Da paz à guerra: a relação entre a Jovem Fla e a Máfia Azul

Esporte Investigativo
8 min readJun 15, 2020

--

A história de como duas torcidas inseparáveis se tornaram inimigas mortais

Escrito por João Pedro Gruppi

Torcedores de duas torcidas organizadas do Cruzeiro protagonizaram uma briga generalizada, no fim da tarde do dia 21 de setembro do ano passado, no Mineirão, na Região da Pampulha em Belo Horizonte. O palco do confronto foi o portão que dá acesso ao setor amarelo da arquibancada. Três pessoas foram conduzidas para a delegacia do estádio pela Polícia Militar, que teve que intervir usando gás de pimenta e bala de borracha. Duas pessoas ficaram feridas e tiveram que ser levadas ao Hospital João XXIII.

Em campo, o time celeste enfrentava o Flamengo pela 20° rodada da Série A do Campeonato Brasileiro. A partida terminou em 2 a 1 para os visitantes. Porém, o que chamou a atenção e tomou conta dos jornais da noite daquele sábado foi o confronto entre a Máfia Azul e a Pavilhão Independente após o apito final da partida.

O curioso desse fato é que torcedores da Jovem Fla, organizada do Flamengo, estavam infiltrados no meio da torcida Pavilhão e também participaram da briga. Essa não foi a primeira vez que participantes das duas aliadas se juntam para criar confusão.

Dias antes da final da Copa do Brasil, em 2017 — o título foi disputado pelas mesmas equipes, mas daquela vez os mineiros levaram a melhor — membros das mesmas organizadas foram presos num sítio alugado em Santa Luzia, na Grande BH. Com o grupo de 36 pessoas foi encontrado maconha, cocaína e uma arma de fogo. Ainda foi informado que eles planejavam atacar uma outra organizada flamenguista.

Dois dos presos na operação da Plícia Militar em Santa Luzia/Divulgação PMMG

A Jovem do Flamengo e a Máfia Azul, no entanto, já foram fortes aliadas durante o final do século passado e o início deste. Porém, desavenças com que as “irmãs inseparáveis” se tornassem fortes inimigas. Desde a separação, a maior organizada celeste não aceita que outras torcidas cruzeirenses tenham amizade com a ex-companheira rubro-negra.

Atualmente, tanto a Jovem quanto a Máfia estão banidas dos estádios. Os cariocas, desde 2017, por três anos. Já os mineiros, por um ano desde o começo de 2020, devido as suas atitudes polêmicas no ano do rebaixamento do Cruzeiro.

Origem

O Grêmio Recreativo Cultural Torcida Jovem do Flamengo (TJF), popularmente conhecida como Jovem Fla, surgiu em dezembro de 1967, na cidade do Rio de Janeiro, quando membros da Charanga do Flamengo — primeira torcida do Brasil — resolveram se separar e criar a Poder Jovem, inspirada no movimento negro norte-americano “Black Power”. Seu nome atual veio somente dois anos após sua fundação.

Enquanto os mais tradicionais da charanga não permitiam vaias ou insultos aos jogadores rubro-negros, os jovens dissidentes estavam irritados com essa situação. Eles queriam ter a liberdade de poder protestar e criticar a atuação do time quando ela fosse ruim. Nesse contexto, então, é criada a Jovem Fla.

Nove anos mais tarde, no interior do país, longe do litoral, surgia o Comando Máfia Azul (CMA). Criada pelos irmãos Henri e Éder Toscanini, a “Marfia” — nome escrito na primeira bandeira da torcida, o erro foi de Henri, o mais velho — foi criada com o intuito de representar aos moradores do Floresta — Bairro de classe média na Região Centro-Sul de Belo Horizonte — nas arquibancadas do Mineirão. Eles se instalavam próximo ao limite que separava a torcida celeste da atleticana.

No ano seguinte, em 1977, foi oficializada a fundação da Máfia Azul devido à forte adesão de novos torcedores. Mas foi somente na década de 1990 que a torcida atingiu seu auge. Atrelada à boa fase que o Cruzeiro vivia dentro de campo, a torcida cresceu exponencialmente, atingindo o posto de maior organizada cruzeirense. Atualmente conta com mais de 100 filiais espalhadas por Minas Gerais e pelo Brasil.

