Caso 0— #SomosTodasAmanda: a acusação de “transfobia” como tática de silenciamento de mulheres

Por uma esquerda sem misoginia
22 min readMay 20, 2019

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Fatos

A iminente criminalização da “transfobia” pelo Supremo Tribunal Federal (o julgamento está previsto para o dia 23 de maio) me fez recordar o recente caso #SomosTodasAmanda. Uma mulher comum, mãe de duas crianças e conhecida unicamente em sua área de trabalho (moda e maquiagem) faz algumas postagens no seu perfil na rede social Instagram no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Mais especificamente, um stories, tipo de publicação que costuma ser bem simples e que, caso você não fixe no perfil, fica apenas 24 horas no ar. Ela, que pelo tom das frases estava bem revoltada naquele momento, disparou:

Anos atrás, esse stories não existiria, e não só porque não existia Instagram: é que falar em “mulher” era falar no “sexo feminino”; as duas coisas eram tidas como intercambiáveis. Mesmo que a existência de um pequeno número de travestis e transexuais (e não “transgêneros” ou “trans”, que são denominações recentes) fossem de conhecimento público, eles eram vistos de forma radicalmente diferente do que são hoje e não havia nenhuma discussão sobre quem seria a protagonista dessa data. Mas estamos em 2019 e, minutos depois da publicação, a cantora transexual Candy Mel, da banda Uó, que tem 144 mil seguidores no Instagram, respondeu com outro stories no qual chamou Amanda de “transfóbica” e exigindo que ninguém mais a chamasse para trabalho algum. Logo após, foi a vez de o perfil LGBT “Exatamentchy”, que tem 483 mil leitores na mesma rede social.

Ao contrário de Candy Mel, o “Ezatamentchy” não se limitou a fazer um stories transitório. Ele fez um compartilhamento, ação que costuma ficar fixa no perfil de Instagram a não ser que seja voluntariamente apagada pelo administrador. Colocou, sem prévia autorização de Amanda, prints dos polêmicos stories, nos quais era possível ver o endereço do seu perfil nessa rede social e uma foto de seu rosto.

Os prints foram acompanhados do texto acima, na qual ela foi acusada de praticar “transfobia legítima” e “discurso de ódio” e responsabilizada pela “morte diária de mulheres trans e travestis”. Como “provas”, além dos stories, são trazidos os dizeres de sua tatuagem: “Mulheres têm vaginas, não vestidos”. O veículo também a acusou de ser “nazista e racista” para tanto, escolheu no seu perfil de Amanda uma foto em que ela, que é branca, está de cabelos raspados, quase careca e tatuada (há quem associe esse visual a “neonazistas”, embora ele também tenha sido adotado por punks, roqueiros/as e lésbicas não-feminilizadas). Junto à foto, referências ao nazismo e ao racismo, seguidas da cobrança para que o mercado da moda “se levante” contra Amanda.

(Eu lembrei deste meme aqui)

Todo mundo que eu não gosto é Hitler — um guia infantil para discussões políticas on line

Com esta postagem, o “Ezatamentchy” não só transformou os stories (provisórios) da maquiadora num compartilhamento (fixo) e em “notícia” (ou, sejamos sinceras e sinceros, pseudonotícia), mas, principalmente realizou a exposição pública, e para mais de trezentos mil seguidores e seguidoras, de sua imagem, nome, sobrenome, profissão e perfil de Instagram, no qual era possível ver informações sobre suas muitas vitórias profissionais e empresas parceiras. O perfi fez sua “investigação” (a seu modo, sem ouvir a “criminosa”), a “denúncia”, a “condenação” e a fixação da “pena”. E esta publicação foi endossada pelo perfil de Instagram do Mídia Ninja, que tem 924 mil seguidores só nessa rede social. Quase um milhão, sem contar quem não o segue mas segue hashtags ou o visita esporadicamente. Um veículo midiático que se coloca como uma mídia “de esquerda” e “pró-feminismo”.

