Um mapa das crises para este início de século

ETC | UFMA
11 min readMay 2, 2022

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Principalmente para quem ainda não se entregou por completo ao desânimo, mas quem sabe você, cujas lágrimas têm sido o alimento dia e noite, também não pode se interessar?

Ramon Bezerra

Embora o termo “crise” esteja banalizado diante de seu uso contínuo e indefinido, ele ainda pode ser útil se caracterizado com rigor, é o que defende Nancy Fraser. Sugestionado por Latour, proponho entendermos a crise como uma circunstância confusa e inquietante que impõe resoluções, o que a configura como um estado de oportunidade. Lilia Schwarcz, ao lembrar que um século não termina com marcos cronológicos, mas quando crises agudas questionam verdades que pareciam definitivas, nos oferece mais um elemento para caracterizarmos as crises: a falta de sustentação de verdades que pareciam permanentes. Certamente estamos em um momento desses e espero que não restem mais dúvidas de que a queda do muro de Berlim e do socialismo no final do anos 1980 não balizaram o fim da história com o triunfo inabalável da democracia liberal, que seria o máximo do nosso aperfeiçoamento enquanto humanidade.

Certamente ainda temos muito a conquistar para alcançarmos modos de existência nos quais todos os seres humanos tenham igual acesso a bens/serviços materiais/imateriais e aceitem as diferenças não como algo a ser eliminado, mas encorajado. No percurso para vislumbrar tais formas de viver uma diagnose que auxilie a identificar e compreender as crises que estamos enfrentando deve ajudar.

Quais verdades não se sustentam mais? Que fatos estão gerando insegurança? O que nos torna vulneráveis ou aumenta nossas suscetibilidades?

Evidentemente, as respostas são múltiplas dependendo da referência adotada. Utilizei como critérios os fenômenos que afetam todos os seres humanos não obstante gênero, raça, etnia, orientação sexual, educação formal, renda, sem desconsiderar que cada tipo de crise afetará as pessoas e os grupos de diferentes maneiras e intensidades, mas a intenção, neste primeiro momento, é sistematizar as crises para posteriormente lapidar as reflexões e buscar soluções.

Estudando esse cenário nos últimos anos identifiquei oito áreas de crises. São oito domínios relacionados que funcionam como catalisadores de angústias e que devem ser encarados como esferas que exigem ações coordenadas daqueles que ainda não desistiram de buscar equidade para todas as pessoas. São eles:

  1. Pobreza e desigualdades
  2. Violência e preconceitos
  3. Saúde (física e mental)
  4. Nacionalismo e autoritarismo
  5. Internet e tecnologias digitais
  6. Desregulamentação
  7. Degradações ambientais
  8. Negacionismos

Vejamos resumidamente cada um deles.

Pobreza e desigualdades

É manifesto que desde o início da pandemia o número de pessoas em extrema pobreza aumentou em diversas partes do mundo (vide os dados da América Latina e do Brasil). O aumento da pobreza é acompanhado pelo número maior de pessoas desempregadas, pela alta nos preços dos produtos, pelo crescimento das desigualdades, entre outros fatores que serão citados depois. A desumanidade desse contexto, também intensificada nos últimos dois anos, é evidenciada quando lembramos que os 10% mais ricos controlam 76% da riqueza, enquanto os 50% mais pobres ficam com apenas 2%. Não é um problema de escassez, mas de escolha, que pode ser agravado diante da possibilidade da economia voltar a crescer empurrada pela indústria de tecnologia, sem que isso seja refletido no aumento de empregos e ainda tornando muitas pessoas desnecessárias.

O empobrecimento costuma ser encoberto, pelo menos no início, por dívidas, e atualmente no Brasil temos uma França de endividados.

Esse cenário de privação afeta todas as áreas da experiência humana, como a saúde (voltarei a ela) e a educação. No caso da última, sem nunca ter recebido atenção que merece e sofrido ainda mais com o ensino remoto dos últimos anos, hoje há um problema pior em todas os níveis: redução de estudantes na educação básica enquanto os jovens de renda mais baixa que conseguiram chegar ao ensino superior têm mais dificuldade para se manter.

