O que é a ditadura revolucionária do proletariado?

Estudos Marxistas
41 min readJun 16, 2024

Objetivos do estudo:

> Reunir as posições de Marx, Engels e Lenin acerca da ditadura revolucionária do proletariado, apreendendo suas reflexões, críticas e recomendações sobre o tema. (última atualização: 16/06/24)

Communardos em Paris após a vitória da comuna

A revolução tem de ser algo que mude a vida, senão é uma terrível banalidade.

José Chasin, O futuro Ausente

A questão da ditadura do proletariado é a questão essencial do movimento operário moderno em todos os países capitalistas.

V. I. Lenin, Contribuição para a história da questão da ditadura

As premissas objetivas da revolução proletária não estão somente maduras: elas começam a apodrecer. Sem vitória da revolução socialista no próximo período histórico, toda a civilização humana está ameaçada de ser conduzida a uma catástrofe.

Leon Trotsky, Programa de Transição

A ditadura é necessária?

Vivemos na ditadura da burguesia, o domínio indiscutível da classe que subordina tudo ao lucro. Esta ditadura não opera diretamente o seu domínio, mas por meio do mercado e sua natureza impessoal, é sobretudo um domínio econômico que dita as condições de existência das diversas classes e, assim, subordina de forma indireta todos dos domínios da vida social e política. A respeito da natureza estranha deste domínio Marx assinala:

O capital diferencia-se da relação de dominação [direta] precisamente porque o trabalhador se defronta com ele como consumidor e ponente de valor de troca, na forma do possuidor de dinheiro, como simples centro da circulação

Karl Marx, Grundrisse

A dominação impessoal do mercado se dá justamente por todos os participantes, sejam capitalistas ou trabalhadores, defrontarem-se no mercado como proprietários de mercadorias, sujeitos que, antes de qualquer especificidade, são iguais pelo fato de serem todos potenciais compradores e vendedores. Na sociedade capitalista, não nos distinguimos socialmente por ter um penteado diferente ou uma roupa bonita, mas sim por portarmos mercadorias que podem se materializar em um serviço agendado no barbeiro ou um novo terno. Nos relacionamos no mercado como compradores ou vendedores e nada mais.

Marx descreve a esfera da circulação das mercadorias como o “verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. […] o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham”. liberdade pois, aparentemente, nenhuma força se coloca em nosso caminho para que façamos parte do mundo das mercadorias, tudo ganha uma forma natural como a de um ecossistema onde cada parte se liga a outra de acordo com leis eternas de funcionamento. Igualdade, pois todos se relacionam por intermédio da troca de equivalentes. Propriedade, pois todos são donos de si e de suas coisas. E Bentham pelo fato de cada um cuidar — tal como o filósofo liberal recomendava — apenas do próprio nariz.

Segundo Postone, no “capitalismo o trabalho social não é apenas o objeto de dominação e exploração, mas é também a base da dominação”. Em outros modos de produção a base da dominação é a violência direta que o dominador aplica contra o dominado. Por exemplo, no feudalismo o servo sabe que é servo. Não há nenhuma chance do servo achar que é igual a seu senhor. Da mesma forma, o escravo sabe ser dominado com ainda mais clareza que o servo. A violência era visível nestas formas sociais de extração do excedente. Já no capitalismo, esta extração se dá por intermédio da livre venda da força de trabalho por parte do proprietário de si mesmo. É somente por ser livre que o trabalhador vai ao mercado e vende sua força de trabalho para o capitalista. Da mesma forma, é apenas por existir uma enorme massa de pessoas sem escolha a não ser vender sua capacidade de trabalho para viver que o capitalista pode existir enquanto proprietário de capital. Esta relação econômica é o fundamento da sociedade moderna e a forma impessoal através da qual a burguesia exerce seu domínio social.

Por sua vez, esta forma de dominação não repousa nas livres vontades ou em um ordenamento natural qualquer, mas sim no modo particular de produzir construído pelos homens em certo momento de desenvolvimento da história moderna. Vejamos como funciona a exposição de Marx acerca da complexa cadeia de determinações que conformam este tipo particular de dominação:

A forma econômica específica em que o mais-trabalho não pago é extraído dos produtores diretos determina a relação de dominação e servidão, tal como esta advém diretamente da própria produção e, por sua vez, retroage sobre ela de modo determinante. Nisso se funda, porém, toda a estrutura da entidade comunitária econômica, nascida das próprias relações de produção; simultaneamente com isso, sua estrutura política peculiar. Em todos os casos, é na relação direta entre os proprietários das condições de produção e os produtores diretos […] que encontramos o segredo mais profundo, a base oculta de todo o arcabouço social e, consequentemente, também da forma política das relações de soberania e de dependência, isto é, da forma específica do Estado existente em cada caso. Isso não impossibilita que a mesma base econômica […] manifeste-se em infinitas variações e matizes, que só se podem compreender por meio de uma análise dessas circunstâncias empíricas.

Karl Marx, O Capital. Livro III

Como Marx destaca, a oposição central ao redor da qual se concentram todas as contradições da sociedade capitalista se dá entre os “proprietários das condições de produção e os produtores diretos”. A partir daí temos o desdobramento de todas as demais contradições da relação-capital, porém, estes desdobramentos não são meras sombras da produção e podem retroagir “sobre ela de modo determinante”. Ou seja, não podemos tomar a produção unilateralmente como causa dos efeitos da circulação, mas antes um momento de uma totalidade integrada e complexa na qual a produção cumpre papel de predominância relativa e não absoluta. As formas políticas e jurídicas possuem fundamento na produção e ao mesmo tempo regulam a produção de forma que a luta entre as classes presente no seio da produção capitalista transborda por toda sociedade do capital. Isto implica dizer que a oposição central da produção entre capitalistas e trabalhadores pode não aparecer de imediato nos conflitos sociais e, portanto, a análise das classes possui determinações que exigem a compreensão concreta das mediações do processo de circulação como requisito para compreensão das lutas de classes — e dos meios de intervenção nestas lutas.

Em outras palavras, em que pese o capital em seu movimento real existir “apenas no processo de produção, no processo de exploração da força de trabalho”, na esfera da circulação estão as determinações que irão complementar e enriquecer sua análise. Em termos políticos, dificilmente as pessoas compreendem a raiz de seus problemas na economia política ou na esfera produtiva. Suas vidas imediatas são tomadas por preocupações como preço dos itens básicos, inflação, violência urbana, tributação, moradia, preço dos aluguéis, endividamento, racismo, LGBTIfobia, machismo, diferenças salariais, etc. A massa da população se relaciona com o que há de específico na produção e reprodução material (ou seja, a exploração da força de trabalho) apenas de forma mediada. Exatamente por esta razão a compreensão das conjunturas políticas exige um estudo bastante aprofundado de todas as formas como as pessoas se relacionam no seu cotidiano, inclusive das formas de consciência ideológicas que elas possuem.

Em obras como 18 Brumário de Luís Bonaparte ou nos seus artigos jornalísticos, podemos ver que Marx realiza análises bastante distintas das presentes em O Capital. Seu olhar para os conflitos sociais continua materialista, no entanto, em tais obras Marx precisa investigar como as classes e subclasses participam efetivamente dos conflitos sociais e políticos, sendo movidas por interesses muitas vezes contraditórios aos das classes das quais estas mesmas massas são oriundas.