Com as exposições realizadas por estes dois veículos, internautas soterraram Amanda de ameaças (de espancamento, morte, estupro), xingamentos e avisos de que ela jamais teria uma oportunidade no mundo na moda novamente. Também marcaram os perfis de empresas do ramo exigindo que não mais a contratassem para trabalho algum, sendo que é com esse trabalho que ela sustenta seus dois filhos. Ou sustentava, já que todos os compromissos profissionais que ela tinha agendados foram cancelados. Cancelados a pedido, inclusive, de perfis que se autoidentificam como “feministas”:

(Eu não sei quando retirar a fonte de renda com que mães sustentam seus filhos virou pauta do feminismo. Talvez o “Feminismopratodas” não seja exatamente para tooodas).

A partir da exposição pública feita por dois veículos de esquerda com grande número de seguidores e por inúmeros perfis menores que também se colocam como “ativistas”, os ataques à moça cresceram até não mais ser possível saber quem eram os “ativistas” e quem eram os concorrentes de Amanda aproveitando a oportunidade para queimar o filme de uma das poucas mulheres respeitadas na área (a classe dos maquiadores ainda é composta majoritariamente por homens). Coincidência ou não, se você pesquisar sobre linchamentos virtuais no Google encontrará matérias (da Superinteressante , d´O Beltrano e também do El Pais ) nas quais todas as vítimas eram e são do sexo feminino; aparentemente, nesses casos o público dissemina a “notícia” com mais avidez. Pelo menos em um desses casos o linchamento virtual se transformou em violência real, quando uma multidão matou Fabiane Maria de Jesus no Guarujá, Estado de São Paulo, insuflada por um boato de internet de que ela seria sequestradora de crianças.

Depois de muita pressão de um pequeno mas aguerrido grupo de feministas não submissas ao transativismo e que gerou a campanha #SomosTodasAmanda, o “Ezatamentchy” e o Mídia Ninja apagaram as postagens. O primeiro avisou que apagar o post não era um pedido de desculpas à moça exposta ou à minoria da qual ela faz parte; pelo contrário, frisou eram “as transfóbicxs” que deviam desculpas. Novamente, culpou mulheres pela morte de uma transexual — homens, nunca.

O Mídia Ninja também apagou o post original e em seu lugar publicou uma postagem com o nome de “retratação” na qual admitiu “cometer um equívoco” . Por outro lado, ainda que sutilmente, justificou sua atitude ao dizer que não compactua com “transfobia, ódio ao próximo, violência e discriminação” e citar mortes de travestis e transexuais.

Em nenhum momento os representantes dos veículos procuraram Amanda para oferecer auxílio concreto em relação às consequências graves geradas pelo linchamento virtual. Até hoje ela recebe ameaças, sem parar, tem medo de sair na rua, está tomando remédios controlados e não tem mais nenhuma perspectiva profissional.

REFLEXÕES

O linchamento virtual de Amanda Schöns pode ser analisado sob múltiplos aspectos: a dificuldade de todos nós em lidar com fenômenos historicamente novos como a internet e as redes sociais, a pressa da vida moderna que empurra todos, inclusive produtores de conteúdo, a “noticiar” irrefletida e rapidamente qualquer coisa, a forma como anônimos de repente viram, contra a sua própria vontade, subcelebridades odiadas… Nossa análise parte das consequências para as vítimas, sejam elas “culpadas” ou “inocentes”. Obviamente essas consequências não se comparam às dos linchamentos concretos (Amanda Schöns está viva e sem um fio de sua careca a menos), mas repercutem na vida real das pessoas; as demissões, as dificuldades financeiras que delas advêm, o isolamento político e o medo são reais. Ao contrário de políticos, artistas, atletas e outras figuras públicas acostumadas, ao menos até certo ponto, com o escrutínio diário e eventualmente agressivo de suas vidas, a maquiadora era uma mulher e mãe anônima, cujo nome provavelmente só era conhecido de um pequeno número de profissionais de moda. Nenhum anônimo, esteja certo ou errado, espera que ficará sem trabalho ou sofrerá ameaças de estupro por causa de uma publicação nas redes sociais.

