“Lembrai-vos das Coisas Passadas”

Educação, História e Memória (parte 1)

William Estaquio
9 min readOct 25, 2018

ENCAREMOS a realidade: o ser humano é mortal. Nasce num determinado momento, e morre noutro. As gerações, deste modo, também não são perpétuas, pois a vida humana é finita, e acaba. Você vê isto claramente? Ora, como pode uma sociedade subsistir, continuar a existir, se são finitos e mortais os seus membros? A propósito, não perca de vista que você é membro de uma sociedade, uma comunidade, um grupo, qual seja a palavra. Toda pessoa é membro de um Estado, um cidadão. Pode até mesmo viver como se não o fosse, porém basta um autoexame cuidadoso e alguns momentos de meditação para que desperte dessa grosseira fabulação. Uma vez alcançada a lucidez, siga então meu raciocínio (que não é nada original).

Pois bem, como pode uma comunidade, um conjunto de pessoas com uma determinada forma de vida, perdurar e suplantar o peso das eras, visto ser impossível aos seus membros continuar a existir senão por algumas poucas décadas? É claro que causa não pequena admiração aquelas almas “afortunadas” (ou nem tanto) que ultrapassam a média e chegam próximo, ou exatamente, a um século de vida. E, no entanto, como disse um homem sábio certa vez, “o melhor dos seus anos é cansaço e enfado; pois tudo passa rapidamente, e nós voamos”[1]. Ainda outro diz ser tudo, inclusive o homem, “vaidade”[2], tendo esta palavra o sentido de algo que é fútil e não-substancial: literalmente, um vapor, um sopro ou neblina. Mas por mais deprimente que isso possa ser a alguém, nosso foco é outro. Esta verdade manifesta foi tão profundamente assimilada por grandes almas na história, que acabou levando-as a refletir sobre meios de superar a implacável dinâmica dos tempos, de modo que Horácio, o nobre poeta e filósofo romano, vê no conjunto de suas próprias obras um monumento “mais perene que o bronze”[3]. Ele há de morrer, mas sua memória há de derrotar as barreiras do tempo. E não está ela aqui, ainda revestida de vitalidade, dois milênios mais tarde?

Memória — guarde bem esta palavra. A Ilíada e a Eneida, do grego Homero e do romano Virgílio, as mesmas palavras exprimem: “Ó Musa”![4] E, na mitologia, as Musas são deusas, filhas de Zeus e Mnemósine (a Memória). Você pode notar facilmente a semelhança entre o nome desta e a palavra “mnemônica”, que é a arte de ajudar a memória por meio de determinadas associações. C. S. Lewis, por exemplo, alude a certos versos mnemônicos, possivelmente bem conhecidos por seu público no século passado, que fazem referência às chamadas “sete artes liberais”:

Gram loquitur, Dia verba docet, Rhet verba colorat,

Mus canit, Ar numerat, Geo ponderat, Ast colit astra[5]

Estes mesmos versos, já na Idade Média, eram empregados pelos monges irlandeses, professores na Alemanha, a fim de imprimir na memória dos alunos a sequência das artes. Ora, reconhecem os poetas, em vista da enormidade do conjunto de detalhes que seus épicos abarcam, e do fato de que sua é a posição de alguém que narra e descreve coisas anteriores, não vistas de primeira mão, ser necessária a intervenção de alguém que não tem memória falha, precisamente as Musas a quem clamam já no início dos relatos.

Você pode perguntar-se como viemos parar aqui. E o fará se estiver perdido. Mas veja que a pergunta permanece, e que estou mostrando a resposta. Não a minha resposta, mas aquela que surge naturalmente de profunda reflexão sobre o problema, e que na história foi por muitos encontrada. Estas últimas palavras têm duplo sentido. O primeiro quer dizer que a resposta, ao longo da história, já foi encontrada; o segundo quer dizer que a História é a resposta para o grande problema. Ou seja, como pode uma sociedade propagar sua forma de existência ao longo do tempo, já que os indivíduos são mortais, ao contrário do próprio tempo, que prossegue incessantemente? A resposta, portanto, não é outra: mantendo esta forma de existência na memória. Na memória de quem, todavia? De todos os membros desta sociedade: isto é, dos que vivem e dos que ainda hão de viver. Deste modo, quando historiadores tais como o alemão Werner Jaeger e o francês Fustel de Coulanges minuciosamente examinaram os primórdios das nações greco-romanas, bem como outros dos antigos povos, concluíram então que toda sociedade, ao atingir um determinado grau de desenvolvimento, sente-se naturalmente inclinada a preservar e transmitir sua forma de existência social e espiritual. A necessidade é óbvia e inevitável. Tudo o que é vital na existência de um povo, tudo o que há de mais valioso e fundamental para sua própria identidade, deve ser preservado e propagado, se ele quiser subsistir e continuar existindo a despeito da brevidade da vida de seus membros. Pois uma comunidade não é composta apenas dos vivos, mas também dos mortos e dos que ainda hão de vir. E, deste modo, onde o egocentrismo e o individualismo imperam, o colapso está garantido. Tudo aquilo que desafia a memória e a sabedoria do passado está fadado a ruir.