Marx enxerga no campesinato francês, por exemplo, uma classe isolada e sem capacidade organizada para ingressar na luta política, posto que “a similitude de seus interesses não cria entre eles comunidade alguma, ligação nacional alguma, nem organização política”. Seria um erro, no entanto, acreditar na fábula de que o campesinato é em si mesmo uma classe não revolucionária. Isto seria criar uma espécie de teoria geral do campesinato, como se fosse possível ele se comportar de tal maneira independentemente das condições objetivas e específicas em que está inserido, o exato oposto do procedimento adotado por Marx em toda sua trajetória.

Devemos notar, no entanto, que Marx busca extrair da realidade das classes sua situação concreta de luta e não apenas tratar o conflito principal da produção capitalista entre a massa que só possui a si mesma e o capital. É preciso compreender como os conflitos sociais provenientes da relação-capital se manifestam nas distintas classes e subclasses para compreender de qual forma a dominação impessoal do mercado opera sobre esta massa. Apenas assim Marx e sua organização conseguiriam intervir no processo de forma adequada para “organizar as forças do trabalho, interconectando e articulando os vários movimentos operários”.

A construção da ditadura do proletariado é, pois, articulando os diversos conflitos sociais e movimentos operários, a construção das condições de inversão deste domínio de classe — seus objetivos finais no entanto não são o simples domínio político, mas sim o fim das classes e, portanto, de todo domínio político!

toda a classe que almeje à dominação, ainda que sua dominação, como é o caso do proletariado, exija a superação de toda a antiga forma de sociedade e a superação da dominação em geral, deve primeiramente conquistar o poder político, para apresentar seu interesse como interesse geral, o que ela no primeiro instante se vê obrigada a fazer.

Karl Marx; Friedrich Engels, A Ideologia Alemã

Para isto, não basta a vontade. Para Marx “Uma revolução social radical depende de certas condições históricas definidas do desenvolvimento econômico como suas precondições”, portanto, a fraseologia revolucionária não basta, antes é preciso compreender as condições que possibilitam este passo histórico. Marx critica Bakunin, por exemplo, argumentando que ele “não entende absolutamente nada sobre a revolução social, apenas suas frases políticas”. Sua crítica se dirige sobretudo ao fato de Bakunin, figura anarquista de grande potencial no movimento operário, não buscar uma compreensão da revolução a partir de sua base econômica, praticando uma “equalização das classes” e desconsiderando que o movimento proletário, embora solidário com todas as classes oprimidas, tinha raízes objetivas no desenvolvimento historico-social.

As diferenças entre Marx e Bakunin ajudam a compreender algumas das profundas contradições reais que marcam o enigma da transição para uma sociedade radicalmente diferente onde as classes, o estado e o capital sejam finalmente destruídos. Enquanto Marx pensa a revolução em termos da autoemancipação da classe operária surgida da própria condição histórica de desenvolvimento da exploração do capital sobre o trabalho, Bakunin enxerga a revolução social como produto direto da destruição do estado e capital. Enquanto Marx enxerga no proletariado industrial (à época) o sujeito capaz de desafiar a ordem existente pelas próprias condições objetivas nas quais se encontra, Bakunin enxerga uma massa indistinta de oprimidos. Marx vê a necessidade de usar a política em favor da classe operária como ponto de trânsito para o modo de produção associado, já Bakunin pensa a política e as formas democráticas como formas que devem ser abandonadas de imediato. A tendência geral de Bakunin é pensar a sociedade do futuro e partir desta imagem mental para a implementação prática, ao passo que Marx busca ver na própria realidade capitalista as formas nas quais é possível navegar em direção à emancipação do trabalho.

Em uma carta editorial para a revista La Liberté, Bakunin escreve que

Não aceitaremos, mesmo no processo de transição revolucionária, quaisquer formas de assembleias constituintes, governos provinciais ou das assim chamadas ditaduras revolucionárias, pois estamos convencidos de que a revolução só é sincera, honesta e real nas mãos das massas e que, ao se concentrar nas mãos de uns poucos indivíduos governantes, ela se converte inevitavelmente em reação.

Mikhail Bakunin, A Letter to the Editorial Board of La Liberté.

Isto sumariza bastante a posição contrária à ditadura revolucionária ou qualquer transição de natureza política. Contra isto, Marx argumenta que

[…] como o proletariado ainda age, durante o período de luta pela derrubada da velha sociedade, com base naquela velha sociedade e, portanto, também ainda se move dentro de formas políticas que mais ou menos lhe pertencem, ainda não alcançou, durante esse período de luta, sua constituição final e emprega meios para sua libertação que, após essa libertação, deixa de lado. O Sr. Bakunin conclui daí que é melhor não fazer absolutamente nada… apenas esperar pelo dia da liquidação geral — o juízo final.

Karl Marx, Comentários de Marx a “Estatismo e Anarquia” de Bakunin

Apesar de Marx apontar corretamente a falha do abstencionismo político de Bakunin, o revolucionário russo acaba descrevendo uma parte das dificuldades que se colocariam diante do proletariado revolucionário ao longo de suas experiências concretas de construção socialista no século XX. Estas dificuldades, no entanto, não podem ser simplesmente jogadas de lado com um plano ideal de sociedade futura sem autoritarismos, é preciso construir ativamente uma sociedade futura por meio do desmantelamento gradual da sociedade realmente existente — assim a ditadura revolucionária permanece a um só tempo uma necessidade histórica e um enigma do qual nenhum revolucionário pode fugir.

O amadurecimento da ditadura proletária

O “conceito” de ditadura do proletariado em Marx vai aparecer apenas mais tarde, porém ainda no manifesto do partido comunista podemos ver em linhas gerais que a ditadura revolucionária já se apresenta como necessidade ainda como um programa político em maturação. Marx fala que a “A sociedade já não consegue mais viver sob o domínio da burguesia”. Apresenta assim, a burguesia como dona de uma espécie de controle sobre esta era social. Apresenta o objetivo imediato dos comunistas como sendo “a constituição do proletariado em classe” em busca de realizar “a derrubada do domínio da burguesia” que seria o mesmo que “a conquista do poder político pelo proletariado”. Marx, ainda no manifesto, declara que “O domínio do proletariado fará com que tais contradições desapareçam ainda mais. A ação unificada do proletariado, pelo menos nos países civilizados, é uma das condições primordiais para sua emancipação”. O internacionalismo, portanto, já aparece como um complemento necessário à ditadura do proletariado.

O enquadramento tático do manifesto procura dar uma solução estatal para o problema do domínio proletário. Assim, o estado aparece como ferramenta que o proletariado usaria para “a conquista da democracia”. Em seguida, os proletários usariam seu domínio para realizar

intervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações burguesas de produção […] que tragam resultados para além de si mesmas e sejam indispensáveis para revolucionar todo o modo de produção.

Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista (grifo meu)

Marx associa o próprio estado ao “proletariado organizado como classe dominante”, como se não houvesse distinção entre as duas coisas. Toda estratégia se baseia na ideia de que o proletariado não pode simplesmente se desfazer das relações existentes pela mera vontade uma vez que tais relações são produto de um longo desenvolvimento histórico e se manifestam não diretamente pelas instituições políticas mas sim através de uma dominação impessoal do mercado, uma dominação econômica. Assim, a dominação política seria um passo para tocar na maquinaria estatal e começar o trabalho de destruição desta dominação econômica das relações de produção capitalistas.

