A memória sobe a rampa

ETC | UFMA
7 min readFeb 7, 2023

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Extratos sobre memória coletiva e memória organizacional

Andréia da Silva Barbosa

Foto: Gabriela Biló

O Brasil viveu, no dia 8 de janeiro de 2023, um episódio que ficará marcado em nossa memória. Milhares de pessoas avançaram pela Esplanada dos Ministérios, em Brasília-DF, movidos pelo sentimento e modus operandi fascista e sob a ideia de confronto aos poderes republicanos constituídos, depredando e saqueando os prédios do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, num ato qualificado como tentativa de golpe contra a democracia brasileira.

Na ocasião, o fotógrafo Ed Alves registrou uma mulher com exemplar do código penal em punho, intentando rasgar o documento diante da escultura “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti, em frente ao prédio do STF. A imagem carrega um simbolismo afrontador à ideia que o conjunto arquitetônico — patrimônio mundial pela Unesco, diga-se — busca representar: a convivência equânime dos três poderes aspira um projeto de país com visão de futuro com referências à própria brasilidade, segundo opinou Vera Pugliesi, doutora em Arte pela UnB.

Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

O episódio me pareceu oportuno para pensarmos a memória organizacional, uma que supere a ideia de que se trata apenas de livros memoriais, biografia de gestores, vídeos, fotografias ou uma seleção de tantos outros tipos de acervos que vão ser acessíveis às gerações subsequentes, em museus e exposições, sejam elas físicas ou digitais.

Esse é um ponto, geralmente tomado como partida. Afinal, as sociedades têm erigido estelas, marcado pedras com escritos cuneiformes, criado e celebrado datas, reservado objetos, escrito biografias, guardado fotografias, filmado acontecimentos, publicados stories em redes sociais digitais para registrar sua existência.

A História se nutre desses elementos para compor memórias, e a relação destas com a Comunicação é o assunto desenvolvido no estudo no qual apresento um modelo de mapeamento da memória organizacional, que compilo a seguir.

É com Maurice Halbwachs (1990), sociólogo francês, que o tema da memória coletiva ganha relevo, a que se forma de confluências e arranjos conflituosos ou não de memórias dos indivíduos de um mesmo grupo social. A memória organizacional é um exemplo dessa memória coletiva, pois um pouco da memória de um se junta à de outro; são as “noções comuns”, como diria Halbwachs, para então formar a de dada coletividade.

A praça dos Três Poderes tem, ainda, outras memórias. Quando o Brasil vivia seu processo de redemocratização, desatando-se dos pressupostos governamentais da ditadura militar, várias organizações ligadas à educação e movimentos sociais que atuavam com crianças e adolescentes trouxeram para o debate público o tratamento desumano e cruel a que estava submetido o segmento infantojuvenil.

Essa mobilização social defendia, de modo urgente e inovador, um novo ordenamento jurídico que substituísse a doutrina da situação irregular, materializada no Código de Menores, de 1979. Sob a lógica dessa doutrina, dois cenários de infância e adolescência eram demarcados no país: uma, irregular, caracterizada como indigna ou incapaz de viver em sociedade, como as que estavam em situação de abandono ou delinquência; e uma infância e adolescência situada no limbo, inexistente para as leis, visto que nem estava abandonada, nem era delinquente, embora estivessem sob o contexto de violências, maus tratos ou abusos. Portanto, uma mudança era requerida: as famílias, a sociedade e o Estado precisavam assumir a infância e a adolescência como prioridade absoluta.

Amparo Seibel, ex-coordenadora geral do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Padre Marcos Passerini (CDMP), organização maranhense, recorda:

[…] A gente foi pra praça, sim! Eu lembro que a gente pegava as cadeiras escolares que a gente tinha na escola da Casa João e Maria, pra poder fazer a arrecadação das assinaturas, para que gente fosse propor um artigo na Constituição Federal, que garantisse os direitos das Crianças e Adolescentes. […] Como aquele momento era importante! A gente fazendo aquele corpo a corpo na Praça Deodoro, na Praça João Lisboa, pra que as pessoas assinassem aquele manifesto, aquela proposta, pra que a gente juntasse [d]o Brasil inteiro e, assim, isso se transformasse no artigo 227 e 228 da Constituição Federal e depois no Estatuto da Criança e Adolescente.

Foto: Acervo Projeto Meninos e Meninas de Rua (PMMR)

Pode-se conectar as lembranças de Amparo à imagem do acervo do Projeto de Meninos e Meninas de Rua (acima), no qual cerca de 20 mil crianças e adolescentes sobem a rampa do Planalto. Ocupando o entorno do Congresso Nacional, elas participavam da Ciranda da Constituinte, ato que reforçava o pedido da prioridade absoluta ser incorporado ao texto constitucional, em elaboração.

Uma rampa pode ser só uma rampa. São os sentidos produzidos pelos indivíduos em interlocução que possibilitam nuances a serem absorvidas pelas memórias individuais e das organizações às quais fazem parte. É o processo comunicativo pulsante e circulante, pelo qual os interlocutores produzem e intercambiam sentido sobre o mundo, construindo e alterando a realidade.