Um segundo aspecto a ser considerado é que o linchamento virtual foi adotado nos últimos anos, inclusive por parte da esquerda, como método primeiro e até único de resolução de literalmente qualquer problema, de crimes verdadeiros até simples divergências políticas, de discussões sobre assuntos cruciais para a nação a picuinhas, com pouca ou nenhuma reflexão sobre as consequências pessoais, institucionais e jurídicas para todas e todos (denunciantes, acusados, partidos, organizações). Ele é praticado inclusive por gente que clama contra o “Estado policialesco”, o “punitivismo” e a “sanha persecutória da direita”…

Finalmente, o terceiro aspecto, e agora adentrando no cerne da campanha #SomosTodosAmanda: qualquer linchamento, virtual ou não, parte da ideia maniqueísta e narcisista de que existiria um “nós contra eles”, “nós, os bons, e eles, os maus”, sendo direito e até dever dos “bons” se arvorarem a investigadores, acusadores e julgadores dos “maus”. Há no linchador a certeza de que certas pessoas, por determinadas características (etnia, sexo, orientação sexual, aparência) ou por fazerem ou serem acusadas de fazerem algo “errado” (roubo, infidelidade, “transfobia”) “merecem uma lição”. O linchamento em si e a mera ameaça de que ele possa acontecer é um potente método de controle social que segue a lógica do fanatismo religioso: as vítimas são ensinadas a não pecar novamente e as que pensam como ela a não pecar, sob pena de também terem que pagar pelo que fizeram.

E por que Amanda precisaria “pagar pelo que fez”? O que teria feito de tão grave? Analisemos suas declarações.

O Dia Internacional da Mulher foi uma iniciativa das militantes socialistas, comunistas e proletárias da Europa e Estados Unidos, em especial Clara Zetkin e Alexandra Kollontai. Elas tinham consciência de que as pautas gerais dos trabalhadores deveriam ser implementadas em conjunto com as pautas específicas de mulheres e crianças, como o direito ao sufrágio universal, à igualdade salarial, ao fim do trabalho infantil, às creches públicas, a programas sociais para ambos os grupos e o combate à prostituição. A data resultou de um processo iniciado na segunda metade do século XIX e que foi coroado em 1910, na II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas na Dinamarca (1). Em uma carta datada de 1913, Kollontai assim explica os motivos de lutar pelo Oito de Março:

Os trabalhadores não perceberam imediatamente que, nesse mundo de exploração e de falta de direitos, a mulher é oprimida não só como vendedora da força de trabalho, mas também como mãe e mulher… Mas quando o partido socialista trabalhador entendeu isso, entrou com ousadia em sua dupla defesa: das mulheres como trabalhadoras contratadas e das mulheres como mães.

Em todos os países, os socialistas começaram a exigir a proteção do trabalho feminino, a garantia e a segurança da maternidade e da infância, direitos políticos para as mulheres, a defesa dos interesses delas.

Adiante, repete as pautas específicas:

segurança e garantia de direitos da parturiente, regulação legislativa do trabalho da mulher, luta contra a prostituição e a mortalidade infantil, exigência de direitos políticos para as mulheres, melhoria das condições de habitação, luta contra o aumento do custo de vida etc.

Dessa forma, como membros do Partido, as trabalhadoras lutam por questões comuns às classes, mas também traçam e apresentam reivindicações e exigências que, antes de tudo, lhes dizem respeito enquanto mulheres, donas de casa e mães.

Certamente que dentre as mulheres que do século XIX até hoje e em mais de 100 países lutaram e lutam pela criação da data existiram e existem as mais variadas aparências possíveis; parafraseando Amanda, usavam ou não “saia, maquiagem, salto alto”. Afinal, acreditar que algum acessório ou “sentimento, sensação, feeling, cérebro” seja exclusivo de um sexo é precisamente a definição de sexismo, lembra?

Ao longo desses mais de 100 anos do Oito de Março, mulheres de esquerda no mundo todo, inclusive no Brasil, levaram adiante o legado das socialistas, aprofundando-o na teoria e na prática, esquadrinhando a razão de sua opressão — as capacidades reprodutivas- e ampliando-o para incorporar a luta antirracista, o direito à livre orientação sexual e o feminicídio, entre outras. O #8M costuma contar com o apoio dos partidos progressistas, conclamando a população e o Poder Público para, em conjunto com as pautas classistas de ambos os sexos, garantir atenção para as pautas específicas para o sexo feminino. Ligas de lésbicas, bem como organizações abertamente críticas à prostituição como a Marcha Mundial de Mulheres fizeram e fazem parte delas, ainda que haja divergências no Brasil e no mundo acerca de legalização ou não de bordéis proposta pelo Projeto de Lei Gabriela Leite.