A amizade

A Máfia Azul e a Torcida Jovem do Flamengo, formaram uma grande união, principalmente no final do século XX, na década de 1990. A razão deste fato foi a enorme rivalidade que surgiu em campo entre as equipes do Atlético-MG e Flamengo, nos anos 1980. O jogo que mais marcante foi a polêmica partida da Libertadores de 1981, cujo árbitro José Roberto Wright expulsou cinco jogadores atleticanos e os mineiros perderam de w.o por falta de elenco.

“Na verdade, a tendência seria nos aproximarmos da torcida do Atlético Mineiro, que era mais inflamada. A Máfia Azul era muito nova, o pessoal era mais da festa, da arquibancada. Não era linha de frente — referindo-se às brigas. O certo seria o Galo estar no Punho Cruzado — nome dado a uma união de torcidas, falaremos sobre ela adiante. Mas o destino colocou o Cruzeiro na nossa frente, por causa da rivalidade entre Atlético e Flamengo em campo. Ambos viveram uma grande fase nos anos 80. Depois a Máfia cresceu e se tornou o que é hoje. Ninguém tira onda com eles mais” — relembra o Capitão Léo Ribeiro, ex-presidente da TJF.

Concomitante a isso, as torcidas organizadas (TOs) em todo o país ganhavam mais expressão e estavam mais influentes politicamente dentro de seus clubes. No entanto, para conquistar outros territórios e acompanhar seus times do coração quando jogassem como visitantes, foi necessário às organizadas buscarem alianças em outros estados para receberem hospedagem, churrasco de boas-vindas e, claro, apoio durante as brigas contra os rivais.

Fael Shark, ex-integrante da CMA, conta que depois da criação do campeonato brasileiro de futebol nos moldes de hoje, em 1971, houve uma expansão do esporte por todo o território. Diante disso, veio a ideia de formar alianças para facilitar as caravanas. “Hoje em dia, parece normal você sair da sua sede. Na época, não tinha como se comunicar igual agora com as redes sociais”.

Nesse contexto, surge a União do Punho Cruzado (UPC) — identificada pelo simbólico gesto com os punhos fechados e braços cruzados na altura do pulso, formando um “x” — em que a TJF e a Torcida Tricolor Independente (TTI), do São Paulo, uniram forças no ano de 1986. No entanto, só em 1992/93 que a Máfia Azul passa a ser aliada da UPC. Mais tarde a Torcida Organizada Camisa 12 do Internacional de Porto Alegre e a Torcida Jovem do Sport (TJS) entraram na aliança. Além das agregadas, como eram chamadas as TOs de menor influência dentro do grupo.

Antigo Trio de Ferro (CMA, TJF e TTI) exibindo suas bandeiras / Arquivo pessoal

“Se fosse fazer o conselho de segurança da UPC, o quarteto principal era a Camisa 12, Independente, Jovem Fla e Máfia Capitão” — comenta o Capitão Léo com um linguajar quase bélico. Ainda relata que Minas era um estado muito importante estrategicamente. “Íamos bastante a Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, por conta da proximidade” — finaliza.

Os relatos da época são quase unânimes em afirmar que não houve dúvidas para integrantes da Máfia e da Jovem Fla. Aliaram-se prontamente e os laços só se fortaleceram com os anos. A prova disso foi o “parabéns pra você” cantado por torcedores do Cruzeiro para homenagear os cem anos de vida do rubro-negro carioca, quando as equipes se enfrentaram no Mineirão, em 1995. “Nós recebemos as torcidas do Flamengo aqui em BH e fizemos uma festa bacana. Durante o jogo eu puxei o parabéns na torcida do Cruzeiro em função do centenário deles. Nos aproximamos ainda mais” — conta Éder Toscanini, fundador da CMA, em uma entrevista ao portal SuperEsportes. Tentamos contato com ele, mas sem sucesso.