No prefácio dedicado à edição alemã de 1872 do manifesto do partido comunista, Engels, ressaltando que o próprio manifesto indica que as medidas políticas variam de acordo com as condições objetivas dadas em cada nação, descreve que embora “as condições muito se tenham alterado nos últimos vinte e cinco anos, os princípios gerais desenvolvidos neste Manifesto conservam, grosso modo, ainda hoje a sua plena correção. Aqui e além seria de melhorar um pormenor ou outro”. No entanto, o revolucionário faz questão de lembrar, citando uma passagem de Guerra Civil na França, que a comuna de paris apresentou importantes avanços na compreensão da revolução social:

[…] o proletariado não pode, como o fizeram as classes dominantes […] simplesmente se apossar desse corpo estatal existente e empregar esse aparato pronto para seu próprio objetivo. A primeira condição para a manutenção do poder político é transformar [a] maquinaria estatal e destruí-la — um instrumento de domínio de classe […] a classe operária não pode simplesmente se apossar da maquinaria estatal tal como ela se apresenta e dela servir-se para seus próprios objetivos. O instrumento político de sua escravização não pode servir como o instrumento político de sua emancipação.

Karl Marx, Guerra civil na França (grifo meu)

Há um longo histórico de intervenções políticas da classe trabalhadora que não foram adiante ou acabaram apenas servindo de interregno para algumas poucas melhorias temporárias — Marx diz que estas revoluções estagnadas “recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus
próprios objetivos”. De fato, não são poucas as revoluções que se contentaram com o aparelho estatal como ele é. Porém o aparelho de estado e o direito burguês reforçam constantemente a manutenção das relações capitalistas.

Como o próprio Marx informa em Crítica do programa de Gotha “O Partido Operário Alemão […] mostra que as ideias socialistas não penetraram nem sequer a camada mais superficial de sua pele, quando considera o Estado um ser autônomo, dotado de seus próprios ‘fundamentos espirituais morais, livres’, em vez de afirmar a sociedade existente (e isso vale para qualquer sociedade futura) como base do Estado existente”. Em outras palavras, a base do estado capitalista é a própria sociedade capitalista. Uma vez que o “Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado” durante a transformação revolucionária da sociedade capitalista em sociedade comunista; e uma vez que a “ liberdade consiste em converter o Estado, de órgão que subordina a sociedade em órgão totalmente subordinado a ela”: a ditadura proletária e sua transformação revolucionária envolve necessariamente a destruição progressiva do estado pela própria massa proletária constituída em partido. Como coloca Balibar:

[…] a ditadura do proletariado, em relação ao aparelho de Estado [deve ser entendida] ao mesmo tempo como a constituição dum novo aparelho de Estado, e como o começo imediato do longo processo do desaparecimento ou da extinção de todo o aparelho de Estado. Este segundo aspecto […] comanda o precedente.

Ethienne Balibar, Sobre a Ditadura do proletariado

Nas revoluções pregressas, a máquina estatal era mantida e aprimorada para concentrar cada vez maior poder de repressão sobre as classes subalternas — que representavam, nestas circunstâncias históricas, intermináveis massas de seres humanos. A revolução, até então, foi a história continuada da disputa pelo poder repressivo organizado da sociedade contra as massas trabalhadoras. Em carta endereçada a Kugelmann, ativista membro da Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx revela o passo fundamental dado pela comuna que ajudaria a realizar a crítica aos resquícios de ilusão da apropriação estatal presente no manifesto do partido comunista.

Se você olhar o último capítulo de meu O 18 Brumário verá que digo que a próxima tentativa de revolução francesa não será mais, como antes, de transferir a máquina burocrática militar de uma mão para outra, e sim de esmagá-la, e isto é essencial para qualquer revolução popular no continente.

Karl Marx, Carta a Ludwig Kugelmann (12 de Abril de 1871)

Todas as revoluções somente aperfeiçoaram a máquina em vez de quebrá-la. Os partidos que lutaram alternadamente pelo poder consideraram a tomada de posse desse monstruoso edifício estatal como a parte do leão dos despojos do vencedor.

Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte

O estado se coloca como um desafio para o movimento operário por ser um território inimigo a ser ao mesmo tempo demolido e conquistado. O assim chamado estado proletário é a ruína social do estado burguês, quebrado pela violência revolucionária, e estará sempre a algumas reformas de assumir novamente o controle sobre os proletários. Também não basta assumir o controle destas ruínas e usá-la para a apropriação coletiva do produto social. A mera estatização — a mudança jurídica da propriedade — é também a um só tempo necessária e insuficiente.

Os operários devem destruir tão rápido quanto possível a separação entre o poder político e as massas. A maquinaria repressiva do estado precisa ser ativamente suprimida. Para Marx “A força governamental de repressão e autoridade sobre a sociedade seria, assim, quebrada em seus órgãos meramente repressivos, e onde houvesse legítimas funções a preencher, estas não seriam exercidas por um corpo superior à sociedade, mas pelos próprios agentes responsáveis da sociedade”. Isto implica a conquista e manutenção do poder da maquinaria repressiva por parte das massas organizadas, a aniquilação do exército permanente, das polícias e da escola centralizada.

Se quisermos levar a sério a letra de Marx, teremos que nos curvar a suas palavras de ordem sobre a ditadura:

  1. período da transformação revolucionária;
  2. período político de transição;
  3. Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado;

Se quisermos levar a sério a letra de Marx, teremos que entender a ditadura como um processo de transformação social ao qual corresponde uma política transitória exercida por um estado também transitório. A transitoriedade desta política e deste Estado precisa estar associada a uma transformação constante das estruturas sociais.

Isto significa dizer que 1) a ditadura do proletariado não pode ser efetivada por instituições congeladas no tempo, mas sim por instituições dinâmicas e transitórias que acompanhem o humor, nível de consciência e necessidades das massas; 2) a ditadura do proletariado não pode ser efetivada por leis ou por normas previamente estabelecidas e sim pela constante mobilização das massas junto a seu partido, ao lado de seu partido e até mesmo contra seu partido; 3) O estado deve estar em constante processo de definhamento — ainda que em velocidades diferentes a cada etapa do processo — , sendo convertido “de órgão que subordina a sociedade em órgão totalmente subordinado a ela”.

As alianças da ditadura revolucionária

Em 1852, em carta a Joseph Weydemeyer, Marx discorre com mais detalhes pela primeira vez sobre este período de transformação usando o termo ditadura do proletariado. Ele procura deixar claro que a luta de classes conduz de forma necessária à inversão da supremacia de classes na sociedade capitalista, pelas tendências postas em seu próprio movimento historico-social. Até então, o termo ditadura era usado com sentido de medidas de exceção aplicadas por governos em períodos de crise ou em processos de revolução democrática burguesa, não tendo ainda, à época, adquirido abrangência de significados pejorativos que possui hoje.

As classes, porém, não são uma descoberta que Marx julga ter feito. O mesmo diz claramente que não possui “o mérito de ter descoberto nem a existência das classes na sociedade moderna nem a luta travada entre estas”. O mouro insiste que a intelectualidade burguesa já havia a muito “apresentado o desenvolvimento histórico dessa luta de classes e os economistas burgueses, a anatomia econômica das classes”.

