O personagem e o estupro
– Você é escritor? Que legal!
É uma resposta recorrente quando me perguntam sobre a minha vida. Geralmente, as frases acima levam fatalmente a outra:
Eu tenho uma ideia para um livro…
Ou
Eu tenho todo um universo criado para um livro que estou escrevendo…
Aí o conteúdo varia: É uma tetralogia, uma hexalogia, não importa o tanto de livros que a saga terá. Na cabeça do(a) autor(a) iniciante, a motivação, em alguns casos, é a pior possível:
Minha personagem sofreu um abuso sexual…
A partir daí as versões mudam: Ou foi no colégio, pelo colega de quarto, por alguém da família… O ser humano consegue pensar nas mais diversas crueldades que cabe neste cenário horrendo, acometendo principalmente mulheres e crianças.
Além de ser um recurso pobre para a composição do personagem, há um grande problema em seu uso: o estupro é tratado como um agente transformador, onde a personagem adquire forças ou motivações para vencer desafios, geralmente motivada por vingança ou para impedir que o que aconteceu com ela aconteça com outras.
Produzir uma história usando como agente transformador o estupro é, indiretamente, fazer apologia ao mesmo.
Entendam, jovens autores (as): violência sexual NÃO enriquece o personagem. Nenhum deles.
É recorrente vermos em livros e filmes homens de família sendo obrigados a ver sua esposa e filha sendo violentadas e mortas, transformando aquele homem num guerreiro com sede de vingança.
A minha grande pergunta: Quantos filmes Hollywood fez sobre homens sofrendo violência sexual masculina e devido a isso viraram grandes heróis?
A violência física é um recurso dramático essencial para qualquer livro ou filme de guerra ou ação. A violência sexual é o recurso preferido dos iniciantes, dos fracos, dos tarados, fruto de um pensamento sobre a ilusão do pecado sobre o ato sexual. É a punição da personagem que teima em se aventurar. É um preço caro, cobrado por autores “baratos”.
Falo isso porque, no começo da minha carreira, escrevi três histórias que não consegui terminá-las, tendo como base os materiais que tinha por perto: Druuna, de Serpieri e Sonja.
Uma era violentada por todo o tipo de homem e outra só se deitaria a quem conseguisse vencê-la numa batalha, ou seja, subjugá-la fisicamente.
Sonja parece uma resistência feminina, mas o que na verdade a personagem apregoa é que um homem pode abusar de uma mulher se tiver poder de subjugá-la. É de uma irresponsabilidade tremenda usar este recurso em histórias em quadrinhos, mesmo que a personagem sempre vença. Sonja é uma personagem datada, assim como as suas antigas vestimentas, que mostravam seu corpo e supostamente seria a motivação para que os homens quisessem tomá-la para si.
Este recurso não cabe mais nos dias de hoje. Podemos olhar para o passado como referência, e não como regra.
Isso quer dizer que seu personagem não pode mais sofrer? Pode, deve, é assim que a trama anda. Mas o desafio estar em inovar, quebrar velhos moldes e apresentar personagens mais ricos. Se fosse fácil, todos nós estaríamos ricos ou achar livros bons e originais iria ser tão fácil quanto achar alguém que “tem uma história para por no papel…”