A separação

Antes de se aproximar da TJF, a organizada cruzeirense fez amizade com outra torcida flamenguista, Raça Rubro Negra (RRN) — esta foi fundada também em 1977 e, hoje, é a maior do clube carioca. O atual diretor da Máfia Azul, Daniel Sales, mais conhecido como Quick, diz: “a primeira torcida deles [Flamengo] que nos tornamos amigos foi a Raça e depois a Jovem, que foi quando criamos a UPC junto com a Independente do São Paulo”.

Porém, essa versão é contestada pelo Capitão Léo. “Lá atrás nós empurramos a Máfia para a RRN, porque ainda eram muito jovens, como eu disse antes. Depois eles se aliaram com a gente”.

Independentemente das versões, fato é que a TO cruzeirense estava em uma posição confortável com as amigas duas flamenguistas. No entanto, na primeira década deste século, a TJF e a RRN começaram a ter problemas. Primeiro, por território nas arquibancadas do Maracanã, onde o Rubro-Negro manda seus jogos. A Raça estava crescendo demais e tomando cada vez mais espaço, isso incomodava sua “irmã mais velha”.

Para além disso, ela se aliou à Gaviões da Fiel — organizada do Corinthians de São Paulo. Foi a gota d’água. Apesar de já ter existido uma amizade entre Gaviões e TJF, tempos depois viraram inimigas. Diante dessa situação, a Jovem Fla não poderia deixar que uma torcida do mesmo clube tivesse aproximação com o rival. Porém, a Raça resolveu não dar ouvido para isso. Daí a confusão estava formada.

Portanto, a Máfia Azul, que não tinha nada a ver com essa história, se viu encurralada, uma vez que a Jovem exigia que cortassem laços com a Raça. Mas os cruzeirenses em si não tinham nenhum problema diretamente com isso. Eles não entendiam essa cobrança por parte da TJF. A atitude dos flamenguistas incomodou os mafiosos e a Jovem se viu traída.

Perguntado sobre o caso, o antigo presidente da Jovem Fla disse não entender muito. “Não sei bem o que levou a Máfia a sair da UPC. Eu fiquei meio perdido depois que saí da torcida. Eu torço para que eles voltem um dia”. Por outro lado, Quick tem outra versão dos fatos. O atual diretor da CMA diz que “a Máfia Azul nunca deixou de fazer parte do Punho Cruzado. A gente só deixou de ser aliada da Jovem. Os tempos mudaram muito. Às vezes, o pessoal fala que saímos do Punha cruzado, mas é só o trio de ferro que não existe mais [fazendo referência a CMA, TJF e TTI]”.

Durante esse período, ganha forças a Torcida Pavilhão Independente (TPI). Ela foi fundada em 1997, mas cresceu quando antigos membros da Máfia, revoltados com a diretoria da época, saíram e se juntaram ao grupo. Os dissidentes realizavam duras críticas a sua antiga torcida. Como diz o velho ditado: o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Então, a TPI se aproximou da Jovem Fla.

Ao fundo a bandeira da TJF entre duas da Pavilhão na sede da TPI / Arquivo pessoal

Em um ato similar ao feito pela Jovem, a Máfia Azul quis impedir que a Pavilhão e qualquer outra torcida do Cruzeiro se aliasse a, agora, inimiga flamenguista. Como essa decisão não foi respeitada, a rivalidade estava acirrada e as tensões muito altas.

No ano passado, por meio de comunicado, membros da velha guarda da Máfia Azul passaram a considerar Pavilhão Independente e outras torcidas inimigas, após toda essa briga.

“Essas alianças entre TOs são frágeis, tá ligado? É muito comum você ver uma torcida amiga de outra e essa tem aliança com uma rival daquela. Então, chega uma hora que ela precisa escolher um lado. Ou então tem três torcidas amigas duas brigas e a terceira fica dividida. Isso depende muito da diretoria, dos membros, porque isso muda de tempos em tempos”. Concluiu Fael Shark.

A reportagem procurou tanto a Pavilhão Independente quanto a Torcida Jovem do Flamengo, mas ambas não quiseram se pronunciar.

--

--

Esporte Investigativo
0 Followers

Blog criado para o trabalho de Jornalismo Investigativo da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. | Editoria: esporte |