“Lembrai-vos das Coisas Passadas”

Educação, História e Memória (parte 3)

William Estaquio
6 min readOct 25, 2018

POR FIM, tenha em mente que o conceito de educação é mais amplo e profundo que o de “escolarização”, com o qual somos sempre tentados a associá-lo. Educação e escolarização são coisas diferentes. Podemos dizer que escolarização é um círculo estreito dentro do círculo mais amplo da educação. Em outras palavras, a escolarização é uma das diversas instâncias que a educação pode abranger. Talvez eu possa usar uma simples e compreensiva ilustração. Pense numa piscina cheia, com dez baldes dentro dela. É um número simbólico, é claro. Cada balde é uma instância em que a educação pode existir: um lar, uma escola, uma universidade, uma igreja, um grupo de estudos, um jardim, etc. Ora, a educação jamais pode ser reduzida a qualquer destas unidades, pois as transcende. Todas são por ela abrangidas, mas nenhuma pode contê-la em si unicamente. Além do mais, ninguém pode escapar dela. A educação engloba de uma só vez criação, formação, instrução, ensino, disciplina, treinamento, nutrição, e é uma força atuante no homem e na sociedade — na existência toda. Porém relembra-nos Chesterton que a “educação é dar algo — talvez veneno”. Em outras palavras, é um veículo usado para o bem e para o mal. E, no entanto, o mau uso de qualquer coisa não deve desviar-nos de sua verdadeira natureza, e a educação possui uma estrutura básica que a define como tal. Onde quer, portanto, que haja criação, formação, instrução, ensino, disciplina, treinamento e nutrição, aí há educação[1]. E, visto que o homem é um ser educável por natureza, ele está perpetuamente sujeito a ser contaminado pela má educação.

Até aqui, portanto, o quadro é o seguinte. A educação conecta as gerações ao manter na memória de todos sua cultura comum; ela habilita os indivíduos a receber, entender e transmitir esse corpo de conhecimento que é uma cultura; para isso, a educação antes as treina e prepara, formando suas mentes e almas. A educação torna o homem capaz de realizar suas potências, e também digno da posição que ocupa entre os seres. A coisa não é assim tão mecânica, porém. O conceito da palavra grega scholé, donde derivamos nossa palavra “escola”, é significativo. É, literalmente, um “aprendizado repousante” — “lazer”, “tempo livre”, “conversação engajada” e “discussão erudita” são outras expressões que a definem. Na Metafísica, a visão de Aristóteles é a de que o alcance do fim último da vida humana requer um scholé (lazer), isto é, uma liberdade temporária de preocupações quanto às necessidades da vida. Interessante é notar que, para o filósofo, o próprio fato de haver algum lazer é uma conquista da sociedade política; e que o fato dos cidadãos usarem o lazer para um fim apropriado (para a educação, o pensamento e a cultura) é também um artefato de um bom sistema de leis e de educação. Originalmente, como explica Thomas Bénatouïl, “scholé designava o lazer de que se desfruta para educar-se e participar na vida política e cultural de sua cidade [pólis]”[2]. Não é irônico que, hoje, uma escola geralmente não seja nem repousante nem cativante? E que ali o amor pelo conhecimento (a verdade) praticamente inexista? Studere é estar ansioso ou entusiasmado por algo. Por conseguinte, o estudante diligente está capturado e entusiasmado pelo conhecimento, a habilidade e a sabedoria[3]. Um educador (pai ou professor) deve tentar fomentar em seu aprendiz (filho ou aluno) zelo, avidez e diligência; deve exibir a ele a beleza e o fascínio da linguagem, a história, e a matemática; deve apelar aos seus corações tanto quanto às suas mentes, sendo ele mesmo um modelo de paixão pelo aprendizado, pelo estudo[4] e pelas coisas mais fundamentalmente importantes da nossa existência. E, por outro lado, quão egoísta e mesquinha não é a postura vitalícia daqueles que, repastando e aproveitando-se daquilo que nossos ancestrais construíram, jogam de si o fardo de repassá-lo à posteridade? Porém já disse Edmund Burke que as pessoas que nunca olham para trás, para seus ancestrais, jamais olharão para frente, para a posteridade. Essas pessoas tendem a chegar ao poço de moedas de ouro e tomar para si, durante toda a vida, aquilo que promove seu sustento e sucesso próprios, ignorando que a estabilidade que ainda resta de seu modo de vida é produto do trabalho consciente daqueles que vieram antes delas. É o bastante que nos ocupemos com nossas vidas privadas e, assim, percamos de vista o todo do qual somos parte? O niilista e o relativista podem até justificar sua insensibilidade e inércia, mas aqueles que já puderam transcender o baixo nível de sua condição humana têm ciência de que isso é um desrespeito àquela mesma realidade eterna se desdobrando ao longo do tempo. Você deve certamente pensar ter o direito de desfrutar dos saberes e feitos de filósofos, matemáticos, físicos, estadistas, juristas et cetera, sem os quais viveríamos ainda num estado de barbarismo em todos os sentidos (social, moral, espiritual), e fazê-los convergir para o sucesso de sua ínfima vida neste universo, morrendo sem nada legar ou transmitir. Isso é inaceitável, mesmo porque tão rico e suntuoso é o corpo de nossa civilização, que só o egoísmo ou a ignorância não há de pensar em propagá-lo aos séculos vindouros, partilhando com a sua e a seguinte geração. Minha esperança é que você aprenda que

