O personagem e o estupro

Estevão Ribeiro
3 min readFeb 8, 2016

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– Você é escritor? Que legal!

É uma resposta recorrente quando me perguntam sobre a minha vida. Geralmente, as frases acima levam fatalmente a outra:

Eu tenho uma ideia para um livro…

Ou

Eu tenho todo um universo criado para um livro que estou escrevendo…

Aí o conteúdo varia: É uma tetralogia, uma hexalogia, não importa o tanto de livros que a saga terá. Na cabeça do(a) autor(a) iniciante, a motivação, em alguns casos, é a pior possível:

Minha personagem sofreu um abuso sexual…

A partir daí as versões mudam: Ou foi no colégio, pelo colega de quarto, por alguém da família… O ser humano consegue pensar nas mais diversas crueldades que cabe neste cenário horrendo, acometendo principalmente mulheres e crianças.

Além de ser um recurso pobre para a composição do personagem, há um grande problema em seu uso: o estupro é tratado como um agente transformador, onde a personagem adquire forças ou motivações para vencer desafios, geralmente motivada por vingança ou para impedir que o que aconteceu com ela aconteça com outras.

Produzir uma história usando como agente transformador o estupro é, indiretamente, fazer apologia ao mesmo.

Entendam, jovens autores (as): violência sexual NÃO enriquece o personagem. Nenhum deles.

É recorrente vermos em livros e filmes homens de família sendo obrigados a ver sua esposa e filha sendo violentadas e mortas, transformando aquele homem num guerreiro com sede de vingança.

A minha grande pergunta: Quantos filmes Hollywood fez sobre homens sofrendo violência sexual masculina e devido a isso viraram grandes heróis?

A violência física é um recurso dramático essencial para qualquer livro ou filme de guerra ou ação. A violência sexual é o recurso preferido dos iniciantes, dos fracos, dos tarados, fruto de um pensamento sobre a ilusão do pecado sobre o ato sexual. É a punição da personagem que teima em se aventurar. É um preço caro, cobrado por autores “baratos”.

Falo isso porque, no começo da minha carreira, escrevi três histórias que não consegui terminá-las, tendo como base os materiais que tinha por perto: Druuna, de Serpieri e Sonja.

Uma era violentada por todo o tipo de homem e outra só se deitaria a quem conseguisse vencê-la numa batalha, ou seja, subjugá-la fisicamente.

Sonja parece uma resistência feminina, mas o que na verdade a personagem apregoa é que um homem pode abusar de uma mulher se tiver poder de subjugá-la. É de uma irresponsabilidade tremenda usar este recurso em histórias em quadrinhos, mesmo que a personagem sempre vença. Sonja é uma personagem datada, assim como as suas antigas vestimentas, que mostravam seu corpo e supostamente seria a motivação para que os homens quisessem tomá-la para si.

Este recurso não cabe mais nos dias de hoje. Podemos olhar para o passado como referência, e não como regra.

Isso quer dizer que seu personagem não pode mais sofrer? Pode, deve, é assim que a trama anda. Mas o desafio estar em inovar, quebrar velhos moldes e apresentar personagens mais ricos. Se fosse fácil, todos nós estaríamos ricos ou achar livros bons e originais iria ser tão fácil quanto achar alguém que “tem uma história para por no papel…”

Em tempo: Para quem mora em Niterói, na segunda quinzena de março teremos um curso de quatro horas sobre produção de histórias em quadrinhos, comigo. As técnicas que passarei por lá servem também para quem deseja escrever livros e afins.

Poucas vagas! Informações: contato@aquarioeditorial.com.br

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