Frase da Claudia Santiago Gianotti nesta entrevista curtinha mas didática

(Eu espero que todas e todos nós ainda saibamos qual o sexo que engravida, que precisa fazer pré-natal, a quem é empurrado o parto cesárea, que é mais atingido pelo câncer de mama e o principal alvo da violência sexual).

Dessa forma, e independente da visão que cada uma e cada um tenha acerca do transativismo e das políticas transativistas, o protagonismo das “mulheres com b…ta” no Dia Internacional da Mulher é um fato histórico. Amanda pode não ter sido lá muito delicada em suas palavras, como meninas e mulheres supostamente deveriam ser. Mas disse apenas disse a verdade. É compreensível que leigos desconheçam a origem do Dia da Mulher e que o capitalismo use a data para vender produtos, mas os e as comunicadores e comunicadoras, sobretudo os e as que alegam ser de esquerda, têm a obrigação de conhecer, divulgar e honrar a História da esquerda e a História das Mulheres. Apagar a História das Mulheres é misoginia.

A ideia de que existiria algo como “cisgeneridade” é recente; o termo foi inventado no final dos anos 90. O raciocínio foi que, se algumas pessoas estavam se autoidentificando como “transgênero” (e não mais como transexuais, travestis e cross-dressers), então as demais deveriam receber um um novo rótulo em contraposição: o de “cisgêneras”. Alguns definem pessoas “cisgêneras” são as que estariam “confortáveis com seus corpos”. Meninas e mulheres estariam “confortáveis com seus corpos”?

Entrevista aqui

Gente radicalmente fora dos estereótipos de “gênero” como Mart´nália e Pablo Vittar teriam mesmo “um gênero alinhado ao sexo”?

Ela te parece “alinhada ao gênero”?

Meninas e mulheres submetidas desde o nascimento à misoginia (que significa literalmente ódio a mulheres) e aos padrões racistas e pedófilos de vaginas “ideais” rosadas, depiladas e apertadas “não têm problemas com seus genitais”?

Eu não preciso me estender sobre o ódio de meninas e mulheres aos seus corpos (“magros demais”, “gordos demais”), cabelos (“com muito volume”, “sem volume”, “com frizz”, brancos), vaginas , seios (“caídos”, “grandes demais”, “pequenos demais”, “separados demais”, “tamanhos diferentes demais”). Há ampla literatura sobre isso, inclusive o clássico “O Mito da Beleza”, há estatísticas sobre quem são as maiores vítimas de transtornos alimentares e problemas de auto-estima e as maiores consumidoras de cirurgias plásticas, produtos de “beleza” e remédios para emagrecer. Esse ódio, que se chama, repita-se, misoginia, se intensifica quando entrelaçado ao racismo. Se todas as meninas e mulheres já têm motivos de sobra para se sentirem em desconforto com seus corpos, negras aprendem também, desde cedo, que seus cabelos crespos são “ruins”, seus lábios “muito grossos”, seus narizes “largos demais”. Que têm, além de um “defeito de sexo”, um “defeito de cor”, como diz Ana Maria Gonçalves. A ideia de “cisgeneridade” não faz sentido para as que tenham a plena consciência de como a misoginia e os estereótipos de “gênero” , sobretudo quando entrelaçados ao racismo, moldam a existência delas. E é perigosa, pois sugere que só existem dois caminhos: ou estamos “de acordo com o gênero”, ou seja, concordando que os estereótipos inventados sobre nós seriam reais, ou assumir uma “identidade transgênera”. Exclui, precisamente, a terceira via proposta pelo feminismo, que é lutar para que esses estereótipos sejam desmascarados como falsos, limitadores da equidade entre os sexos e radicalmente combatidos.