Marx se refere a luta de classes como possuindo uma anatomia econômica. Ele vê esta luta se desenvolvendo no interior da sociedade burguesa, no entanto, não é uma luta que paira no ar nem na mera vontade política, se desenvolve a partir de uma base real e concreta: a exploração da força de trabalho. Em verdade, esta luta é definida por Ricardo (a quem Marx se refere) como tendo base na divisão classista dos rendimentos da moderna sociedade burguesa, ou seja, na distribuição do mais-valor que advém do interior da esfera produtiva:

O produto da terra — tudo que se obtém de sua superfície pela aplicação combinada de trabalho, maquinaria e capital — se divide entre três classes da sociedade, a saber: o proprietário da terra, o dono do capital necessário para seu cultivo e os trabalhadores cujos esforços são empregados no seu cultivo.
Em diferentes estágios da sociedade, no entanto, as proporções do produto total da terra destinadas a cada uma dessas classes, sob os nomes de renda, lucro e salário, serão essencialmente diferentes, o que dependerá principalmente da fertilidade do solo, da acumulação de capital e de população, e da habilidade, da engenhosidade e dos instrumentos empregados na agricultura. Determinar as leis que regulam essa distribuição é a principal questão da Economia Política.

David Ricardo, Princípios de Economia Política e Tributação

Ricardo — chamado por Marx de “o representante mais clássico da burguesia e o adversário mais estóico do proletariado” — identifica as lutas de classes à sua maneira burguesa. Nota que elas se referem à disputa dos rendimentos, à distribuição do valor social. No entanto, a definição de valor trabalho de ricardo entra em conflito com a determinação dos valores em termos de distribuição dos rendimentos. Ricardo, no entanto, centra-se na magnitude do valor. Este tratamento unilateral — sua forma de negar a contradição presente no próprio objeto de estudo, negação tão necessária às suas conclusões burguesas — , faz com que ele possa naturalizar o valor e desprezar sua natureza contraditória. Consequentemente, a propriedade — em suas diversas formas: propriedade da terra, propriedade do capital e propriedade de si mesmo enquanto força de trabalho — aparece como forma geral que une todos os indivíduos no mercado. O fato de que uns detém capital e terra enquanto outros possuem apenas a si mesmos é desprezado nesta abstração dos sujeitos sociais de direito.

Lenin também compreendia que a mera admissão da luta de classes não era suficiente para saber se alguém era marxista. O revolucionário russo ironizava: “Limitar o marxismo à doutrina da luta de classes significa truncar o marxismo, deturpá-lo, reduzí-lo ao que é aceitável para a burguesia. Só é marxista aquele que alarga o reconhecimento da luta de classes até ao reconhecimento da ditadura do proletariado”. E Marx foi além do reconhecimento da luta de classes, compreendeu cientificamente que tal conflito aponta para uma resolução histórica: a ditadura revolucionária do proletariado. Marx descreve a descoberta feita por ele em três passos:

O que fiz de novo foi :

1. demonstrar que a existência das classes está vinculada meramente a determinadas fases históricas de desenvolvimento da produção ;

2. que a luta de classes conduz necessariamente à Ditadura do Proletariado ;

3. que essa Ditadura mesma constitui apenas a transição rumo à abolição de todas as classes e a uma sociedade sem classes.

Pessoas […] que negam não apenas a luta, senão até mesmo a existência das classes — demonstram apenas que, apesar de todos os gritos sanguinários e falsamente humanistas que promovem, consideram as condições sociais, nas quais a burguesia é dominante, como o último produto, o non plus ultra [ponto mais alto] da história e que são apenas servos da burguesia, uma servidão tanto mais repugnante quanto menos esses desavergonhados são capazes de compreender o caráter da magnitude e a necessidade passageira do próprio regime burguês.

Karl Marx, Carta a Joseph Weydemeyer (05/03/1852)

Como de costume, as palavras de Marx aqui colocam abaixo séculos inteiros de ideologia burguesa. Por isto devemos apreciar com calma suas conclusões.

Marx não se arroga descobridor de nenhuma lei eterna da realidade, tampouco da história. Também não se coloca como descobridor de nada original. Reduz seu papel ao de alguém que aponta a historicidade de tais categorias previamente existentes. Ele se coloca como aquele que percebeu que as classes, e portanto as lutas travadas entre elas, tem prazo de validade. E que este prazo de validade pode ser deduzido internamente, analisando as próprias categorias da luta. A partir de seu automovimento a ditadura torna-se uma tendência necessária das lutas de classes, a única resolução para o conflito. E nesta simplicidade reside toda genialidade de Marx. Ele não precisa reivindicar mais que isto para justificar sua própria entrada na história destas lutas.

Como sabemos, o ponto mais alto da história destas lutas se encontra nas relações de produção capitalistas, na produção e distribuição do produto social, como diria Marx é na “relação direta entre os proprietários das condições de produção e os produtores diretos […] que encontramos o segredo mais profundo, a base oculta de todo o arcabouço social” assim como de suas correspondentes “formas políticas”.

Assim, a fonte da luta de classes começa na separação essencial entre a massa que não possui nada a não ser a si mesma para vender e os proprietários privados dos meios de produção. Por proletariado, segundo Marx, devemos “entender, do ponto de vista econômico, apenas o assalariado que produz e valoriza ‘capital’ e é posto na rua assim que se torna supérfluo para as necessidades de valorização do Monsieur Capital”. Para ele “O selvático é proprietário da selva e a trata com tanta naturalidade quanto o orangotango, isto é, como propriedade sua. Ele não é, portanto, um proletário. Esse só seria o caso se fosse a selva que o explorasse, e não o contrário”.

As lutas de classes, no entanto, ganham feições das mais variadas possíveis na distribuição do excedente e nas lutas políticas do cotidiano — elas sempre são mediadas e nunca percebidas diretamente pelos agentes da produção. Estas formas determinam as formas concretas das lutas e as subclasses, a posição concreta na qual as classes se encontram no todo social. Concluímos que a ditadura do proletariado é a ditadura da massa contra o capital, mas também passa por formas concretas de funcionamento onde diversas classes (ou subclasses) aparecem ao lado do proletariado, nem sempre apoiando sua iniciativa.

A ditadura do proletariado, no entanto, é a ditadura em favor da massa dos oprimidos. Ou a ditadura é isto ou não é nada. Sua vitória, a vitória do proletariado, exige a libertação da ampla humanidade. Nas palavras do próprio marx: “a emancipação da classe produtiva é aquela de todos os humanos sem distinção de sexo ou raça”. A ditadura proletária portanto, por sua própria natureza, exige a aliança entre as mais diversas classes oprimidas em favor da emancipação da humanidade do jugo do capital.

Alguns marxistas não gostam da terminologia “maioria” para dizer a quem a ditadura do proletariado deve servir. A razão de ser desta desconfiança reside no fato de experiências passadas terem exigido a consideração das amplas massas camponesas que muitas vezes constituíram maiorias não incorporadas diretamente no processo revolucionário, muitas vezes com interesses até mesmo contrapostos à revolução. Neste sentido, de fato o termo “maioria” poderia indicar uma análise limitada sobre o processo. Entretanto, no atual grau de desenvolvimento do capitalismo mundial, a acumulação chegou a tal ponto que o proletariado passa a constituir de fato a maioria esmagadora da humanidade, ainda que não sejam todos incorporados ao proletariado industrial devido à configuração moderna da divisão do trabalho. Como Marx afirma em O Capital: “Acumulação do capital é […] multiplicação do proletariado”. A medida em que o capital avança, contrapõe a si toda a humanidade. Nesta toada, a ditadura do proletariado se torna cada vez mais o interesse das maiorias, ainda que as massas permaneçam presas ao discurso ideológico do empreendedorismo e da identidade de vendedores e compradores abstratos.