Veja que toda sociedade possui uma “alma”, isto é, uma cultura. Você deve certamente pensar que os elementos de nossa cultura simplesmente continuam em “piloto automático”: as instituições governamentais, culturais e religiosas, bem como as normas sociais. Porém não é este o caso. “Se você abandona uma coisa à própria sorte”, já disse alguém, “você a deixa à mercê de uma torrente de mudanças”[6]. Isso é válido para tudo. Um livro abandonado na estante, imóvel e intocado, há de ser reencontrado empoeirado e, talvez, roído por traças (sei disso por experiência). O que é colorido desbota, e, se quisermos vê-lo com sua cor própria outra vez, precisamos repintá-lo. Se a cultura é desassistida, a sociedade corre perigo. Mas pense em cultura, que é a alma e a identidade de uma sociedade, também como um corpo de conhecimento. Sim, um corpo formado pela sabedoria, pelos conhecimentos, valores e ideais de uma civilização (e pense em civilização como algo ainda mais amplo que uma comunidade particular). Não pense em cultura como um conjunto de shows banais e repletos de pessoas raramente preocupadas com sua integridade moral. Tampouco em exposições daquilo que os pobres de espírito têm chamado “arte”, algo que nada expressa senão os caprichos de alguém. Pense, antes, na colossal acumulação de grandes realizações, de conhecimentos e opiniões, discussões e argumentos, concordâncias e discordâncias, esperanças e aspirações das gerações passadas — em outras palavras, a alma da nossa sociedade. Ora, se dissemos que para uma comunidade subsistir faz-se necessário manter sua alma na memória — ou na própria alma — de todos os seus membros, e que essa alma equivale à sua cultura, devemos também refletir sobre qual é o exato princípio por meio do qual uma sociedade conserva e transmite (ou propaga) sua alma, isto é, sua própria forma de existência. Você pode ainda não ter-se dado conta de como isso está irrevogavelmente vinculado à sua própria vida. E é certo que, se o destino da comunidade humana repousasse em suas mãos, há muito ela estaria extinta. Sem dúvida, não deu-se conta ainda de que, atrelado ao destino da civilização ocidental, está o seu próprio destino (ou de seus filhos, ou ainda de seus netos). Um indivíduo egoísta e individualista não é alguém virtuoso, ou bem-formado.

É este, portanto, um problema antiquíssimo. É visto, por exemplo, na obra egípcia As Instruções de Any[7], escrita no tempo da 18ª dinastia do Egito. Nela, Any, o pai, e o filho Khonshotep, ambos escribas, debatem sobre a necessidade do filho de abraçar o legado cultural que o pai deseja transmitir-lhe, ao que Khonshotep oferece resistência. É um diálogo altamente instrutivo, pois o dilema é universal. Na literatura sapiencial bíblica, composta de autores diversos, a preocupação permanece[8] — como indicam, por exemplo, as repetidas palavras: “Filho meu, ouve”. Diz Cícero que “a Natureza produz um amor especial pela descendência”[9].

Qual é, pois, o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite sua peculiaridade social e espiritual? Veja que nossa atenção está voltada desde o início à forma de vida social e espiritual de uma comunidade, e não à sua forma de vida física. A razão é clara. Na qualidade de seres físicos, assim como os animais, os seres humanos consolidam sua espécie por meio da procriação natural. Diríamos que este processo é menos laborioso que aquele pelo qual se consolida a forma de existência social. Para aquele, é necessário o uso eficiente das forças por meio das quais essa própria forma de existência foi criada: a saber, a vontade consciente e a razão[10]. Eis aqui, portanto, a resposta à pergunta: o princípio por meio da qual a comunidade humana conserva e transmite sua peculiaridade social e espiritual é a educação. Precisamente a educação, e não qualquer outro meio. Desse modo, assinala Chesterton:

