CURADORIA

ETC | UFMA
8 min readMar 12, 2024

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A atividade de pensar novos rumos para problemas que compreendem a sociedade a partir da valoração das coisas.

Por Isys Basola

O multiartista Novissímo Edgar tem denunciado em suas músicas e obras arte em diferente suportes os excessos da sociedade capitalista e suas consequências. Na imagem um personagem criado por ele: Exer Bee cuja função Criar um buraco interdimensional para ajudar na panspermia cósmica. FOTO: Lucas Negrelli

Como você deve ter observado a partir dos textos já publicados aqui no nosso Medium, o ETC surge em meio a discussões que buscam expor, a quem interessar, temas inquietantes os quais compreendem a contemporaneidade. “Um mapa das crises para este início século”, um dos primeiros textos publicados nesta plataforma, abriu as portas para o aprofundamento de circunstâncias e questões inquietantes do cotidiano mundial, e “Comunicar o pesadelo”, publicação mais recente, nos presenteia com a oportunidade de pensarmos, idealizarmos ideias necessárias para o enfrentamento de crises modernas.

Seguindo a mesma linha, este texto busca introduzir a você, leitor, mais uma das centenas de problemáticas que compreendem o nosso mundo. Um mundo de excessos. O mundo da abundância.

Antes de explorarmos a existência de processos socioeconômicos que ditam as formas como vivemos em sociedade e trazem abundância e complexidade aos ecossistemas humanos, é válido ressaltar que quando falamos de um mundo que carrega sentidos ligados a abundância, não queremos apontar que grandes problemas como a fome, doenças e outras mazelas tenham sido extintos, apenas que o atual cenário mudou ao ponto de coexistirmos não apenas com problemas já conhecidos aos indivíduos, mas também com dilemas ainda mais desafiadores, que necessitam de discussão e resolução, que surgiram a partir de momentos da história humana.

Seguindo as ideias de Ramon, quando recordamos que o sistema econômico que molda a vida em nossas sociedades — capitalismo, sistema econômico que na esteira de Paula busca em sua primazia a obtenção do lucro máximo como prioridade fundamental — é fundamentado na produção voltada para o consumo de bens, os quais eventualmente se tornam obsoletos e são substituídos por outros, a presença de objetos e bens pode não ser percebida como uma questão. Neste momento, perguntas como “Como chegamos em tal cenário” ou “Qual é o problema de vivermos meio a existência de muitos bens/objetos?” devem surgir, e ambas podem ser respondidas com a descrição do Processo de Expansão Prolongada.

COMO CHEGAMOS AQUI

Antes de adventos marcados pela produtividade como as Revoluções Industriais, movimento baseado na produtividade que viabilizou a produção em larga escala por meio de máquinas e outras ferramentas; peças de roupa, sapatos, livros, alimentos, automóveis que eram de difícil acesso, agora são marcados e caracterizados pela escassez. Hoje produzimos mais do que em anos anteriores, roupas agora atendem ao Fast-fashion, produzimos mais alimentos do que nunca — mesmo que uma em cada nove pessoas no mundo ainda vivencie cenários de insegurança alimentar — , compramos mais livros do que lemos, e consequentemente vivemos atolados de um todo complexo e abundante.

Tal cenário é descrito, elucidado e nomeado de Expansão Prolongada — que nasceu quando a palavra abundância ainda advinha de contextos ligados à abundância de recursos naturais, junto às primeiras revoluções industriais e tecnológicas, hoje fomentadas pelas tecnologias de produtividade constante — pelo escritor e pesquisador britânico Michael Bhaskar, o qual busca explorar os efeitos negativos já sentidos no seio da sociedade como a abundância informativa em rede que não diz respeito necessariamente a qualidade dos dados, a complexidade dos modelos econômicos e etc. Como prefere resumir o pesquisador, “A Expansão Prolongada significa que muita gente tem uma ou outra coisa em quantidade excessiva, não de menos”.

É por meio do que chamamos de curadoria que nós podemos imaginar outros mundos, outros futuros.