Não podemos esquecer um fenômeno que contribui para esse domínio da crise: o aumento dos migrantes e refugiados em todo o mundo, motivado por diferentes causas, como guerras, fiascos econômicos e mutações climáticas.

Violência e preconceitos

A guerra na Ucrânia realçou um tipo de violência com a qual não estávamos acostumados porque talvez os conflitos frequentes nas regiões mais pobres da África, do Oriente Médio, do Brasil não nos sensibilizam da mesma forma. Será que as fronteiras nacionais voltaram a não ser mais tão seguras?

A violência assume muitas formas e a dificuldade/impossibilidade de lidar com o diferente é uma delas. O racismo, que não é uma atitude de discriminação isolada, mas estruturada numa sociedade que nunca enfrentou todos os impactos da escravidão, é um processo que está incutido nas relações cotidianas e configura desvantagens econômicas, sociais, jurídicas para uma parte da população. Isso pode ser percebido nos diversos e recorrentes dados que indicam como a maior parte da população que morre vítima de homicídio, que vive abaixo da linha da pobreza e sem saneamento é negra.

Outro recorte patenteia quem mais sofre com desigualdades: a fome, o desemprego e a violência são maiores entre mulheres em comparação com os homens e maior ainda entre as mulheres negras. Na política, as mulheres, com menor representatividade, são as que mais sofrem diferentes tipos de violência, e dentre elas as negras e trans.

Não podemos esquecer a violência constante contra povos originários, percebida nos ataques aos seus costumes, a sua integridade física e na redução dos seus territórios, relacionada a área de crise da desregulamentação.

Não é preciso muito esforço para perceber que quanto mais violência histórica uma existência carrega mais ela padecerá com violências: física, sexual, moral, psicológica, entre outras. Violência e preconceito são fenômenos intrincados, antigos e que apesar da camuflagem promovida pelo neoliberalismo progressista ou pela carência de dados não diminuíram.

Saúde (física e mental)

A pandemia do início de 2020 e o colapso do sistema de saúde evidenciaram as deficiências históricas da saúde pública, que não consegue atender de forma adequada todas as pessoas que precisam. O que não significa que o SUS não deva ser defendido e aprimorado. A depressão e a ansiedade, já altas, subiram ainda mais durante a pandemia, mesmo com a subnotificação desses transtornos. Dentre os fatores que contribuíram com esse acréscimo estão os já conhecidos isolamento, luto, dívidas e desemprego. As demais áreas das crises aparecem aqui porque os fatos somatizam.

Nacionalismo e autoritarismo

É perceptível a intensificação do autoritarismo no Brasil, que pode ser percebida nas tentativas de intervenção no STF e nos questionamentos sobre a confiabilidade da urna eletrônica. Se quisermos, o autoritarismo também pode ser notado em uma estética cada vez mais utilizada que envolve símbolos militares, marchas e a própria noção de mito.

O nacionalismo do qual se fala hoje tem mais relação com o medo da perda do território e dos empregos relacionados ao aumento das pessoas que buscam refúgio. Isso ficou evidente na gestão de Trump na presidência dos Estados Unidos, contrária a imigrantes, que construiu um muro na fronteira com o México. No Brasil, as rejeições a diálogos com organizações e governos estrangeiros e a retórica de defesa nacional apontam para esse nacionalismo.

Internet e tecnologias digitais

Apesar de ainda enfrentarmos problemas primários, como precariedade no saneamento básico e baixo índice de registro civil, assim como reduzido acesso à internet, as tecnologias digitais estão cada vez mais presentes no cotidiano com as mudanças que trouxeram em todas as relações. Provavelmente a internet será como a energia elétrica: algumas localidades do país ainda não a conhecem, mas ela é ubíqua na maior parte do mundo e quando falta boa parte dos serviços são suspensos.

Inclusive, as empresas cuja matéria prima são os dados gerados pelas nossas atividades nas plataformas também já começam a se articular com o legislativo para favorecer seus produtos e serviços, a exemplo das bancadas da “bala”, “evangélica” e “ruralista”.