Apesar do conflito no interior da produção capitalista, contrapondo o proletariado ao capital, fornecer o solo real que impulsiona as diversas manifestações concretas das lutas sociais, jamais podemos tratar as lutas concretas como meros epifenômenos da produção. Tal tratamento incorreria em um determinismo social. O que Marx considera é a totalidade, portanto a articulação da produção e da circulação como fenômeno específico e total. Assim, devemos notar que é impossível, dentro das cercanias da teoria marxista, separar mecanicamente o proletariado constituído em partido, o proletariado como força de trabalho diante do capital e as demais subdivisões em classes. Qualquer separação nos dará uma análise unilateral da luta de classes e, portanto, uma falsificação da teoria marxista.

Segue-se portanto que a classe proletária se constitui necessariamente em partido político como expressão da determinação relativa da exploração da força de trabalho. As amplas massas oprimidas ao lado do proletariado devem ser acolhidas em aliança no processo de transformação revolucionária da sociedade. Engels escreve em O problema camponês na França e Alemanha que:

[…] quando estivermos de posse do poder do Estado, não poderemos pensar em expropriar pela força os pequenos camponeses (tanto faz se com ou sem indenização), como seremos obrigados a fazer com os grandes possuidores fundiários. A nossa tarefa face ao pequeno camponês consiste, antes do mais, em fazer transitar a sua exploração privada e a sua posse privada para uma [exploração e posse] cooperativas, não pela força, mas através do exemplo e da oferta de ajuda social para esse objetivo. […] Se os camponeses virem a inevitabilidade da decadência do seu modo de produção atual e tirarem daí as necessárias consequências, virão até nós e será nossa função facilitar-lhes, na medida das nossas forças, a transição para o modo de produção transformado.

Friedrich Engels, O problema camponês na França e Alemanha

Quanto à pequena burguesia permanece sempre a ambiguidade. A pequena burguesia não é necessariamente reacionária, no entanto também não embarca com facilidade na revolução a menos que esteja prestes a ser socialmente rebaixada à condição proletária. Para Lenin “O pequeno burguês encontra-se numa situação econômica tal […] que ele não pode deixar de se enganar, ele pende involuntária e inevitavelmente ora para a burguesia ora para o proletariado”. O pequeno burguês vive na vacilação de interesses e laços com a burguesia. Ainda segundo Lenin o pequeno burguês é incapaz de uma linha verdadeiramente independente, pois o “seu passado arrasta-o para a burguesia, o seu futuro para o proletariado”.

Cada revolução concreta dirá em que medida é possível obter o apoio da pequena burguesia, porém a tentativa de arrastar todas estas classes “intermediárias” é necessária para evitar o isolamento dos proletários e possíveis traumas sociais difíceis de recuperar no processo revolucionário. De qualquer forma, a tendência geral do grande capital é expropriar os pequenos proprietários, principalmente em momentos de crise onde a lucratividade pode sofrer sérias baixas e as investidas da centralização dos capitais se tornam ainda mais avassaladoras.

Um horizonte possível para o tratamento da pequena burguesia, dependendo das condições concretas em que o proletariado chegar ao poder político, é proceder com uma transição voltada para a pequena burguesia, indenizando, num primeiro momento, lojistas e pequenos proprietários para que possam transitar para o novo modo de produção. Marx chega a propor que um eventual governo proletário deveria “tomar medidas através das quais o camponês encontre sua condição imediatamente melhorada, de modo a conquistá-lo para a revolução”. Assim, abre-se a possibilidade de fazer com que a pequena burguesia chegue naturalmente às conclusões proletárias de acordo com o desenvolvimento da revolução. Engels também salienta que

Assim que o nosso Partido estiver de posse do poder do Estado terá simplesmente que expropriar os grandes possuidores fundiários, inteiramente como os fabricantes industriais. Se essa expropriação sucederá com ou sem indenização, não dependerá em grande parte de nós, mas das circunstâncias em que chegarmos à posse do poder e, nomeadamente, também da postura dos senhores grandes possuidores fundiários. De modo nenhum vemos em todas as circunstâncias uma indenização como inadmissível; Marx exprimiu-me — e quantas vezes! — como sendo o parecer dele que nós nos safaríamos da maneira mais barata possível se pudéssemos comprar esse bando todo.

Friedrich Engels, O problema camponês na França e Alemanha

Autogoverno e centralização

Considerando-se que a sociedade burguesa possui uma organização centralizada, potente para nos oprimir, como poderíamos avançar um só passo em direção a nossa emancipação mediante a descentralização, divisão, isolamento e desorganização?

F. Adolph Sorge, A luta contra a sociedade burguesa

é um fato histórico imenso que essa negação do Estado tenha se manifestado justamente na França, que foi até agora o país por excelência da centralização política, e que seja precisamente Paris […] que tenha tomado essa iniciativa.

Mikhail Bakunin

O estado moderno possui a forma social mais adequada ao capital, isto é, à autovalorização do valor. Ele se ergue aparentemente como uma máquina sem ligação nenhuma com o mundo econômico — este se encontra completamente separado daquele. A centralização política contrasta com a pluralidade dos capitais que buscam descentralizadamente abocanhar fatias na distribuição do mais-valor e alimentar esta imensa máquina que supostamente mantém a estabilidade para os negócios. Em verdade, tudo que a contraparte pública da sociedade moderna faz é em benefício de sua contraparte privada, o estado serve ao capitalista e se encarrega de realizar a manutenção das condições básicas de concorrência para que os negócios continuem a fluir livremente. Os atritos eventuais entre os capitalistas e o estado se dão entre as frações de capitalistas que disputam pelo seu próprio negócio, mas em conjunto, a classe capitalista precisa do estado, pois apenas ele pode garantir a propriedade, a troca, a circulação e padrões monetários, os direitos, os contratos, em suma, todas as garantias que o capital como forma econômica precisa para continuar sua reprodução.

A comuna foi a primeira tentativa de desmontagem desta maquinaria estatal. Os comunardos instauraram durante dois meses um autogoverno baseado na supressão do funcionalismo e no controle direto da administração via sufrágio universal, convertendo o governo em mero orgão de trabalho que concentrava os poderes executivo e legislativo para quebrar a mistificação estatal. Os trabalhadores que participaram da comuna eram pessoas comuns, ligados à classe operária. Eles iniciaram o processo de tornar simples e transparente a administração da coisa pública, fazendo com o salário de operários o que os cargos políticos de indicação faziam por quantias obscenas.

O desmonte da maquinaria estatal se dá pelo fato de demolir o monstro burocrático e garantir “a reabsorção, pela sociedade, pelas próprias massas populares, do poder estatal como suas próprias forças vitais em vez de forças que a controlam e subjugam”. O desmonte da face burocrático-militar ficava por conta do povo em armas assumindo o controle e abolindo o exército permanente juntamente com a polícia. Estas medidas ajudaram a dar o impulso inicial para o apagamento social da separação entre a vida pública e a vida privada, entre a política e a economia, entre os meios de produção e os trabalhadores diretos, esta separação histórica entre capital e trabalho.

Marx narra ao mesmo tempo “uma revolução contra o Estado mesmo, este aborto sobrenatural da sociedade” que conduz a luta dos proletários e acaba “substituindo a maquinaria estatal, a maquinaria governamental das classes dominantes, por uma maquinaria estatal própria [dos operários]”, uma forma política fluída e marcada pela capacidade de reagir rapidamente à vontade popular, garantida via sufrágio universal, o qual Marx defenderia mais tarde em um programa político como um “instrumento de fraude” capaz de ser transformado em “instrumento de emancipação”. Para Marx, as querelas em torno da comuna estão relacionadas com sua poderosa capacidade adaptativa, sempre encontrando formas de conduzir a política proletária reagindo às necessidades práticas que se apresentam.

a multiplicidade de interpretações a que tem sido submetida a Comuna e a multiplicidade de interesses que a interpretam em seu benefício próprio demonstram que ela era uma forma política completamente flexível, ao passo que todas as formas anteriores de governo haviam sido fundamentalmente repressivas. Eis o verdadeiro segredo da Comuna: era essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para se levar a efeito a emancipação econômica do trabalho.