Etimologicamente, a palavra “curadoria” remonta ao latim “curator” que deriva do verbo “curare”, atividade ligada a atos de cuidado, zelo e/ou tratamento, logo quando pensamos na curadoria, muitas vezes somos levados a concepções ligadas às áreas de história ou arte, já que a figura do curador aparece via exposições e museus como o indivíduo que media o contato entre o público e os sentidos e conceitos adicionados as obras, porém é válido adicionar que tal fenômeno/ferramenta não pode, e não deve ser limitado a apenas um entendimento ou área, já que há variedade, há abundância de sentidos, neste caso benéfica ao compreender e buscar atender as necessidades de diferentes áreas da vivência humana.

Apesar da associação contemporânea dessa prática com museus de arte, galerias e exposições artísticas, os termos “curadoria” e “curador” não têm suas raízes na Modernidade e em atividades relacionadas à organização de exposições e à seleção de obras de arte. Pelo contrário, essa atividade surge durante a Idade Antiga, período histórico que abrange a construção das primeiras cidades e se encerra com o declínio do Império Romano Ocidental, por volta do século IV ou V d.C., associada às ações de proteção patrimonial exercidas pelo curador bonorum.

Contudo, à medida que a sociedade se aproximava de novas eras, a prática curatorial passou por transformações em resposta aos desafios e contextos da época, frequentemente vinculados ao âmbito espiritual e religioso. A presença do curador tornou-se associada ao contexto eclesiástico relacionada ao sacerdote dedicado ao cuidado da alma denominado como “padre-cura” ou simplesmente “cura” durante a Idade Medieval. Também podemos identificar o início da prática curatorial relacionada às exposições de arte durante a Idade Moderna com o surgimento dos gabinetes de curiosidades precedidos dos museus. Neste ponto, a curadoria já se mostrava polissêmica.

Na era contemporânea, os conceitos de curadoria emergem como pioneiros de novos capítulos na história humana. Os contextos que exigem seleção, organização, análise e outros princípios da curadoria não são apenas moldados por influências de mudanças herdadas de períodos históricos, como as Revoluções Comerciais (séculos XV-XVII) e a Revolução Industrial (séculos XVIII a XIX), mas também por movimentos multifacetados resultantes de fenômenos como a Globalização. Esses movimentos não apenas possibilitaram integrações econômicas, mas também transformaram as interações sociais com base na abundância de bens.

A partir das discussões, conceitos e opiniões apresentadas, podemos entender a curadoria como algo que pode inerente ou não a atividade relacionada, ação que surge de necessidades que podem ser atendidas através de práticas de seleção e arranjo as quais agregam valor às coisas selecionadas, sejam elas bens materiais como livros ou imateriais como os dados/informações disponíveis na Internet. O sentido da ação deve ser levado como polissêmico, com a possibilidade de ser utilizado em várias áreas, mas sempre relacionando-se com a adição de valores nas “coisas” curadas. São novos sentidos que nascem do mesmo espaço de realização, mas com objetivos que visam mundos sonhados previamente, pois a maneira que dispomos as coisas pode mudar diretamente os laços socioeconômicos do mundo no qual vivemos.

SELECIONANDO E ARRANJANDO O HOJE

Em meio ao fenômeno da Expansão Prolongada, já mencionado, Bhaskar apresenta, em sua obra, vivências humanas organizadas e curadas em cinco categorias distintas: a curadoria do mundo, a curadoria da cultura, a curadoria da Internet, a curadoria dos negócios e a curadoria de si mesmo. Essas categorias, que têm o potencial de serem profundamente impactadas pelos sinônimos de abundância, também podem ser submetidas a padrões de seleção e organização. No contexto, modelos econômicos, misturas musicais, notícias e conteúdo digital são algumas das áreas consideradas como exemplo a fim de ilustrar o atual panorama da curadoria no Brasil.

