COLABORAÇÃO PREMIADA: instituto legítimo, legal e essencial ao processo penal brasileiro

Escola Superior do MPU
6 min readMar 30, 2016

Por Douglas Fischer, Procurador Regional da República

A colaboração premiada tornou-se essencial na obtenção de provas de certos crimes, como a corrupção. Nos últimos anos, esse instrumento ganhou notoriedade e tornou-se objeto de intensos debates. Existem inúmeras manifestações (algumas corretas, outras muito equivocadas) acerca desse instituto. Para desmistificar alguns posicionamentos, é preciso conhecimento.

Há anos, o instituto da colaboração premial é utilizado em vários ordenamentos jurídicos comparados. No Brasil, leis já previam, mesmo que limitadamente, alguns benefícios a quem colaborasse com a Justiça. Entretanto, a regulamentação detalhada ocorreu com a Lei n. 12.850/2013.

A colaboração é um meio de obtenção de prova com capacidade de comprovar a autoria e a materialidade de crimes. É útil principalmente naqueles crimes em que a coleta, pela natureza das condutas (corrupção, lavagem de dinheiro, fraudes, sonegações de tributos, evasões de divisas, organizações criminosas etc.), é bastante difícil e raramente ocorre sem que haja participação de pessoas envolvidas. A colaboração pode ocorrer na fase da investigação ou no curso do processo. Ela se materializa quando determinada pessoa, espontânea e voluntariamente, confessa a prática de crimes e aponta a participação de terceiros, entregando provas e/ou auxiliando o Estado em sua busca contra os demais (e normalmente mais relevantes) criminosos envolvidos.

O Brasil se comprometeu internacionalmente a adotar a colaboração premiada como um meio de prova no seu sistema jurídico. O instrumento está previsto no artigo 26 da Convenção de Palermo (internalizada por meio do Decreto n. 5.015/2004) e também no artigo 37 da Convenção de Mérida — contra a Corrupção (internalizada por meio do Decreto n. 5.687/2006).

É preciso refutar, e com veemência, certos discursos vazios repetidos no sentido de que a colaboração seria uma afronta ao sistema democrático, com violação de direitos fundamentais dos investigados. Dois argumentos sustentam essa afirmação. Primeiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) recentemente reconheceu de forma unânime (HC n. 127.483-PR, Plenário, DJ de 4.2.2016) a validade e a constitucionalidade do instituto da colaboração premiada. Segundo, como se trata de um meio de obtenção de prova, estará sempre — repita-se: sempre — sujeito ao crivo do Poder Judiciário, que analisará inicialmente se o processo ocorre de acordo com o sistema jurídico. Além disso, todas as provas produzidas necessariamente deverão ser disponibilizadas para a defesa daqueles que tiverem sido citados, assegurando assim os princípios da ampla defesa e do contraditório.

De forma correta, uma das precauções constantes das regras que tratam do tema atualmente em nosso País é garantir a voluntariedade e a espontaneidade das declarações do colaborador. Neste ponto, esta deve ser uma das maiores preocupações, especialmente pelo Ministério Público, adotando-se todas as medidas necessárias para que jamais haja qualquer tipo de imposição ou pressão para que o colaborador realize o acordo.

Alguns desavisados ou desconhecedores repetem que a prisão cautelar é utilizada como forma de pressionar a realização de acordos. Um erro gravíssimo. As prisões cautelares são utilizadas estritamente quando necessárias e mediante a observância dos requisitos legais. Exemplo disso é o baixíssimo índice de provimento de habeas corpus, inclusive pelo STF, em recentes casos de presos em processo com grande repercussão nacional e internacional. Há quem sustente ainda (já existe até projeto de lei neste sentido) que a colaboração premiada deveria ser realizada apenas com pessoas que se encontrem em liberdade, nunca presas. O disparate de certos não tem limites, sempre na tentativa de buscar a ineficiência dos institutos.

Outro exemplo: no caso da Operação Lava Jato, ainda em curso, quase 80% das colaborações premiadas foram realizadas com pessoas que estavam em liberdade. É verdade que, em alguns casos, colaboradores que estavam presos de forma cautelar foram soltos posteriormente. Entretanto, e aqui a relevância do destaque, a liberdade decorreu não pelo fato de terem feito a colaboração, mas porque a pena, ao final (e não no início das tratativas) acordada entre as partes, se revelou incompatível com a prisão cautelar. Exatamente por isso é que, de forma acertada uma vez mais, o STF reconheceu que a liberdade que deve ter o colaborador é psíquica, e não de locomoção.