Karl Marx, Guerra civil na França (grifo meu)

O caráter repressivo contrário às massas é quebrado justamente pelo controle assumido pelas próprias massas, “uma reassunção, pelo povo e
para o povo, de sua própria vida social” que objetivava “destruir essa horrenda maquinaria da dominação”. Ao mesmo tempo, tratava-se de centralizar “funções estatais” que seriam “reduzidas a algumas poucas funções para fins nacionais gerais” e buscar unidade nacional dos “produtores do campo sob a direção intelectual das cidades centrais de seus distritos”.

A comuna também demonstrou a necessidade da coordenação das unidades produtivas, articulando as cooperativas de forma centralizada para realizar a planificação, “transformando os meios de produção, [a] terra e o capital, de atual meio de submissão e de exploração do trabalho, em simples instrumentos do trabalho livre e associado”. Todo poder social antes sugado para fora dos trabalhadores para agir contra eles próprios, agora começava a retornar a seu controle coletivo.

Esta tensão entre o autogoverno e a centralização permanece constante na experiência dos franceses. A comuna possuía como suas lideranças revolucionários de orientações táticas, estratégicas e teóricas muito variadas. Os comunardos que se concentraram na realização das tarefas políticas foram principalmente os blanquistas, enquanto que os proudhonianos e demais membros da AIT mantiveram-se focados nas tarefas econômicas. Engels captou bem a ironia da história ao descrever a atuação dos mutualistas proudhonianos que tiveram de trair seu mestre para resolver os problemas na prática:

A Comuna merece máximo louvor porque, em todas as medidas econômicas que tomou, sua ‘força motriz’ não foram princípios quaisquer, mas a simples necessidade prática. Foi por isso que essas medidas […] não corresponderam nem um pouco ao espírito de Proudhon, mas certamente ao do socialismo científico alemão.

Friedrich Engels, Sobre a questão da moradia

Por outro lado, as medidas econômicas esbarraram em um entrave fatal: poupar o Banco da França do confisco para custear as necessidades imediatas com serviços essenciais e impedir o envio de recursos para o governo de Versalhes — que iria reequipar seu exército para a contrarrevolução. O erro pode ser expresso em números: enquanto a comuna recebeu 16,5 milhões de francos para custear o básico para sua população, o Banco da França enviava escondido 258 milhões de francos para Versalhes. Este erro custaria a revolução.

As tarefas empreendidas pelos blanquistas também não estavam melhor. A concentração da ditadura nas mãos de um pequeno grupo de agentes — como queriam os blanquistas — não seria possível devido à popularidade da ação antiestatal da comuna. Embora uma ditadura exercida por um pequeno grupo fosse ruim, o que se sucedeu foi igualmente insuficiente: A guarda nacional e o conselho governamental não possuíam clareza sobre as hierarquias nem conseguiam unidade para as tarefas de modo que as propostas políticas ficavam atravancadas, desarticuladas e entregues muitas vezes a agentes políticos autônomos nos quais não se tinha plena confiança e que não estavam diretamente sob supervisão da comuna.

Contra as forças relativamente majoritárias de Versalhes, reconstituídas e com 130 mil homens, a Comuna pôde reunir apenas cerca de 20 mil combatentes, se tanto. Isso se tornava cada vez mais desproporcional, apesar da resoluta coragem de tantos parisienses. O Comitê de Segurança Pública se reuniu no Hôtel de Ville, em meio ao caos da chegada de mensageiros trazendo notícias cada vez piores. Ordens conflitantes, por exemplo, vindas do delegado para guerra da Comuna, do Comitê Central da Guarda Nacional e de oficiais individualmente, refletiam a ausência de uma liderança militar efetiva. Sobretudo, refletiam a virtual impossibilidade de centralizar a autoridade sobre o planejamento da defesa de Paris e, em particular, sobre a Guarda Nacional, da qual a Comuna dependia para sua sobrevivência.

John Merriman, A Comuna de Paris

César de Paepe, um dos mais importantes membros da AIT e bastante estimado por Marx, colocou o dilema da centralização versus autogoverno da seguinte forma:

Descentralização política e centralização econômica: tal é, ao que nos parece, a situação a que conduz esse novo entendimento do duplo papel da comuna e do Estado, um entendimento baseado no exame dos serviços públicos que recaem logicamente sobre os poderes de cada um desses órgãos da vida coletiva.

César de Paepe, Sobre a organização dos serviços públicos na sociedade
futura

O problema desta visão é que trata o período pós-revolucionário como uma continuidade do “espectro estatal em sua separação da sociedade”. A separação entre política e economia permanece. Porém, a revolução precisa justamente por abaixo esta muralha histórica. Paepe pensa ser possível um estado ativo e desarmado para a realização de grandes obras econômicas em meio a comunas armadas e autogovernadas para assuntos locais. No entanto ele não explica como se faz a unidade destas comunas armadas. Tampouco ficamos sabendo como o estado poderia realizar as tais obras grandiosas sem esta unidade.

A centralização absoluta do estado e do partido seria a saída? Um fato inescapável sobre a ditadura revolucionária, conforme exposto por Lenin, é que a “ditadura aplica-se a um poder que nada limita, que nenhuma lei, nenhuma regra absolutamente refreia e que assenta diretamente na violência”. Como Marx coloca em O Capital, a violência é ela mesma “uma potência econômica”. E esta violência é exercida através da conquista do poder político pelo proletariado. Em verdade, a conquista do poder político é um eufemismo para a conquista do poder absoluto. A ditadura está acima da política, é o poder ilimitado que regula a dinâmica da luta de classes, é uma dominação sobre todos os aspectos da sociedade e justamente por isso é fruto de uma responsabilidade muito grande. Lenin lembra que estamos acostumados a reduzir este tipo de poder a ditaduras policiais, de modo que parece “estranho que possa haver um poder sem polícia, que possa haver uma ditadura não policial”. A ditadura é, pois, o poder de esmagar as classes dominadas. E a ditadura proletária é o poder de esmagar as classes possidentes de capital. Nesta perspectiva, o poder da ditadura não pode ser dividido nem diluído, exigindo, portanto, alguma forma de centralização.

O que Lenin procurou fazer foi conjugar o poder de estado mantido por uma vanguarda de proletários com a entrega de poder e controle político de frações da administração pública para organizações de massa. Estas organizações participavam da ditadura por um sistema de mediações que tinha como centro o partido, embora mantivessem a separação entre partido e massas. O problema que ele estava tentando resolver é um problema objetivo da ditadura: como fazer com que este poder possa ser exercido pelo conjunto do proletariado? Este modelo ficou conhecido como sistema da ditadura do proletariado.

Este sistema envolvia a organização hierárquica do poder das camadas proletárias: O partido acima de tudo, o poder de estado abaixo do partido. Entre o partido (que materializa o poder proletário) e o estado (que materializa o poder repressivo) Lenin situa os sindicatos. Os sindicatos seriam uma “reserva de forças” do poder do Estado. Estes sindicatos, por sua vez, deveriam estabelecer a ligação partido-massas, agindo como “complicadas correias de transmissão do trabalho”, no entanto isto nunca ocorreu adequadamente — o partido nunca efetivamente se ligou às massas através dos sindicatos da forma como Lenin planejava.