Há quem, à vista de todos esses argumentos, que você há de convir que são bastante fortes (na verdade eu os considero irrefutáveis, haha) ainda tente salvar o rótulo dizendo que ele significa “quem não é transgênero”. Isso indica o quão raso está o nível do debate atual: admite-se como definição o que é obviamente uma não-definição, não se sabe mais reconhecer o que é um argumento circular, uma fuga do assunto, algo que adultos fazem quando crianças perguntam por que o céu é azul: “porque não é verde”. Além do que, por que os 99% da população que não se identificam como transgêneros deveriam ser forçados a aceitar um rótulo que não escolheram, que não os beneficia em nada e que não faz sentido nenhum? Finalmente, registro que a crítica ao termo vem de muitos lugares. É comum que transativistas a reputem unicamente a feministas radicais, a fim de que ela pareça restrita a um pequeno grupo de bruxas malvadas. Mas um dos mais conhecidos textos nesse sentido (e que à época também foi xingado de “transfóbico”) é de uma simpatizante da teoria queer e crítica ao feminismo radical . Recentemente, li também o texto de um gay e ativista LGBT explicando por que não aceita o rótulo.

Bem. Se estamos falando de uma ideia (eu pessoalmente resisto a denominá-la como um “conceito” porque é vaga demais para tanto) e se concordamos que ideias podem ser adotadas ou rejeitadas e publicamente criticadas por quaisquer indivíduos como parte do direito à liberdade de expressão, de crítica e acadêmica… e se uma das conquistas históricas das minorias foi a de que podem e devem criticar e rejeitar livremente teorias e conceitos (ou pseudoconceitos) que não fazem sentido para elas e ou que prejudiquem suas análises e seu próprio movimento… então Amanda tem, sim, o direito, diria até que o dever, enquanto feminista, de rejeitar o rótulo de “cis”. De novo, eu deixo registrado que foi muito feio ela falar palavrão e não agir como uma menina delicada... Mas é fato que quem impõe a mulheres o rótulo de “cisgêneras” ignora ou finge ignorar seu significado e seu impacto para a teoria feminista e retira delas o direito a se analisarem e nomearem. Impedir as análises de mulheres sobre si próprias é misoginia.

O print não deixa claro se “homem” aqui se refere à classe em que são colocados todos machos biológicos (classe essa que se beneficia, direta ou indiretamente, das capacidades reprodutivas do sexo feminino) ou se apenas àqueles que pleiteiam o reconhecimento de suas “identidades femininas” por motivos escusos. Na primeira hipótese, sorry not sorry, que outro motivo haveria além do sexo para que mulheres fossem oprimidas, já que todas as suas demais características elas dividem com homens como raça, etnia, classe social e orientação sexual? Para uma análise estrutural, que contemple a metade da Humanidade, que diferença deveria fazer se um número ínfimo de indivíduos de ambos os sexos pleiteia o reconhecimento como transgênero? Por que deveríamos fingir que machos biológicos se livram de sofrer com as violências especificamente dirigidas às fêmeas ao redor do mundo, como por exemplo não foram abortados quando seus pais descobriram seu sexo, não foram oferecidos em casamento ainda meninos para adultos muito mais velhos, nem apedrejados até a morte porque alguém os acusou de infidelidade, nem abandonaram os estudos por engravidar, nem morreram em abortos clandestinos…? (O que não significa que não tenham sofrido violência por inúmeros outros motivos, é claro). A forma com que lidamos com a evidente colisão de interesses, discursos, narrativas e direitos entre travestis, transexuais e mulheres não pode ser jogar toda a teoria feminista na lata de lixo.

Na segunda hipótese, faz um bom tempo que o movimento trans hegemônico defende que homens não precisam mais ter um diagnóstico médico de transexualismo/disforia de gênero, fazer modificações físicas ou mesmo ter desconforto com seu corpo para exigir o reconhecimento legal e político como mulheres; inclusive é por isso que muitos transexuais mais velhos criticam a criação da categoria “transgênero” enquanto um “termo guarda-chuva” que os misturou com cross-dressers, autoginefílicos, fetichistas e rapazes que se dizem “não-binários” porque gostam de usar delineador. Assim, dizer que hoje em dia homens podem ser mulheres “quando convém” é nada mais nada menos que a verdade, e esse “quando convém” inclui “com a finalidade de estuprar mulheres”:

Mesmo condenado por crimes que incluíam pedofilia, Stephen Wood se identificou como mulher trans, mudou seu nome para Karen White, exigiu ser posto em celas femininas e abusou de quatro presidiárias

Dessa breve análise sobre os prints, conclui-se que Amanda, se pudéssemos resumir em uma só frase, foi punida por se recusar a ser apagada enquanto classe.

