos adequados a pessoas em necessidade — deveria nos levar a questionar a necessidade do estado. Em vez de estarmos atrelados a uma figura que não atende as nossas necessidades, deveríamos ter esperança de rejeitá-lo como um projeto recompensador. O estado não mudará por nós e deveríamos ser cautelosos com esforços em tomar o poder do estado com esperanças de reformar essa perigosa arma em algo supostamente melhor. Assim como abolicionistas penais não esperam tornar as prisões mais suportáveis já que a existência das prisões que é o problema, não deveríamos esperar reabilitar as condições opressivas do confinamento dentro das fronteiras do estado-nação. Uma visão abolicionista completa requer que confrontemos a ideia de que a polícia, fronteiras e forças armadas devam existir no mundo. Alguns podem achar que a ausência de um estado nos deixaria sem defesa quando já temos que nos defender desse monstro cotidianamente. Esse pensamento poderia ser facilmente comparado com aqueles que questionam quão seguro as coisas seriam sem polícia. A polícia é apenas uma das muitas forças que o estado autorizou para nos matar a qualquer momento; isso certamente não é segurança.

Tornar a figura do estado necessária e usar a linguagem de falha pode representar um limite de imaginação — que estamos prestes a repetir os esforços para controlar algo tão perigoso que carrega consigo consequências nucleares. O poder do estado é uma arma que alguns lutam para exercer e outros lutam para destruir. Não importa a intenção das pessoas, precisamos ser honestos quanto ao propósito do poder do estado. Nós estamos falhando com nós mesmos se acreditamos que o estado estará no lugar que encontremos triunfo, quando sabemos que é onde sofremos tantas perdas.

[1] Artigo publicado originalmente no projeto offshoot em 5 de maio de 2021.
[2]Do original failed state. O conceito de failed State é traduzido para o português, grande parte das vezes, como ‘Estado fracassado’ ou ‘Estado falido’. Porém, como o autor usa no texto expressões na qual o Estado falha com setores da sociedade e essas traduções não encaixariam bem, foi escolhido usar ‘Estado falho’. Também, manteve-se a grafia com minúscula, como o autor usou.
[3]Donald Trump foi presidente dos Estados Unidos de janeiro de 2017 a janeiro de 2021.
[4]Do original prison industrial complex, termo utilizado para se referir ao estado atual das instituições prisionais dos Estados Unidos, onde uma série de empresas privadas lucram com o aumento do número de pessoas encarceradas, tornando o encarceramento em massa do povo Preto e Latino um negócio altamente lucrativo.
[5]Do original One-Party state.
[6]Excerto do texto Facing Reality, de 1958.

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