A crise de confiança requer uma ética da alteridade

ETC | UFMA
7 min readJun 6, 2022

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As crises emergem quando a confiança ruiu, quando os elementos que geram segurança não cumprem mais seu papel e as verdades não se firmam mais. A alteridade, essa ideia antiga e de penosa aplicação, pode revigorar a construção da confiança e ajudar a lidar com as crises.

Ramon Bezerra

Verhoeven Twins — Coleção: Vanitas of Life, Nova York

Como defendi em publicação anterior, há pelo menos "oito áreas de crise" e elas precisam ser pensadas conjuntamente. Neste texto, proponho que isso seja feito por meio da compreensão de todos aqueles domínios como uma crise única das formas de construção da confiança, essa espécie de cola que une e sustenta todas as relações. Não se trata de apagar as áreas das crises que foram sistematizadas ou de estudar outro fenômeno, mas de buscar uma compreensão para os oito domínios ao mesmo tempo por meio da ênfase naquilo que conecta e mantém as pessoas e coisas unidas, mas que perdeu sua força e permitiu antever as crises: a confiança.

Podemos entender a confiança como uma relação que surge entre nossa ideia de algo e a coisa em si ou como uma propensão para acreditarmos depois de considerar os possíveis perigos. Os dois entendimentos evidenciam a confiança como um laço. Esse vínculo é essencial na busca permanente do ser humano pela sensação de segurança e conforto. Quando essa ligadura afrouxa, o que acontece na ausência das verdades ou na fraqueza das ideias que orientam nossa existência, afloram as crises, como vimos aqui.

A confiança é uma relação sempre em construção. Essa instabilidade tem relação com a mudança permanente que caracteriza as existências no planeta. Estudar a confiança é analisar os processos de produção de sentido que moldam nossa existência. Seguindo e parafraseando Anthony Giddens, podemos dispor a construção da confiança em três tipos: pessoal, institucional e distribuída.

A primeira diz respeito às interações diretas que temos com as pessoas que julgamos conhecer, como acontece em bairros ou pequenas cidades. A institucional é característica dos agrupamentos urbanos quando se torna impossível conhecer todas as pessoas, mas somos obrigados a conviver com elas, e surgem instituições para executar determinadas funções e garantir a confiabilidade, como cartórios e bancos. Podemos até desconfiar e não querer ter nossas vidas regidas por esses sistemas, mas enquanto vivermos em sociedade não conseguiremos fazer isso por completo. A distribuída é característica das transações que ocorrem por meio das plataformas on-line, quando vamos reservar uma acomodação ou comprar um produto e consideramos as avaliações que as pessoas desconhecidas deixaram ali.

Essas três formas de construir a confiança coexistem e possuem modulações, mas esse assunto fica para outro momento. O importante, agora, é notar como a construção da confiança de forma institucional tem organizado a maior parte da nossa vida nos últimos séculos. Podemos até não acreditar nas instituições, mas não conseguimos sair completamente delas. A democracia liberal é um exemplo oportuno disso porque perpassa todas as áreas das crises sobre as quais falamos. Esse modo de funcionamento ruiu, mas ainda não temos outro para colocar no lugar. Dito de outra forma: essa maneira de gerir as relações entre as pessoas não desfruta mais da nossa confiança e não sabemos como voltar a acreditar nela ou se isso ainda é possível. Existiria um elemento faltante ou depauperado naquelas oito áreas de crise capaz de promover o liame que nos colocaria novamente no percurso de uma potencial sensação de segurança mínima? Minha aposta é que sim e esse elemento é a alteridade.

Se a confiança é uma relação, as crises emergem quando ela não tem mais sustentação, quando os elementos que geram segurança não cumprem mais seu papel e as verdades não se firmam mais. Acredito que a alteridade, esse conceito antigo e de dolorosa aplicação, pode favorecer a construção da confiança.

Alteridade é definida pelos dicionários como um estado, uma qualidade ou uma característica daquilo que se forja a partir de relações de diferença. Trata-se de uma premissa para a nossa existência em sociedade. Precisamos compreender que o eu só existe a partir do outro. Nossa existência no mundo pressupõe não apenas um, mas dois outros seres humanos e cada vez mais coisas também. Afinal, viver neste planeta implica transformá-lo, o que vai da descoberta do fogo aos elementos químicos que permitiram a criação de incontáveis objetos e funções, passando pelas vacinas e medicamentos que criamos para que nosso corpo suporte o que fazemos com ele. Esse “outro” é bem amplo.

A alteridade funciona como esforço pessoal de aceitação e convívio com as diferenças. É deixar-se afetar pelo(s) outro(s). Permitir-se ouvir não apenas para pensar nos argumentos e rebater, mas para entender a lógica. Não é concordar, mas compreender. Exercitar a alteridade é se permitir conhecer e experimentar outros modos de vida. Estar disposto a encarar soluções fora das previstas e prontas. Alteridade quer dizer ao invés de enxergar o “eu” e o “outro” perceber o “nós”, o que nos vincula. Isso não significa nenhum apagamento das singularidades. Trata-se de reinventar a ideia de “nós” e essa não é uma ideia nova.