Em Marx, não temos complicadas correias de transmissão do trabalho, mas sim “Elimina-se a hierarquia estatal de cima a baixo e substituem-se os arrogantes senhores do povo”. Para ele era uma questão de desmascarar a “ilusão de que a administração e o governo político seriam mistérios, funções transcendentes a serem confiadas apenas a uma casta de iniciados” pondo abaixo a “fraude dos mistérios e pretensões do Estado” que na verdade poderia ser substituído pela ação “em sua maior parte de simples trabalhadores”. Lenin, diante de um projeto mais complicado do que o que Marx vira em seu tempo, entende de maneira inversa a questão: é preciso manter a separação do trabalho intelectual e manual através de hierarquias e preparar as “reservas de forças” nos sindicatos para o exercício do poder.

Tamás Krausz aponta assim as tensões entre o partido e o restante dos trabalhadores em relação aos conflitos entre o autogoverno e a centralização:

uma contradição irresolúvel emergiu o mais cedo possível, e ele [Lenin] inicialmente não reagiu a ela. Enquanto a democracia direta de O Estado e a revolução se expressava em documentos do partido, um segmento significativo dos trabalhadores sentia-se vitimado pela centralização do poder à medida que as condições do dia a dia se deterioravam e as organizações locais e autônomas eram enfraquecidas pela administração central. Mesmo assim, eles consideravam os sovietes dos operários e dos camponeses suas próprias organizações, desde o início, e não os tomaram como “farsa da classe alta” […] Lênin pensou que seria possível atender a dois mestres de uma só vez: o autogoverno dos sovietes e as tendências de centralização mostradas pelos poderes centrais.

Tamáz Krauz, Reconstruindo Lenin

Esta contradição torna-se ainda mais dramática pelo fato de ser uma contradição real do processo de transição. O partido precisa se assegurar de que possui o poder absoluto a fim de centralizar as unidades produtivas e acoplá-las ao estado, destruindo assim a separação entre as massas e o poder político. Ao mesmo tempo, pelo fato de poderem exercer o poder apenas de forma mediada, as massas entram em conflito com o poder central que constantemente tenta podar sua iniciativa. Esta iniciativa, no entanto, pode fazer retroceder o avanço do poder proletário — o que explica a necessidade de vigilância por parte do partido em relação a estas iniciativas. Esta contradição chega em seu ponto culminante quando Lenin introduz a doutrina do diretor único de fábrica para disciplinamento da força de trabalho. Este movimento do grande revolucionário russo entra em contradição direta com diversos de seus textos anteriores (Letters from Afar e O Estado e a revolução sendo os maiores exemplos), aprofundando a contradição entre uma ampla democracia política de massas e um sistema ditatorial no processo de trabalho, dividindo novamente o mundo social nas fatias da economia e da política, ampliando a separação entre trabalho manual e intelectual e aplicando acriticamente o taylorismo como uma ferramenta favorável ao socialismo.

Esta medida vem na esteira das contradições do próprio processo revolucionário russo que acabaria isolado. Mészáros coloca esta contradição nos seguintes termos:

se a produção em larga escala é sem dúvida um pré-requisito material necessário para o sucesso do desenvolvimento socialista, certamente não é “a garantia da vitória do comunismo”. Os limites objetivos da situação histórica dada forçaram até mesmo Lenin a buscar garantias muito problemáticas. Ora, nem mesmo ele podia imaginar a possibilidade de uma contradição objetiva entre a ditadura do proletariado e o próprio proletariado. Assim, em algumas questões vitais, concernentes ao exercício do poder de Estado e sua relação com o proletariado, ele alterou radicalmente sua posição após a Revolução de Outubro, com consequências de longo prazo para a classe trabalhadora. Em contraste com as intenções pré-revolucionárias que afirmavam a identidade fundamental do “povo todo em armas” com o poder do Estado, apareceu nos escritos de Lenin uma separação entre o poder do Estado e o “povo trabalhador”, na qual o “poder do Estado” organiza em nível nacional a produção em larga escala nas terras e nas empresas do Estado, distribui a força de trabalho entre os vários ramos da economia e as várias empresas, e distribui entre o povo trabalhador grandes quantidades de artigos de consumo pertencentes ao Estado. O fato de que a distribuição da força de trabalho fosse uma relação de subordinação estrutural não parecia preocupar Lenin, que tangenciou o assunto ao descrever simplesmente a nova forma de poder estatal separado como “o poder estatal proletário”. Assim, a própria contradição objetiva da ditadura do proletariado desapareceu do horizonte no exato momento em que emergiu como poder de Estado centralizado que determina sozinho a distribuição da força de trabalho. No nível mais genérico das relações de classe — correspondente à oposição polar entre o proletariado e a burguesia –, a contradição parecia não existir. O novo Estado tinha que assegurar sua própria base material e a distribuição centralizada da força de trabalho parecia ser o único princípio viável para atingir esse objetivo. Na realidade, contudo, era o próprio “povo trabalhador”, como força de trabalho, que precisava ser reduzido e distribuído: não apenas por imensas distâncias geográficas — com todas as inevitáveis revoltas e deslocamentos envolvidos em tais sistemas de distribuição impostos de forma centralizada –, mas também “verticalmente” em toda e cada localidade, segundo os ditames materiais das estruturas de produção herdadas, e dos ditames políticos inerentes ao princípio e aos órgãos de regulação recém-instituídos.

István Mészáros, Para além do capital

Mais tarde, Lenin iria associar as tarefas de desenvolvimento do socialismo ao avanço da cooperação produtiva, alegando que deveria-se deslocar o centro de gravidade da “luta política” para “o trabalho pacífico de organização ‘cultural’”. Com o isolamento, esta sua associação e diversos outros discursos seriam usados de forma modificada justamente para justificar a estratégia estabilizadora do socialismo em um único país. Esta estratégia vem para acalmar uma geração traumatizada pela guerra civil, apresenta-se como uma oportunidade de estabilização da sociedade russa.

Já em 1919, no Relatório sobre o programa do partido, Lenin relatava que “”Os burocratas tsaristas começaram a passar para as instituições soviéticas”. Até o final de 1923 esta burocracia preservada na administração que era remanescente do período absolutista feudal, em conjunto com a burocracia operária nascente nos quadros recém chegados ao partido, acaba por absorver o estado operário num enquadramento que reproduziria a partir de então um estado que Lenin chegou a chamar de “úlcera burocrática” e “imbróglio burguês e tsarista”.

Em que pese a experiência soviética tenha tido uma existência produtiva inestimável para a história das lutas socialistas, Luxemburgo estava correta ao afirmar que não devemos fazer da necessidade uma virtude e ”recomendar ao proletariado internacional imitá-la como modelo da tática socialista”, em suma, fetichizar a experiência soviética. O sistema da ditadura do proletariado idealizado por Lenin precisa de ajustes que envolvem a quebra de sua rigidez hierárquica. Os proletários precisam de um estado tal que possa reduzir permanentemente e o mais rapidamente possível a distância entre o poder político e as massas trabalhadoras. O preço de não fazer isto é ver o estado se separar definitivamente delas como um poder autônomo.