“A humanidade não passa por fases como um trem passa por várias estações. Sendo viva, ela tem o privilégio de avançar sempre, sem deixar nada para trás.”[5]

O presente é tanto um período quanto o passado e o futuro, e logo há de tornar-se passado. É fato que somos o produto de um sistema educativo que não transmite a nós a alma de nossa sociedade, e não é exagero dizer que temos servido como cobaias no que podemos chamar de “grande experimento cultural” em vistas ao que George Steiner chamou de “amnésia planejada”. Não é “teoria da conspiração”; é fato[6]. Gerações atrás, os ideais clássicos da educação que resistiram por séculos, aqueles mesmos ideais presentes na educação grega e romana, preservados durante a Idade Média cristã e amplamente redescobertos a partir do Renascimento, que persistiram até passarem a ser corroídos no século passado por certas filosofias de ensino, sim, os ideais veiculados pela transmissão cultural, foram substituídos nas escolas em favor do que ao seu ver são “coisas melhores”: treinamento vocacional e doutrinação política. Você pode ver isso facilmente em certos rearranjos nas disciplinas. Por outro lado, o alvo principal da antiga educação clássica era transmitir nossa cultura[7]. É para isso, diz Russell Kirk, que servem as humanidades: “ensinar aos seres humanos sua verdadeira natureza, sua dignidade, e seu lugar apropriado no grande esquema das coisas”. Que outra frase resume o que aqui temos tratado? Nosso alvo primário não deve ser aprender a ser um engenheiro, um psicólogo, um programador ou advogado; antes deve ser aprender como tornarmo-nos verdadeiramente humanos — e isso, incidentalmente, há de seguramente tornar-nos melhores engenheiros, psicólogos, programadores ou advogados.

O homem é mais que um ativista político e um empregado. Como disse Aristóteles, ele é um conhecedor, um fazedor e um criador. Qualquer educação digna do nome deve lidar com isso.

Parte 1

Parte 2

[1] Pode ser particularmente do interesse de cristãos saber que mesmo a pregação de um sermão é educação. Dentre as qualificações de um presbítero/bispo (1 Tm 3.2), está a de ser “apto para ensinar” (διδακτιόν; o verbo διδάσκω é sinônimo de παιδευω, que por sua vez é usado pelo Apóstolo Paulo em 1 Timóteo 1.20 com o sentido passivo de “aprender”, e em 2 Timóteo 2.25 com o sentido de “corrigir”. Em Hebreus 12.7, o sentido é de “disciplina”). Interessantemente, a palavra παιδεια é atribuída à própria Sagrada Escritura por Paulo em 2 Timóteo 3.16 como parte de sua operação no homem de Deus, a fim de que tenha ele “capacidade e pleno preparo para realizar toda boa obra” (v. 17). Em Efésios 6.4, o apóstolo, dirigindo-se aos pais de família, exorta-os a que criem seus filhos na disciplina e na instrução do Senhor. Visto que Deus é o Mestre perfeito, ele naturalmente educa (inúmeros são os exemplos). Um breve estudo sobre o tema foi elaborado pelo reverendo e professor Hermisten Maia (Mackenzie), sob o título: A Paideia no Novo Testamento — A Formação do Homem Cristão.

[2] A Companion to Ancient Philosophy, IV.21.

[3] Christopher A. Perrin, An Introduction to Classical Education, p. 33.

[4] Ibid., p. 34.

[5] C. S. Lewis, Alegoria do Amor, p. 13.

[6] Uma análise séria e documentada de nosso cenário é feita por Pascal Bernardin em Maquiavel Pedagogo.

[7] Na tradição judaico-cristã, este elemento é igualmente basilar. O dever, primordialmente paternal, de transmitir às gerações seguintes as leis e os feitos de Deus é cristalino nas páginas do Antigo Testamento (Dt 6.7; Sl 145.4). No Novo Testamento, os ideais da fé cristã devem ser disseminados e transmitidos a cada novo discípulo (Mt 28.19), de modo que o Apóstolo Paulo os transmite a Timóteo que, por sua vez, deve passá-los adiante a outros homens fiéis para que, por sua vez, eles os ensinem a outros (2 Tm 2.2).

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