Curadoria do mundo

A categoria da curadoria do mundo abrange um exercício curatorial centrado na organização de macro agentes, ou seja, nos fundamentos que impactam as relações e experiências humanas. Um exemplo concreto dessa categoria é o conceito de Smart Cities, ou cidades inteligentes, que surgem como resposta a uma vida urbana caótica e desestruturada. Para ser reconhecida como Smart City, uma cidade deve aderir a padrões trabalhados de forma colaborativa para aprimorar a qualidade de vida de seus habitantes. Isso inclui mobilidade urbana, infraestrutura, arquitetura e o estudo das interações entre o espaço e a sociedade que o habita. Denominado Arquiteto e Urbanista, esse profissional age como um curador nesse contexto.

Curadoria da cultura

Quando as experiências culturais começam a adotar características associadas ao resgate, à valorização e ao uso de ferramentas curatoriais que transcendem o cenário das novidades, dos singles musicais, das séries inéditas e dos programas televisivos nunca antes vistos, surge a curadoria da cultura. Um exemplo concreto dessa dinâmica pode ser observado no contexto dos cantores brasileiros Claudinho e Buchecha, que foram pioneiros na introdução do Funk Melody. Essa fusão musical é marcada pelo uso de samplers, baterias eletrônicas e pela habilidade do artista em selecionar e organizar. Dessa forma, no âmbito cultural, o artista desempenha o papel de um curador.

Curadoria da internet

Para lidar com o desafio da sobrecarga de informações na rede, surge a necessidade de iniciativas que visam organizar e atribuir novos significados à profusão de dados disponíveis online. O papel do curador, desempenhado tanto por indivíduos quanto por sistemas automatizados, como os algoritmos, é fundamental nesse contexto (Corrêa e Bertocchi, 2012). Associada ao ambiente online e à vasta quantidade de informações disponíveis, a curadoria online desempenha um papel crucial.

Um exemplo dessa iniciativa é o Canal Meio, um boletim diário de notícias lançado em outubro de 2016. Esse canal tem como objetivo oferecer aos leitores análises, resumos e interpretações dos principais eventos e notícias do dia, proporcionando uma visão contextualizada e curada dos acontecimentos. Essas iniciativas representam esforços para enfrentar a complexidade do ambiente online e fornecer aos usuários uma experiência informativa mais organizada e significativa.

A curadoria dos negócios

Refere-se ao contexto empresarial como uma prática centrada na otimização das relações entre mercados e consumidores. O Clube Wine exemplifica essa abordagem, atuando como uma nova forma de empreendimento que busca escapar das tradicionais estruturas comerciais ao utilizar ferramentas de curadoria para se aproximar do seu público-alvo. Isso é concretizado por meio da WineBox, uma caixa de vinho contendo rótulos escolhidos e organizados com base nas preferências individuais de cada consumidor.

A curadoria do ser

A ideia central dessa categoria é de que as pessoas passam por processos de escolha que as constroem como seres sociais. Nenhum ser humano nasce com opiniões e aptidões, elas são desenvolvidas por meio de processos de curadoria diários. Viver, escolher o que vestir, decidir o que comer e preferir determinados gostos fazem parte desse campo de seleção. As ações, escolhas e disposições mencionadas representam uma forma consciente de curadoria do “eu”. Isso busca conferir significado à vida por meio de decisões que moldam a apresentação ao mundo e a interação com ele. Seja na escolha dos livros que serão lidos no ano ou que religião seguir, tudo pode ser configurado por meio dessa curadoria. Diferentemente de outras categorias, a curadoria do ser é aquela que mais enfatiza o conceito como forma de dar sentido às coisas.

Quem diria que nós podemos pensar futuros mais coesos e livres a partir da curadoria, não é mesmo?

Para saber mais sobre o universo da curadoria e das pesquisas que estão sendo realizadas pelo ETC sobre a temática, continue nos acompanhando a partir das nossas plataformas (instagram e X). Te esperamos lá (e aqui também, deixe as suas impressões nos comentários).

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ETC | UFMA

Grupo de Pesquisa em Comunicação, Tecnologia e Economia da Universidade Federal do Maranhão (ETC/UFMA).