“Eu sinto que estou desaparecendo” (Clementine, em “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”)

Do jeito conciso e informal típico do Instagram, ela pensou o significado histórico e atual do Dia da Mulher, as pautas específicas do movimento social do qual faz parte e o peso da diferença sexual nas análises feministas. Nada diferente do que as membras de sua classe fazem há muitos anos, e em alguns casos, como o presente, pagando um preço alto por isso. Nada do que ela escreveu era mentira, em nenhum momento ela incitou a violência contra quem quer que seja e, obviamente, nenhuma menção fez a nazismo, fascismo ou racismo. Amanda foi exposta, linchada e agredida por simplesmente… refletir e publicizar suas reflexões.

Seria um caso isolado?

Maria Mac

A senhora da foto de rosto machucado e cortes na mão é a feminista britânica Maria MacLachlan, à época com 60 anos. Ela se dirigiu ao Hyde Park de Londres, em 2017, para participar de um debate numa livraria sobre o GRA — Gender Recognition Act. O GRA é uma legislação governamental que visa a eliminar todas as proteções de espaços exclusivos de meninas e mulheres no Reino Unido; qualquer um que se autoidentifique como mulher, mesmo sem diagnóstico médico ou modificações corporais, poderá estar em espaços femininos, inclusive naqueles nos quais meninas e mulheres estão mais vulneráveis: banheiros, vestiários, alas hospitalares, provadores de lojas, celas prisionais. Mais ou menos o que o Supremo Tribunal Federal está implementando no Brasil, mas, ao contrário do Reino Unido, aqui a população não teve o direito de participar do processo.

Parece normal e até desejável que alguém queira discutir políticas governamentais que o afetarão diretamente, certo? Mas transativistas britânicos da Action from Trans Health (“Ação pela Saúde Trans”) classificaram o debate e as debatedoras como “transfóbicos”, inclusive a debatedora transexual, Miranda Yardley (que, em vez de transformar mulheres em inimigas, preferiu buscar, ao lado delas, soluções que protejam a todas da violência masculina). O que aconteceu?

Tara Wolf

A acusação de “transfobia” fez com que Maria fosse fisicamente agredida por transativistas. Na foto acima está “Tara Wolf”, do sexo masculino, que também usa os nomes “Tara Flik Wood” e “Flik Reade” e que faz parte da ONG “Action for Trans Health”. Tara se dirigiu ao local com mais três transativistas, bateu na idosa e tentou quebrar sua filmadora; você pode ver a agressão neste vídeo. A justiça declarou sua culpa, mas nem a “Action for Trans Health”, nem nenhuma organização LGBT local ou internacional condenou o crime.

Em fevereiro de 2017, uma pequena livraria centrada em obras escritas por mulheres foi inaugurada em Vancouver, no Canadá, oferecendo livros sobre os mais variados assuntos como romance, budismo e teoria feminista. Mas um grupo de transativistas acusou a livraria de “transfobia” alegando que ali estariam livros com visões com as quais eles não concordavam sobre mulheres e prostituição (que eles chamam de “trabalho sexual”). Cerca de 30 pessoas invadiram o local, xingaram, ameaçaram e impediram fisicamente mulheres de adentrar e de folhear as obras, rasgaram cartazes, roubaram itens e danificaram livros. (Se você entende inglês, vale a pena ler o texto que eu linkei acima e ver o vídeo que ele traz). De novo, nenhuma organização LGBT do Canadá ou do mundo foi a público dizer que essa ação violenta não representava a comunidade LGBT.