Nesse contexto, surgem produtos e serviços com impactos expressivos e controversos. Talvez o exemplo mais em voga seja a tecnologia experimental do Metaverso, que possibilita a criação de versões nossas para habitar em universos inventados, mas que pode conduzir a uma perigosa fragmentação, ou mesmo ruptura, entre quem a pessoa é em cada um desses “mundos”. A ampliação dos sistemas de reconhecimento facial e da conexão de aparelhos de uso cotidiano a redes sem fios (bluetooth/wi-fi), gerando e processando imensa quantidade de dados pessoais que podem ser usados para diversas finalidades, tem grande potencial de reduzir ou acabar com a privacidade como a conhecemos hoje. Sem contar que esse cenário constituído por big data e algoritmos pode construir a maior ditadura de todos os tempos.

Também não podemos esquecer a ampliação do uso de inteligência artificial para contratação, análise de desempenho e substituição de profissionais; bem como para previsão de comportamentos e fraudes; nem do aumento da utilização da tecnologia blockchain em transações financeiras (criptomoedas) e de geração de valor (NFT’s). São tecnologias que começam a (re)formatar nossos modos de vida e que tem em comum sua centralidade nos riscos e potencialidades do futuro.

Desregulamentação

Neste ponto já deve ter sido possível perceber como as áreas das crises estão relacionadas e que elas estão por aí há algum tempo, ainda que possam estar em maior relevo. O domínio de agora exemplifica bem isso. A pobreza, que impulsiona a busca por qualquer tipo de trabalho, se encontrou com a ampliação do uso das tecnologias digitais e favoreceu o crescimento das plataformas on-line que conectam quem precisa de um produto/serviço com quem pode oferecer. Essas plataformas surgiram em um contexto de crescente desregulamentação, favorecendo um cenário de trabalho cada vez mais precário: sem direitos, rotinas exaustivas e baixo rendimento financeiro.

A desregulamentação consiste na ausência de normas e regras estabelecidas pelo Estado para organizar as relações entre os diferentes setores da sociedade visando o equilíbrio nas relações. Cotidianamente, esse fenômeno está presente quando se fala em reforma trabalhista, terceirização, privatização, pejotização, MEI; expressões de uma racionalidade por meio da qual o Estado é reduzido e o indivíduo supervalorizado.

Esse contexto fica ainda mais intenso diante da fragilidade das instituições, das ameaças e interferências entre os poderes, que têm relação com outra área de crise já citada: nacionalismo e autoritarismo.

Degradações ambientais

Vamos seguir as ideias de Latour que podem nos ajudar a compreender esse domínio da crise. Em dezembro de 2015, ao final da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, foi assinado um acordo. Os países signatários estavam motivados pela percepção de que se seguissem suas expectativas de progresso o planeta não aguentaria, concordando em reduzir, gradativamente, a emissão de gases que causam o efeito estufa. O chamado acordo de Paris evidenciou algo que antes só os povos originários sabiam, a sensação de ser privado de terra, e ao invés disso fazer emergir um senso de cooperação entre os povos e nações que precisam dividir o mesmo planeta, induziu a mais conflitos. A saída dos Estados Unidos desse acordo, em 2017, foi como se o país anunciasse que não dividia mais o mesmo planeta com os outros.

Estamos diante de impactos irreversíveis causados pelas mutações climáticas que atingem o planeta de formas diferentes. Lembrando que o Brasil está entre as áreas mais suscetíveis e com alertas recordes de desmatamento na Amazônia. Caso não esteja claro, a degradação do meio ambiente afeta o cotidiano de inúmeras formas: inundações, tempestades, escassez de água doce, falta de alimentos, secas, furacões, incêndios, aumento de doenças cardíacas e respiratórias, calor extremo.

Muitos desses problemas que já conhecemos são reincidentes. Exemplo recente é a cidade de Petrópolis, que constantemente sofre com temporais, inundações e deslizamentos de terra. Como resultado disso, as pessoas sofrem seus lutos, mas as mesmas regiões voltam a ser ocupadas. História que se repete em diferentes localidades.

Negacionismos

Não é de hoje que parece existir uma primazia no uso das crenças pessoais e das emoções, em detrimento de fatos objetivos, na construção das opiniões, a chamada pós-verdade. Ambiente favorecido pela ampliação da circulação de informações deliberadamente inventadas, descontextualizadas, parcialmente alteradas, dentre inúmeras outras variações, o fenômeno conhecido como desinformação. Diante de tantas versões (abundância de sentidos) fica fácil escolher a verdade que nos agrada como se fosse um produto qualquer em uma prateleira. Para combater isso surgem agências de checagem, com um trabalho meritório, mas que parecem estar enxugando gelo. Alguns Chefes de Estado contribuem para esse cenário, especialmente no contexto da crise sanitária, negando fatos científicos e intensificando a fragilidade das instituições. Parece que estamos negando tudo, da eficácia de vacinas à mutações no clima.

