Afroeemprendedorismo feminino

ETC | UFMA
6 min readMay 9, 2022

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Um movimento descolonial que pretende descolonizar o empreendedorismo, subvertendo as antigas dinâmicas e rompendo com velhas estruturas

Larissa Baia

Empreendedoras do Salão Afro Bela, voltado para o empoderamento estético negro em São Luís do Maranhão

Tendo em vista que a principal motivação do sistema capitalista é a obtenção de lucro, Maria Angélica Santos diz que a produção, a distribuição e a troca de mercadorias são processos racionalizados no sentido de obter acúmulo de riquezas, conforme descreveu Karl Marx. Alberto Acosta, ao analisar a cosmovisão capitalista, defende que o discurso sobre o desenvolvimento das sociedades regidas por esse modo de produção se consolidou em uma dominação dicotômica entre desenvolvimento e subdesenvolvimento, pobre e rico, avançado e atrasado, civilizado e periferia. Nesses maniqueísmos, baseados em um sistema de exclusão e imposição de valores, países considerados subdesenvolvidos, atrasados e pobres tiveram suas raízes histórico-culturais negadas e silenciadas pelo colonialismo com o propósito de alcançar características impostas, tidas como evoluídas, desenvolvidas e avançadas.

À vista disso, arrisco dizer que o empreendedorismo talvez seja a atividade que mais representa esta estrutura, por refletir, a partir do seu sufixo “ismo”, utilizado para designar movimentos sociais, ideológicos, políticos, religiosos e personativos, os principais ideais desse sistema econômico. Pierre Dardot e Christian Laval afirmam que o empreendedor, numa sociedade em que predomina a lógica do Capitalismo, pode ser como “sujeito liberal”, o qual estaria imerso, inteiramente, numa competitividade empresarial em decorrência das reconfigurações do sistema capitalista.

Dessa forma, quando ingressamos na discussão do afroempreendedorismo, entramos na esfera que se situa em uma proposta capitalista. No entanto, trago uma possibilidade de visão empreendedora diferente, outro modo de ver o mundo, produzido nos processos de vinculação entre as pessoas negras que herdam valores africanos e afro-brasileiros, podendo ser permeado por uma ancestralidade dos mercados tradicionais africanos, em que o lucro e a acumulação de capital não seriam o principal objetivo. Assim sendo, concordo com Maria Angélica quando ela diz:

“Afroempreendedorismo é um movimento descolonial brando, que pretende descolonizar (ou construir uma primeira estratégia de descolonização) o empreendedorismo, subvertendo as antigas dinâmicas e rompendo com velhas estruturas, visto que os negros e negras, marcados sujeição, coisificação e inviabilização, passa a ser 'protagonista' de uma construção diferente trama socioeconômica, política e cultural.”

É sob essa perspectiva que sugiro refletirmos sobre o afroempreendedorismo e o afroempreendedorismo feminino, em específico. Mesmo que estejam submetidos ao sistema capitalista neoliberal, o empreendedorismo entre as pessoas negras pode reafirmar as raízes africanas e/ou afro-brasileiras, além de gerar discussões sobre assuntos relevantes, como a inserção social, questões étnico-raciais, o racismo e o empoderamento negro, como o Movimento Black Money, uma Hub de inovação fundada há quatro anos para inserção e autonomia da comunidade negra, junto à transformação do ecossistema negro, com foco em comunicação, educação e geração de negócios pretos. Aproveito e deixo aqui uma reportagem sobre o movimento e a importância da movimentação financeira entre as pessoas negras para quem quiser entender melhor esse fenômeno.

Ao sugerirmos que o afroempreendedorismo pode ser um movimento descolonizador do empreendedorismo, concordamos com Eduardo Oliveira, ao dizer que quanto mais é acirrado o sistema de exclusão social no planeta, mais se faz necessário encontrar outros caminhos para organização da vida e da produção que leve em consideração a equidade de direitos e de vida em sociedade. Logo, compreendemos que as experiências empreendedoras das pessoas negras podem gerar valores, crenças e modos de vida capazes de refletir sua negritude, história, ancestralidade afro e seu sentido de viver em sociedade, sobretudo quando essa dinâmica de compra e venda mercadorias é realizada por mulheres negras, que foram pioneiras do empreendedorismo no Brasil.

A partir desse ponto de vista, proponho refletir sobre o afroempreendedorismo feminino por meio de conhecimentos dos mercados tradicionais africanos, visto que o ato de comercializar mercadorias não é uma prática restrita às sociedades capitalistas ocidentais. A prática de troca e a venda de mercadorias se faz presente entre os povos originários africanos desde sempre; desse modo, o afroempreendedorismo pode agregar valores de suas raízes africanas e afro-brasileiras.