Em 2016, Indianare Siqueira (PSOL-RJ), transativista e ativista pró-prostituição, acusando publicamente os integrantes da Casa Nuvem, na Lapa, de “transfobia”, invadiu o local e ali se estabeleceu com seu grupo, rebatizando o espaço de “Casa Nem”. Apenas em abril de 2019, cerca de três anos após a invasão e uma campanha pública dos antigos ocupantes (#liberanuvem) o partido decidiria pela expulsão . De acordo com o parecer que concluiu por essa penalidade, não foi comprovada “transfobia” por parte dos antigos ocupantes da Casa Nuvem; pelo contrário, foram comprovadas atitudes bastante questionáveis por parte de Indianare e seu grupo, como o de causar prejuízo financeiro na casa dos cem mil reais a uma das antigas membras e ameaçar de agressão física homens e mulheres. O parecer também informa haver investigação em curso acerca de exploração sexual.

Em março de 2018, ao longo da construção do #8M no Rio de Janeiro, Joana Santos, transativista do PSOL-RJ do sexo masculino que se autoidentifica como “mulher trans lésbica”, acusou J., uma jovem filiada ao PCdoB e membra da União da Juventude Socialista, de “transfobia”. O motivo: J., que é lésbica, se recusou a concordar com Joana quando esta afirmou que “não existem diferenças entre mulheres trans lésbicas e mulheres cis lésbicas”. Joana ameaçou lhe “quebrar os dentes” e lhe “partir ao meio”. A despeito dos apelos da vítima às companheiras e companheiros da esquerda carioca, inclusive os de seu próprio partido, para que Joana fosse afastada da construção do ato, um pequeno grupo de travestis e mulheres filiados ao PSOL-RJ exigiu e conseguiu sua permanência até o fim (alguns deles, até hoje, assessoram gabinetes de parlamentares do partido no Rio). De se registrar que uma das táticas de cotton ceiling (coação sexual de lésbicas para que se relacionem com pessoas do sexo masculino que se autoidentifiquem como mulheres) é justamente negar a diferença sexual.

Em fevereiro de 2019, também na construção do #8M, mas na Argentina, um coletivo feminista foi acusado de “transfóbico”. Numa das reuniões, uma das integrantes do coletivo ao segurar o microfone sofreu uma tentativa de estrangulamento por parte um transativista. O coletivo, já há algum tempo, denunciava o tráfico e a exploração sexual de crianças, adolescentes e adultas no país, o qual, como no Brasil, conta com o envolvimento de grupos “putafeministas e de trabalhadores do sexo” e que inclui homens e mulheres (inclusive professores universitários) envolvidos diretamente na exploração e no tráfico sexual. O vídeo pode ser visto aqui .

As mulheres acima têm sorte, porque sobreviveram.

Dana Rivers, Patricia, Charlotte e o filho de Patricia, Toto

No dia 11 de novembro de 2016, Dana Rivers, de 61 anos, do sexo masculino, ativista trans e ex-militar, matou duas mulheres e o filho de 19 anos de uma delas. Patricia Wright tinha 57 anos, seu filho Toto 19 e sua esposa Charlotte, 56. Dana fez parte do grupo de transativistas que conseguiu encerrar o lendário Michfest, o Michigan Womyn’s Music Festival. O Michfest, como os demais espaços exclusivos para meninas e mulheres, foi julgado “transfóbico”.

É interessante notar que em seus stories Amanda se posicionou como crítica à prostituição e à exploração sexual, enquanto o Mídia Ninja, um dos responsáveis por seu linchamento, é um veículo abertamente pró-prostituição e inclusive conta com ativistas pró-prostituição como colunistas.

A posição em relação à prostituição também desempenhou um papel crucial nas outras agressões que citamos ocorridas no Canadá, Inglaterra, Argentina e Rio de Janeiro. Os transativistas do Canadá que perseguiram as livreiras explicitamente exigiram o banimento de obras críticas ao comércio sexual, a britânica Action for Trans Heath e a argentina AMMAR defendem a prostituição como um “trabalho” e a vítima de Joana Santos era abertamente crítica ao Projeto de Lei Gabriela Leite, defendido por Indianare e outros companheiros e companheiras da esquerda. Sabemos que não existe almoço grátis: se é verdade que o bilionário Georges Soros financia alguns bons projetos (inclusive no Brasil) através de sua Open Society Foundation, também o é que a Open pratica abertamente lobby pró-prostituição. É inseparável, ao menos atualmente, a tríade ativismo trans, ativismo pró-prostituição e esquerda.