“O que é educação? Corretamente falando, não existe educação. A educação é simplesmente a alma de uma sociedade que passa de uma geração para outra. O que precisamos é ter uma cultura antes de passá-la adiante. Em outras palavras, é uma verdade, por mais triste e estranha, que não possamos dar o que não temos, e que não possamos ensinar a outras pessoas o que nós mesmos não conhecemos.”[11]

Típico de Chesterton dizer algo tão profundo com tão poucas palavras, o exato oposto de pensadores que conseguem a façanha de não dizer nada com uma multidão delas. Percebe o quadro? Creio que pode a grande imagem ser agora vislumbrada. Sem a educação, não há estabilidade e continuidade. Ela ensina-nos História. Não quer dizer que todo membro de uma comunidade[12] deva ascender à posição de especialista; quer dizer, antes, que devem ter todos uma familiaridade básica com sua história comum. O que vem antes e depois do descobrimento do Brasil por parte do português Pedro Álvares Cabral não deixa de ser relevante para nós, brasileiros. Essa é a nossa história[13]. Devem todos receber, para que possam a seu tempo transmitir. Notou T. S. Eliot, numa de suas visitas aos Estados Unidos, uma interessante particularidade da educação americana na época: embora muito inteligentes, careciam os estudantes, ao contrário dos britânicos, de um corpo reconhecível de conhecimento histórico e cultural[14]. E isso sempre indica uma falha formidável nas instituições de ensino. A manutenção de uma cultura requer menos que os membros de uma sociedade saibam muitas coisas, do que saibam todos as mesmas coisas. Uma cultura requer pontos de referência comuns, e um dos trabalhos da educação é exatamente assegurar que sejam eles conhecidos por todos (incluindo os que ainda hão de vir, as gerações seguintes). É certo que a educação não está restrita a esta função, mas ela é seguramente um sine qua non. Sem ela, não há genuína educação. E este é nosso enfoque no momento. Não é exagero, portanto, dizer que nosso futuro está em estreita dependência da educação. Lynne Cheney disse uma vez que se você termina seus estudos escolares sem saber o que é a civilização ocidental, então você não foi realmente educado. As instituições, os princípios morais, a ordem civil que dá-nos alguma segurança todos os dias, são todos elementos num vínculo direto com a educação, como veremos mais à frente. Não tenho dúvidas de que há preconceitos (isto é, julgamentos prévios) em sua mente. Sim, todos concordam que educação é algo bom, porém nem todos são capazes de defini-la. E, ao mesmo tempo, as associações que acompanham este nome na mente de muitos são fruto de equívocos e alguma preguiça. Não é adequado sustentarmos meras opiniões sobre as coisas, caso isso impeça-nos de apreender sua verdadeira natureza (a verdade) e de, por consequência, agirmos e pensarmos acertadamente em relação a elas. O caminho para a virtude é o caminho para a sabedoria, e Tomás de Aquino a define como a “correta ordenação das coisas”. Reservemos, assim, um momento de reflexão sobre a verdadeira natureza da educação.

Parte 2

Parte 3

[1] Moisés, salmo 90.10.

[2] Salomão, Eclesiastes 1.1.

[3] Matheus Knispel da Costa, jovem professor que muito admiro, fez questão de pontuar numa palestra sobre educação clássica, em 2016, que a palavra latina monumenta (plural de monumentum) indica também obras escritas, “obras literárias”.

[4] Também o faz, por exemplo, o poeta inglês e puritano John Milton em seu Paraíso Perdido.

[5] A Imagem Descartada, p. 180.

[6] Gilbert K. Chesterton, Ortodoxia, VII.

[7] M. Lichtheim, Instruction of Any.

[8] O professor de Antigo Testamento Daniel Santos (CPAJ e Mackenzie-SP), defende que um texto especialmente adequado para este cenário é o de Provérbios 22.6, se entendido corretamente. Confira o artigo na revista Fides Reformata, “A Proposta Pedagógica de Provérbios 22.6” (XIII, nº1, 2008, p. 9).

[9] Dos Deveres, 1. iv.

[10] Werner W. Jaeger, Paideia — A Formação do Homem Grego, p. 3.

[11] Illustrated London News, 1924.

[12] O latim communis, raiz da expressão communitas, quer dizer, literalmente, “comum e ordinário”; algo que é da (ou para a) comunidade e do (ou para o) público.

[13] Excelentes livros que conheço sobre o assunto são: 1808, 1822 e 1889, de Laurentino Gomes; e História da Civilização Brasileira, de Pedro Calmon. Aceito recomendações de muito bom grado.

[14] Citado por Martin Cothran no artigo What is Western Civilization?

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