Em que ou em quem acreditar não é uma dádiva do intelecto, requer um mundo compartilhado: instituições, mídia, pessoas próximas. Por isso não adianta só “ensinar” como se fosse um problema de inteligência. Geralmente nos afastamos dos fatos por medo ou insegurança, e diante da inexistência de um mundo compartilhado a convivência fica impossível.

Chegamos em um momento no qual a ideia de que o trabalho duro e honesto geraria riqueza, ou pelo menos vida digna e minimamente confortável, não se sustenta mais. Gerações acreditaram nisso e agora essa narrativa ruiu. O que sobrou?

Quase terminando

As oito áreas de crise, esses domínios nos quais as narrativas estão cada vez mais frágeis, são interdependentes. Podem até ser encarados em sua existência particular, mas em momento nenhum dissociados dos demais uma vez que eles se retroalimentam e se impulsionam. Essa compreensão é importante para quem se dispõem a buscar soluções em seu âmbito de atuação, porque precisamos de metas plausíveis, concretas e capazes de mobilizar, mas sem retalhar essas instâncias. Não faz sentido pensar políticas públicas para a área de internet e tecnologias digitais sem considerar que as pessoas com menos acesso são aquelas que mais sofrem violência e preconceito, que esse cenário padece com os efeitos da desregulamentação, contribui com os negacionismos e aumenta a produção de lixo ao precisar de dispositivos planejados para rápida obsolescência e descarte. Para ficarmos em um exemplo.

Todos os seres, independentemente de suas inevitáveis diferenças, estão compartilhando a mesma sensação (embora em intensidades distintas) de perda de vínculos, de território, de segurança. Talvez a sensação generalizada de crise que coloca em cheque nosso desejo mais elementar de nos sentirmos seguros possa nos ajudar a vê-la como uma oportunidade. Precisamos de uma política da alteridade (não austeridade, como cortes de gastos e aumentos de impostos) porque carecemos de acordos e consensos, sempre provisórios, entre todos os seres.

É necessário explorar as chances de mobilizar emoções políticas no caminho de novos objetivos. Não existe mais a possibilidade de reparos, precisamos redefinir a ideia de humanidade. Nesse intuito, podemos buscar outras cosmologias, que não raro são vistas como arcaicas e subjetivas, para nos ajudar porque não são fragmentárias. Isso não significa, antes que cheguem as acusações, abandonar as ciências positivas/modernas, mas conciliá-las com outras racionalidades. Novamente: a questão não é recortar e excluir, mas juntar.

Trata-se de nos movimentarmos nas contradições e nas dobras para desnaturalizamos essa sub-humanidade que se construiu, mas não se sustenta mais. Pensar por meio da sobreposição de camadas e não de dicotomias vai nos ajudar a ampliar as alianças.

Experimentamos uma forma de vida inconcebível baseada numa ideia inventada de liberdade como se pudéssemos existir em bolhas isoladas que não afetam nem são afetadas umas pelas outras. Não seria o caso de substituir nossa tão sonhada emancipação/liberdade pela dependência? Compreendo a estranheza dessa ideia, mas a hipótese é que talvez o reconhecimento da dependência possa aumentar a emancipação/liberdade. Afinal, o eu só existe a partir da relação com o outro, certo?

Essa é só a primeira versão do que estou chamando de maneira bastante complacente de mapa das crises para este início de século. Afinal, precisamos de um diagnóstico para pensar, não?

Acompanhem os estudos do ETC que essa reflexão terá continuidade e proposições no intuito de saber como nos movimentarmos e vivermos nesse cenário.

Enquanto isso, o que acharam? Faz sentido? O que faltou? O que está em excesso? Usem os comentários.

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ETC | UFMA

Grupo de Pesquisa em Comunicação, Tecnologia e Economia da Universidade Federal do Maranhão (ETC/UFMA).