O Baobá, Fundo para Equidade Racial, lembra que nos primórdios da sociedade humana, na África, cada família possuía uma determinada habilidade: pesca, agricultura, forja do ferro, entre outras. Aos poucos, essas famílias perceberam que poderiam estocar seus produtos e, assim, realizar a troca com outras famílias. Tratavam, então, de trocas de habilidade, dons e experiências e, assim, nasceram as feiras livres. Com o passar do tempo, as cidades cresceram e uma quantidade maior de pessoas com diversas línguas e culturas foram surgindo, bem como as moedas, criando uma linguagem mais abrangente para equilibrar as trocas. Diálogo, oralidade, barganha, negociações e olho no olho eram as principais práticas dos mercados tradicionais africanos, caracterizando uma experiência social diferente de como são obtidos bens e serviços nas experiências atuais. Essas características chegam ao Brasil, por meio dos navios negreiros, com a escravização de africanos e africanas, fazendo com que as habilidades de mercado sejam inerentes no povo negro brasileiro, dado suas raízes.

O Brasil foi o país que mais importou e se beneficiou com a mão de obra escrava, tornando-se a maior nação em número de descendentes de africanos fora da África. Foram quase 400 anos do sistema escravocrata brasileiro, e, quando foi assinada a Lei Áurea (1888), que aboliu a escravidão, a situação de liberdade das pessoas negras não garantiu os mesmos direitos e oportunidades. Mário Theodoro destaca como infeliz e excludente a forma como se deu essa transição da liberdade das pessoas negras. A abolição se deu no período em que a economia cafeeira estava em ascensão e o eixo econômico brasileiro estava voltado para as regiões sul e sudeste, onde a maioria da mão de obra privilegiada era imigrante, o que marginalizou ainda mais a mão de obra livre negra, levando a produção de um mercado de trabalho com uma estrutura rígida com pouca mobilidade para os negros, principalmente para as mulheres negras.

Todavia, em convergência com pensamento de Kabengele Munanga, não só de opressão vivia o povo negro: a resistência também faz parte de sua história. Os ex-escravizados passaram a pensar em estratégias para proverem a própria sobrevivência. Dessa maneira, a necessidade se torna impulso para a origem do empreendedorismo entre os pretos e, sobretudo, as pretas brasileiras. Idalberto Chiavenato em um dos conceitos mais usados do que é empreendedorismo diz que um empreendedor é aquele que assume os riscos de começar algo novo para realizar uma ideia ou projeto pessoal. Assim, ser o chefe de seu próprio negócio foi uma forma que as pessoas negras enxergaram para sobreviver às condições sub-humanas às quais foram submetidas após a abolição e a discriminação do seu trabalho.

No caso específico das mulheres negras, elas eram consideradas objetos de seus senhores e seus trabalhos explorados até a morte. Trabalhavam nos afazeres domésticos, nas zonas rurais e nos centros urbanos, sendo também responsáveis pelo comércio de doces, bolos, frutos, queijos, hortaliças, além de levar a correspondência de um lugar para outro. Enquanto realizavam esses serviços, os lucros eram repassados para seus “senhores”, até o fim da escravidão. Com a abolição e a falta de oportunidade, Alessandra Benedito diz que as mulheres negras utilizaram essas habilidades para seu sustento, tornando-se as primeiras empreendedoras do Brasil.

De acordo com a pesquisa Afroempreendedorismo Brasil, realizada pela RD Station, em parceria com o Inventivos e o Movimento Black Money, o afroempreendedorismo brasileiro é, em sua maioria, feminino e as suas atividades empreendedoras predominantes se apoiam historicamente nos valores ancestrais.

É sempre adequado lembrar o pensamento de Ângela Davis que aponta, ao percorrer a perspectiva histórica das mulheres negras no trabalho, o empreendedorismo ancestral destas, posto que foram pressionadas a se arriscarem no empreendedorismo de pequenos negócios para a sobrevivência por não serem absorvidas pelo mercado de trabalho diante das condições de exclusão. Assim, o empreendedorismo entre as mulheres negras nasce da necessidade de sobrevivência, liberdade e ascensão social. Entretanto, apesar destas mulheres manterem seus negócios dentro da lógica capitalista, o que elas fazem parece ultrapassar a esfera financeira por trazerem em seu empreendedorismo mais que uma simples atividade econômica ao agregarem valores de suas ancestralidades africana e afro-brasileira, mesmo sem perceber, já que estão intrínsecas em sua história. Logo, elas promovem o empreendedorismo ancestral cheio de valores, identidades, cultura e vínculos entre si.

Acompanhem os estudos do ETC através das reuniões abertas e das reflexões publicadas por aqui, estamos pensando formas alternativas de nos movimentarmos nesse mundo, vem com a gente?

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Grupo de Pesquisa em Comunicação, Tecnologia e Economia da Universidade Federal do Maranhão (ETC/UFMA).