Chuvas e suas falsas capas.
Ou do impulso de ceder à falsa proteção.

Hoje foi (mais um) dia de dilúvio no Rio. Dentre os pés molhados, cabelo arrepiado (e coração quentinho), me veio uma pontinha de melancolia ao lembrar de um evento recente.
Aconteceu num dia como esse. Cinza e chuvoso. Implacável para corações partidos.
Resolvi ir num festival de música sozinha. Não queria que o desencontro entre amigos e a variedade de gostos musicais deles me impedissem de curtir os artistas que gosto. Era o meu momento.
Foi no show do Seal, por volta de 9 horas da noite. Chovia fino. A luz rosa que emanava do palco reluzia nos pingos d’água.
Estava sozinha. Era assustador e lindo estar num show eminentemente romântico desacompanhada. Ver alguns casais mais velhos se abraçando, outros cantando com peito estufado. Admirava o ambiente e as pessoas. Estava confortável naquele lugar.
De súbito, percebi ao meu lado um homem, igualmente sozinho. Ele usava capa de chuva cinza, daquelas bem caras mesmo compradas na gringa. Olhou pra mim e sorriu.
Algumas vezes. Como se quisesse se certificar de que, sim, era seu dia de sorte. Estava sozinha. Sentiu-se convidado a se aproximar – ainda que sem qualquer convite.
E tentou. Eram alguns olhares durante o show, frases curtas sobre a chuva e o show ao lado.
Do nada, o microfone do Seal foi cortado. Havia passado em torno de 10 minutos do início do show no palco principal. O suficiente para dar cabo do som que saía da garganta do artista.
Todos cantaram a capela. Em alto e bom som. Ainda chovia. O momento era tranquilo e bonito. Suave e sereno para os que escolheram ficar ali. A sós ou acompanhados.
Me lembro de me sentir muito bem comigo. Cheirar o sabor de água-na-tez e lamber o ar úmido e sedento. Ouvir a cevada e seus tons amargos. Ver a mim.
Tinha um homem no meio do caminho. No meio do caminho tinha um homem.
Assim que acabou o show, ele comentou algo sobre a chuva e me chamou para tomar uma cerveja. Como não tinha nada pra fazer, aceitei.
Fazia tempo que não flertava/ era cortejada. Não escapamos aos olhares terrenos, mas havia algo de significativo ali. O desejo pelo olhar do outro; a vontade – por que não? – de dizer sim a um desconhecido.
De toda a conversa e a troca, ficaram algumas coincidências e reflexões.
Coincidência ou não, ele era advogado numa área que eu odiava – o Direito Penal – e (pasme!) amava o que fazia. Falava com voracidade dos casos e discussões.
Coincidência ou não, era professor – como quero ser. Falava num tom preponderantemente professoral. Como se, pela diferença de idade (e, obviamente, de gênero), eu tivesse muito a aprender.
Da riqueza da troca, me recusei a receber apenas uma coisa: a (falsa) proteção que costuma travestir o desejo sexual masculino.
Explico.
Depois de algumas cervejas, debaixo de uma forte chuva, repleta de idas e vindas, ele abriu a mochila e tirou uma capa de chuva.
Insistentemente me ofereceu, diante do dilúvio que caía sobre nossas cabeças. Disse que a filha se recusou a usar a capa, que ele não usaria e que iria pro lixo, que poderia ficar para mim.
Respondi que não. Um não triunfante, quase.
Não foram poucos os percalços que passei a caminho de encontrar a mulher selvagem que hábito. Já fui refém do Barba-Azul. Estive em relações assimétricas e machistas que não me faziam bem algum.
Entendo o desejo inconsciente de nós, mulheres, em estarmos sob a proteção masculina. Nossa socialização foi construída para acordarmos pelo beijo do príncipe encantado, que desfaria o feitiço que outra mulher jogou (assunto esse para um outro texto).
Mas desde que peguei a chave ensangüentada, jamais cederei às falsas capas de chuva. A mulher que sou sabe do perigo, e já o sentiu de perto.
A capa de chuva é fina e translúcida. O tom predatório e destrutivo por trás dos olhos daquele homem, também.
Dizer não nessas horas é uma necessidade. Estar alerta àquela vozinha que nos fala é o que nos salva e acalenta.
Sigamos juntas. Munidas de consciência e leveza. Rainhas de nossos caminhos e possibilidades.