Deixo à sua reflexão o motivo pelo qual transativistas, embora repitam insistentemente que “90% das trans estão na prostituição”, advogam pela legalização da mesma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eu poderia citar muitas outras situações que eu e outras mulheres, no Brasil e no mundo, sofremos por nos recusarmos a abrir mão do direito de nos autodefinir. E de, a partir dessa autodefinição, discutir e combater com autonomia as violências específica ou majoritariamente dirigidas a mim e minhas irmãs. Ameaças de morte e espancamento, avisos de que iriam atrás de nossos empregadores para conseguir nossa demissão, alertas de que jogariam bombas nas nossas reuniões, pressão para que fôssemos desconvidadas de eventos, perseguição acadêmica, coação em espaços políticos. Por ora, me limito a colocar os pontos que se seguem, adiantando que voltarei a escrever mais sobre o tema neste Medium:

  1. As acusações públicas, violentas e injustificadas de “transfobia” (a qual não tem definição exata do que seria até hoje), a responsabilização de mulheres por violências cometidas por homens e a chantagem emocional são táticas transativistas de silenciamento de mulheres;
  2. Esse silenciamento nos está impedindo de exercer direitos há anos conquistados como o à livre manifestação, expressão, reunião e orientação sexual e prejudicando nossas análises e militância, bem como nossas vidas pessoais, profissionais e acadêmicas;
  3. Por ser utilizado majoritariamente (na verdade, quase que exclusivamente) por transativistas do sexo masculino contra mulheres, configura violência sexista, misógina, machista ou “de gênero” (“gênero” aqui no sentido feminista, enquanto construção social hierárquica sobre os sexos);
  4. Essa atitude, como qualquer ato misógino, é incompatível com a militância de esquerda e o fato de ser orquestrada, repercutida ou tolerada entre nós deveria ser motivo de preocupação, inclusive, justamente, pelo fato de ser colocada como uma forma de “militância”;

5. Se é verdade que transativistas violentos não representam toda a esquerda ou todo o ativismo LGBT, também é verdade que nem aquela e nem este têm se posicionado publicamente como deveriam, podendo-se falar portanto em conivência da esquerda e do ativismo LGBT com a violência transativista sobre mulheres;

6. A violência transativista está prejudicando as reflexões e políticas de esquerda sobre a prostituição, fenômeno que atinge numericamente muito mais meninas e mulheres que travestis ao redor do mundo, a ponto de falarmos numa industria de la vagina.

7. Políticos conservadores estão explorando muito bem a nossa negligência em conciliar os interesses e pautas das mulheres com os direitos trans, como é o caso dos projetos de lei que protegem os esportes femininos da entrada de pessoas do sexo masculino, os quais contam com a aprovação da população;

8. A iminência da criminalização da “transfobia” (e não apenas da homofobia) pelo Supremo Tribunal Federal coloca em risco não só qualquer cidadão que não compreenda ou não aceite a ideia de identidade de gênero (e portanto é antipopular e punitivista), mas também qualquer análise verdadeira da opressão de meninas e mulheres.

Travestis e transexuais, bem como meninas e mulheres, constituem grupos que merecem análises e políticas públicas específicas. Viver em segurança e de acordo com a sua própria visão de mundo é direito de cada um, mas isso não significa que transativistas tenham o direito de apagar a realidade material e de promover o silenciamento e a perseguição de mulheres.

Amanda se recusou a ser apagada. Nós também.

(1) Num primeiro momento, a celebração aconteceu no dia 19 de março para homenagear a Revolução de 1848 em Berlim, cuja data foi 18 de março; depois, o dia 8 foi escolhido porque a greve das trabalhadoras russas foi o estopim da Revolução Russa (o 23 de fevereiro do calendário juliano, que a Rússia adotava à época, é o 8 de março do calendário gregoriano). Ficou bastante conhecida a versão de que esse dia marca a morte de mais de cem costureiras norte-americanas queimadas pelos patrões numa fábrica nova-iorquina, mas, embora o evento de fato tenha ocorrido e influenciado no processo de consolidação de um dia em homenagem a elas nos EUA, aconteceu num 25 de março e as tratativas datavam de mais de vinte anos antes.

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Mulheres organizadas contra a misoginia e as práticas de silenciamento de partidos de esquerda e movimentos sociais.

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