Neste sentido, Mészáros coloca nos seguintes termos o seu parecer sobre como deve se parecer o sistema da ditadura do proletariado para superar o capital:

permanece aguda a necessidade de se instituir uma forma de Estado transicional capaz não apenas de enfrentar e superar o poder do capital, mas também de progressivamente “fenecer” no momento devido, paralelamente à transferência das funções estatais tradicionais para o corpo social. Esta forma transicional de controle político não poderia, no mais agudo contraste com a tomada pós-revolucionária do poder, se converter em um órgão estatal separado, mais do que nunca fortalecido e centralizado, pelo qual o novo tipo de “personificação do capital” poderia se apropriar, para si próprio, das alavancas de controle das funções sociometabólicas e perpetuar a subordinação estrutural do trabalho aos imperativos reprodutivos do sistema do capital. […] A característica definidora essencial da forma política pós-revolucionária — para superar o poder do capital e cumprir seu papel na realização do socialismo — é sua orientação para o estabelecimento de um modo global de controle sociometabólico não conflituoso. Isto significa coordenar as “microestruturas” cooperativas ou células produtivas da sociedade em uma estrutura produtiva global, o que só será possível se a articulação institucional da forma política pós-revolucionária e as práticas sintonizadas com ela forem não hierárquicas. A estrutura de comando político geral incorrigivelmente hierárquica do capital se ergue do solo das determinações internas necessariamente conflituosas de seus constituintes reprodutivos, devido ao antagonismo estrutural entre capital e trabalho que o sistema político corporifica e consolida. […] a forma política da sociedade pós-revolucionária pode cumprir seu papel transicional previsto, e “fenecer” no momento adequado, apenas se for articulada a um domínio material não conflituoso, cooperativo, que se desenvolva simultaneamente. E, vice-versa, a “revolução cultural” sublinhada por Lenin tem por objetivo necessário não apenas a eliminação do analfabetismo e o desenvolvimento de habilidades práticas e produtivas na mais ampla base possível. Ao mesmo tempo, o objetivo estratégico fundamental da revolução cultural defendida é o estabelecimento de um novo “microcosmo” reprodutivo material — não conflituoso e positivamente cooperativo — que possa
harmoniosamente aderir à estrutura global da forma política pós-revolucionária não hierárquica e progressivamente se apossar das suas funções inevitavelmente separadas.

István Mészáros, Para além do capital

Mészáros faz um diagnóstico muito preciso do problema, mas me parece ter uma não solução quanto à questão do partido. Para Marx as próprias lutas econômicas tendem a possibilitar “A organização do proletariado […] em partido político”, ainda que hajam contra-tendências que também acirrem as disputas entre os operários, afastando-os. A questão é que o poder absoluto e ilimitado da ditadura de classe, só pode ser tomado por uma organização ou partido. E a direção do processo ainda precisa ser “assegurada” de forma organizada e não entregue de imediato à sorte das multidões. Este dilema faz parte da contradição objetiva do processo de transição.

Entregar as coisas de imediato ao autogoverno dos produtores poderia fazer com que a ausência de unidade retornasse à anarquia da produção, restaurando o capitalismo. O que obriga que haja alguma forma de poder central que conjugue sua condução estratégica do processo com uma constante mobilização das massas e a incitação destas para que tomem controle da ditadura, aprendendo pela própria experiência da luta de classes, a conduzi-la. Esta forma de poder de estado precisa se submeter às massas e buscar meios de se livrar do poder absoluto que detém, destruindo a divisão do trabalho e a separação entre poder de estado e sociedade civil.

Se “A liberdade consiste em converter o Estado, de órgão que subordina a sociedade em órgão totalmente subordinado a ela”, só é possível ter uma “centralização nacional dos meios de produção […] composta por associações de produtores livres” subordinando o poder de estado a eles. Claro, as lutas de classes se agudizam a um nível jamais visto na transição, e precisamente por isto este estado precisa dar conta de proteger a classe trabalhadora contra a burguesia e transformar em unidade a fragmentação dos diversos setores oprimidos. Balibar comete um pequeno erro ao dizer que quando “Lênin define a DDP [ditadura do proletariado] como um período de novas lutas de classes” isto constitui uma “Inovação capital em relação a Marx”. Marx também compreendia a ditadura do proletariado como um período de lutas de classes. Para o revolucionário alemão a comuna “não elimina a luta de classes” mas “ela fornece o meio racional em que essa luta de classe pode percorrer suas diferentes fases da maneira mais racional e humana possível”. E estas novas formas da luta de classes só podem ser superadas pelo conjunto da classe trabalhadora em movimento, subordinando o estado para si.

Mészáros está correto quando afirma que se impõe “a necessidade, hoje, de uma teoria com­preensiva da transição”. Nos tempos de Marx e Lenin, tais problemas ainda eram apenas uma abstração vaga, mas para nós se revelaram de forma que não podem mais ser ignorados. Há a necessidade de desenvolver abordagens dos problemas objetivos da transição. Não apenas a proposição de um programa concreto como o programa de transição de Trotsky, mas a necessidade de se pensar a transição a partir do problema do sistema da ditadura do proletariado, uma solução para o difícil jogo da política proletária ligada às amplas massas e não autonomizada na burocracia partidária.

O problema objetivo da transição, no entanto, só poderá ser realmente resolvido na prática. É principalmente um problema para as multidões diante do capital. Como diria Mariátegui: “Aos filósofos caberá, mais tarde, codificar o pensamento que brote da grande gesta multitudinária. Acaso souberam os filósofos da decadência romana compreender a linguagem do cristianismo? A filosofia da decadência burguesa não pode ter melhor destino”.

Fetichização da ditadura proletária

Não restam dúvidas de que a comuna de paris foi a primeira ditadura proletária. Engels não hesitou ao escrever “Olhai para a Comuna de Paris. Tal foi a ditadura do proletariado”. E Marx disse que “sobre isso não pode haver dúvidas: a Comuna é a conquista do poder político pelas classes trabalhadoras”. Ao mesmo tempo, a comuna é apenas a resposta prática do proletariado a uma situação específica da história, tornando-se assim uma resposta para problemas históricos definidos e, apesar de conter a “forma política enfim encontrada para levar a cabo a emancipação do trabalho”, não devemos tomar a comuna ahistoricamente como resposta pronta para nossos problemas. Se ela é convertida em forma geral da ditadura do proletariado, operamos mentalmente a partir de um mundo que não é o nosso, mas puramente especulativo, caímos assim numa fetichização do processo.

A explicação acima é aceita com facilidade, porém, para ter coerência, é preciso ir além. Também não podemos fetichizar o processo revolucionário russo, tornando dele mais que um fundamental ensinamento histórico. A revolução russa igualmente apresenta uma aplicação prática da ditadura proletária — fortemente inspirada na comuna de paris bem como orientada sobre seus limites — que não pode ser universalizada por tratar sobretudo de problemas muitos concretos da Rússia do século XX. Devemos ouvir Marx quando ele diz que “A Revolução deve tirar poesia do futuro, não do passado”. Sobre isto José Chasin alertava que “A revolução não pode ser vista pelo retrovisor. Não é cultivando as cruzes do passado que a revolução poderá ser reposta no foco teórico do presente e no horizonte prático do futuro”.

O movimento operário deve sobretudo saber que sua causa está fortemente assentada numa realidade material inescapável, um movimento social que precede cada um dos indivíduos que o compõem, mesmo os extraordinários como Marx e Lenin. É na áspera materialidade do presente articulada com nosso passado específico que se escondem as tendências que podem nos levar à nossa própria ditadura.

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