Uma rampa possui um sentido para um projeto arquitetônico. Quando outros interlocutores entram nesse ambiente comunicativo, outros sentidos são adicionados, disputados, modelados. O também sociólogo austríaco Michel Pollack nota a contribuição de Halbwachs quanto à duração, continuidade e estabilidade da memória coletiva, e realça seu caráter negocial e seletivo, afirmando se tratar de um fenômeno social construído. De modo didático, em outro texto, Pollack detalha a constituição da memória em três elementos, sobre os quais operam a seletividade a partir da incidência de mecanismos de projeção ou identificação: acontecimentos; pessoas e personagens; e lugares.

Neste debate, é Stuart Hall quem indica que, ao produzir sentido, as sociedades constituem “mapas de sentido” que possibilitam organizar, agrupar, consertar ou classificar os conceitos. Esses mapas são a linguagem pela qual podemos comunicar e interpretar os sentidos produzidos e postos em circulação.

O processo comunicativo se ocupa das produções de sentido intercambiadas por sujeitos interlocutores e possibilitam a constituição da realidade e, consequentemente, de organizações.

A memória, seja ela individual ou coletiva, é parte desse processo comunicativo, no qual geramos, disputamos ou compartilhamos sentidos para construir e alterar a realidade social. É por isso que datas comemorativas, acervos, depoimentos, imagens ou estruturas físicas são apenas parte do processo comunicativo, como o são do processo mnemônico.

Como um iceberg, a ponta “transmissiva” geralmente está mais evidente, tanto no processo comunicativo, como no processo mnemônico. Isso, por vezes, direciona o olhar da memória organizacional para o aspecto transmissivo de informações de um passado. Dito de outro modo, a imagem das crianças subindo a rampa do Palácio do Planalto pode, num álbum, ser apenas o registro de muitas crianças participando de uma atividade política. Em outros contextos, e sob a rememoração de outros interlocutores, pode revelar objetivos e modos de se fazer política. Nessa segunda hipótese, deixam-se realçar as camadas de formulação e intercâmbio de sentidos, que estavam lá.

No caso da ONG maranhense CDMP, a rampa do Palácio do Planalto não é apenas um item de acessibilidade arquitetônica. Os sentidos que a envolvem correspondem àqueles de origem da própria entidade. A ampla mobilização nacional — da coleta de assinaturas ao deslocamento de crianças e adolescentes do Brasil para o Planalto Central — não apenas se materializou em dois artigos da Constituição Federal de 1988, mas também no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aprovado em 13 de julho de 1990, balizando a perspectiva de alteração das práticas individuais e institucionais acerca do tratamento à infância e adolescência no Brasil. O intercâmbio de sentidos entre o texto do ECA e a criação do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Padre Marcos Passerini ocorre na legitimidade que esse marco legal, em seu Art. 87, V, dá às organizações para cumprirem o papel de proteção jurídico-social dos direitos da criança e do adolescente.

Na medida que percebemos a memória, individual ou coletiva, como construtora e compartilhadora de significados do mundo social, podemos perceber igualmente sua capacidade de nos conectar ao nosso passado, ancorando-o no presente, questionando a manutenção da coerência e a coesão com própria origem para, então, projetar-nos ao futuro.

A ideia de prioridade absoluta de crianças e adolescentes na sociedade brasileira ganhou força e movimento, aglutinando pessoas em vários formatos de organizações. A materialidade dessa ideia da prioridade absoluta em uma lei foi só um dos sentidos produzidos e circulados nos diversos processos comunicativos que ocorreram desde então, e no qual a praça dos Três Poderes e a rampa do Palácio do Planalto é um dos locus.

A criação do CDMP, em 09 de agosto de 1991, é uma variação dos sentidos produzidos que perpassaram a rampa do Palácio do Planalto. Desde então, a organização se mantém ativa em quatro grandes áreas: proteção sociojurídica, a partir do advocacy; formulação e controle social de políticas públicas; formação e educação popular, especialmente de profissionais que atuam das políticas públicas de atendimento infantojuvenil e da imprensa); e produção de conhecimento.

Nesse intervalo, muitos acontecimentos foram lapidados, negociados e consolidados na memória organizacional do CDMP. Os eventos ocorridos no último 8 de janeiro de 2023, na Praça dos Três Poderes, juntam-se às muitas camadas de sentido intercambiadas e de memória coletiva nacional, das organizações e indivíduos, comunicando à nossa incipiente democracia.

Essa visão panorâmica de acontecimentos passados e recentes da história brasileira ilustra a importância da memória organizacional não apenas para as organizações em si. Principalmente, para o diálogo e interseções que a memória possibilita às organizações em sua contemporaneidade. É o que pretendemos explorar num próximo texto.

Tem interesse em Memória Organizacional e sua relação com a Comunicação? Em breve traremos nova publicação sobre o assunto. A reunião de estudo também é um espaço importante de troca de conhecimentos e você é nosso convidado para a reunião aberta que ocorrerá dia 15 de fevereiro, às 18h. Para participar, basta clicar no link do formulário e se inscrever. Até a próxima!

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Grupo de Pesquisa em Comunicação, Tecnologia e Economia da Universidade Federal do Maranhão (ETC/UFMA).