Nunca é demais realçar o que prevê a legislação: “o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações” (§ 13 do art. 4º da Lei n. 12.850/2013). Posteriormente à tomada de depoimentos do colaborador, tudo é submetido ao Poder Judiciário. Antes de homologar o depoimento, o juiz competente deverá ouvir o colaborador, na presença de seu defensor (sem a presença do Ministério Público), exatamente como forma de aquilatar se o acordo decorreu da sua voluntariedade e espontaneidade. Esta decisão homologatória, que confere a eficácia ao acordo, limita-se a analisar a regularidade, a legalidade e a voluntariedade. Assim, nesse procedimento não se deve realizar “qualquer juízo de valor a respeito das declarações do colaborador” (Habeas Corpus n. 127.483-PR, STF, Plenário, DJ de 4.2.2016).

Tem-se difundido, ainda, que a colaboração não poderia ser considerada uma prova em si, mas apenas um meio para a obtenção de provas. Todo cuidado é pouco e não se pode generalizar. Concordamos com a afirmativa de que, com base exclusivamente no depoimento de um colaborador (prova oral), não poderá haver um decreto condenatório. Entretanto se, juntamente com o depoimento, houver a entrega de documentos pelo colaborador (situação bastante comum), estas provas serão absolutamente aptas para, dependendo da valoração que se lhe conferir (art. 155, CPP), fundamentar o decreto condenatório. Além disto, as provas orais produzidas, em cotejo com outros elementos de provas existentes, também poderão ser consideradas válidas para convencimento do juízo.

Outro ponto a destacar é com relação aos benefícios acordados, que não são automáticos. Os parâmetros foram fixados expressamente no art. 4º e parágrafo único da Lei n. 12.850/2013. Assim, a eficácia do acordo deverá ser analisada diante do caso concreto pelo Poder Judiciário. Se os objetivos traçados foram atingidos plenamente, os benefícios deverão ser concedidos. Em caso contrário, deverá haver o sopesamento para o tratamento proporcional dos benefícios em face do teor da colaboração.

É importante deixar bem claro que a condenação ou a absolvição de terceiros jamais poderão constar como cláusulas condicionantes de eficácia de um acordo. Competirá ao Poder Judiciário a análise das provas que forem produzidas. A eficácia deverá ser, unicamente, em relação ao que se comprometeu a fazer e produzir o colaborador. Exatamente por isso, e de novo com acerto, é que a Suprema Corte brasileira afirmou que “os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança tornam indeclinável o dever estatal de honrar o compromisso assumido no acordo de colaboração, concedendo a sanção premial estipulada, legítima contraprestação ao adimplemento da obrigação por parte do colaborador” (HC n. 127.483-PR, Plenário, DJ de 4.2.2016).

Em face do exposto, fica claro que estamos diante de um novo instrumento de produção de provas. Felizmente, não há como retroceder. Temos apenas que saber gerenciar bem este fundamental meio legal e constitucional. Dentro do devido processo legal, ele irá auxiliar, e muito, a busca pela responsabilização daqueles que até hoje conta(va)m com a impunidade, sobretudo por deficiências probatórias.

Por fim, não esqueçamos: o sistema jurídico deve primar pelo equilíbrio da proteção dos direitos fundamentais de primeira geração com os interesses coletivos em existir a devida responsabilização daqueles que se apropriam de recursos fundamentais que auxiliam no desenvolvimento de um país mais justo. Exatamente por isso que, dentro de um sistema integralmente garantista (garantismo positivo e garantismo negativo), calham as palavras de Luigi Ferrajoli sobre o tema criminalidade organizada: “o Estado deve preocupar-se com as infrações cometidas pelos caballeros — corrupção, balanços falsos, valores em origem e ocultos, fraudes ou lavagem de dinheiro”[1].

[1] FISCHER, Douglas; CALABRICH, Bruno; PELELLA, Eduardo. Garantismo penal integral — questões penais e processuais penais, criminalidade moderna e aplicação do método garantista no Brasil. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 17.

* Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Sua divulgação obedece ao propósito de contribuir para a difusão do pensamento jurídico produzido, estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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