A cosmologia Nagô, por exemplo, ao contrário da episteme ocidental, deriva dessa noção de “nós” e entende que o ser só existe em grupo. É uma compreensão de indivisibilidade do ser, diferente da separação platônica entre os mundos das formas e das ideias, segundo a qual não existiria nenhum tipo de síntese.

Ailton Krenak é certeiro ao mostrar a necessidade e as potencialidades de se pensar numa perspectiva pautada na alteridade. Segundo ele, precisamos questionar a ideia de uma humanidade homogênea e pronta porque isso limita nossa capacidade de criação e liberdade. Devemos compreender que se todos compartilhamos o mesmo planeta ele deve abarcar as diferenças como um espaço no qual várias humanidades possam existir simultaneamente. As tentativas de uniformização não são de agora. Em todas as civilizações tentamos imprimir um modelo único de ser (entendido como melhor), isto é, de bolhas que rechaçam a diversidade. Fizemos isso com as civilizações indígenas, com os povos vindos da África e vários outros que foram arrastados para um modo de vida imposto e parece que nós reproduzimos isso em todos os âmbitos da nossa existência. A história já mostrou que esse é um caminho insustentável e precisamos aceitar a multiplicidade.

Reparem que considerar a alteridade implica em uma reorientação da existência, por isso é uma ética: uma escolha por meio da qual nos constituímos como sujeitos. Esse parece ser o único caminho possível para lidar com as crises. O outro, em diferentes níveis, é visto como um inimigo e não como parte de nós. Criamos a ideia de que somos diferentes, mas somos iguais em nossa diferença. Devemos aceitar o imperativo das diferenças e sua complementaridade. Aproximamo-nos dos iguais pelo conforto e pela segurança que isso traz, mas nossas diferenças é que deveriam guiar nossos modos de vida. Afinal, os espaços artificiais de potencial igualdade malograram. As crises são a evidência disso.

Uma das áreas de crise do texto anterior exemplifica isso: considerar o “nós”, ao invés do “eu” e do “outro” apartados, significa a impossibilidade da coexistência do aumento da extrema pobreza com a ampliação das grandes fortunas. Não me refiro ao fim das desigualdades, mas das incomensuráveis discrepâncias e da concomitância da escassez e do desperdício. Contudo, a ética da alteridade, esse permitir-se guiar pelo “nós”, não pode ser um remendo. É uma mudança epistêmica.

Uma vez compreendida as crises pela conexão entre seus liames e percebida a nulidade das verdades que favoreceram sua emergência, só resta a ética da alteridade que não acaba com as crises, próprias da variabilidade humana, mas nos ajuda a arrostar.

Nossa civilização construiu a necessidade de termos cada vez mais certezas sobre o futuro, o que favoreceu a busca crescente por controle e previsibilidade, impulsionada na esteira das ciências positivas. Mas a proposta é ir na contramão disso e aceitar a vulnerabilidade, a incerteza, a contradição. Podemos, a qualquer momento, perder a capacidade financeira ou física, por exemplo. A confiança, enquanto relação instituída por meio de vínculos intersubjetivos sempre se perde ou folga e deve ser reconstruída em um esforço perene.

A ética da alteridade se sobressai em um contexto no qual o convívio com o diferente aumentou notadamente diante da vida em grandes cidades e da ampliação dos meios de transporte e comunicação. A ampliação do acesso à internet e a popularização das chamadas redes sociais mediadas por computadores fixos e móveis expandiu exponencialmente as possibilidades de produção e consumo de sentidos e, consequentemente, de relação com o outro. Estamos lidando com mais informações e mais com o diferente, o que raramente é uma experiência pacífica uma vez que geralmente questiona a segurança do conhecido e das bolhas constituídas.

Investir na ética da alteridade é tornar-se adulto, como diz Sloterdijk, é passar das bolhas de menor para as de maior escala e termos de colocar nossas bolhas perante às dos outros. No momento em que as inúmeras bolhas se encontram passamos a experimentar um mundo de espuma no qual as bolhas em contato se chocam, estouram e são rapidamente absorvidas por outras. Nesses mundos de espuma, nenhuma bolha pode ocupar o centro absoluto e estar presente em todas as áreas, elas são sempre modestas e tem uma visão limitada do todo. As bolhas precisam reconhecer essa sua limitação e conviver com a diversidade.

Wassily Kandinsky, 1923 — Composition 8
Wassily Kandinsky — Composição VIII

O outro não irá desaparecer. Nossas bolhas vão encontrar as dos outros nos mundos de espuma. Somente no momento em que nos permitirmos existir com o diferente e nos constituirmos não apesar dele, mas com ele, é que estaremos nos aproximando da ética da alteridade.

A ética da alteridade pode nos ajudar a considerar saídas fora dos lugares prontos. Nossas aspirações estão restritas ao menos pior. Precisamos ter coragem para pensar além dos modelos já conhecidos. Talvez o momento atual de insegurança seja oportuno para isso.

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Grupo de Pesquisa em Comunicação, Tecnologia e Economia da Universidade Federal do Maranhão (ETC/UFMA).