Sobreviventes lutam cedo

Malformação na coluna de feto obriga pais a decidirem por fazer ou não cirurgia intrauterina

Daniel Quadros
9 min readJun 26, 2017

Arthur Ribeiro Sigalles, com apenas alguns meses de formação na barriga de sua mãe, Naiara Sigalles, já lutava pela vida. Diagnosticado com meningomielocele, antes mesmo de nascer ele passou pela cirurgia intrauterina que potencializaria a possibilidade de ter uma vida normal. Espinha bífida, uma falha no fechamento do tubo neural que compromete a medula e precisa ser corrigido imediatamente é o ponto de partida para os médicos.

“É como matar um leão por dia, mas o Arthur nos dá força, pois ele é um menino alegre e apesar da pouca idade sabe suas limitações e não se deixa abater. Então nós como pais somos recompensados ao ver alegria de nosso filho.”
- Naiara Sigalles, mãe, dona de casa de 32 anos.

A cena é comum. Brinquedos espalhados pelo chão, um sofá em formato de L, o rack que suporta a tela da televisão e a cadela viralata de pelos marrons arrepiados transita desconfiada pelos cômodos. A criança se diverte sentada no chão, engatinha para mostrar seu brinquedo novo e divide a mão entre a bolacha e os vários carrinhos. São tantas opções de brinquedos que de vez em quanto ele guarda tudo na caixa e depois espalha de novo. Apesar do esforço, Arthur não fica em pé sozinho ainda. Ele sabe que precisa cuidar da postura, foi o que ensinaram na fisioterapia. Olha para os pés, endireita e senta.

Foto Naiara Sigalles

As membranas que recobrem a medula espinhal e a própria medula sofrem uma malformação. O tubo neural deveria fechar-se já no início da gestação, mas a carência da ingestão de ácido fólico ou a sua mutação dificultam esse processo. Na tentativa de aumentar o consumo dessa vitamina, desde 2008 as farinhas de trigo e milho são enriquecidas com o ácido fólico no país. Essas são informações de Gregório Lorenzo Acácio, coordenador das disciplinas de ginecologia e obstetrícia da Universidade de Taubaté, membro do grupo de cirurgia fetal do Hospital Israelita Albert Einstein e especialista em medicina fetal.

“Antes de sabermos o diagnóstico do Arthur, tínhamos uma grande expectativa e alguns pontos, médicos e hospitais definidos. Nunca tínhamos ouvido falar desta malformação. Soubemos da malformação do Arthur na 12ª semana de gravidez, bem cedo, através de um ultrassom e houve a confirmação com 15 semanas através de uma ressonância magnética.”
Naiara Sigalles.

Foto Naiara Sigalles

Assim como ele, um em cada mil nascidos vivos no mundo passam por isso. Na Grã-Bretanha, quatro em cada mil. Já no Brasil, se comparado aos anos de 1990 a 2000, quando um estudo em Curitiba levantou o número de incidência de quase dois em cada mil, esse número aumentou. Até 2001 subiu para mais de dois em cada mil nascidos vivos os casos da doença. Apesar disso, a disfunção não é muito conhecida pelos brasileiros, que até estranham o nome. Em 2008 os índices regrediram cerca de 60% com a suplementação das farinhas.

Em uma cadeira de bebês alta, com o babador amarelo no pescoço e seu moletom vermelho, Arthur chantageia. Na mesinha da cadeira está o prato com arroz, feijão e carne. Ele brinca com a colher. Quando a mãe pergunta ele responde “eu quero doce, mãe. Doce de chocolate”, “doce?” a mãe retruca, “mas tem que papar primeiro”. Sem pensar duas vezes ele coloca uma colher cheia na boca e devolve “agora doce?”.

Quanto à ingestão de bebidas alcoólicas, cigarros ou drogas ilícitas, alguns estudos apontam como prováveis influenciadores do problema. Porém, durante observação ao perfil dos pacientes atendidos no Centro de Distúrbios Miccionais da Infância (CEDIMI) da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública em 2012, essa informação é contestada. Constatou-se que 72,7% das mães não tiveram contato com nenhuma substância do tipo durante a gestação.

O rack não serve apenas para suportar a televisão, também é esconderijo. Quando menos se espera, Arthur está dentro do móvel. De meia, casaco e calça de moletom ele brinca. Quando Naiara pergunta, ele responde “tô me escondendo, mamãe”.

O procedimento cirúrgico da meningomielocele é um dos únicos no qual a possibilidade de mortalidade é de 200%, uma vez que além da vida do feto, a mãe também corre risco. As causas da deficiência ainda não são concretas. Acredita-se que além da falta de ácido fólico, fatores genéticos e ambientais influenciam no desenvolvimento da mesma, como histórico familiar.

“O Arthur apresenta sequelas dessa má formação que são: intestino e bexiga neurogênica, dificuldade de mobilidade nos membros inferiores, como hipotonia, redução ou ausência de sensibilidade e movimentos.”
Naiara Sigalles.

No dia 8 de julho de 2014 Arthur passou pelo procedimento intraútero, ainda na barriga, com apenas 26 semanas. O método utilizado é chamado a céu aberto, onde basicamente o médico faz um corte de aproximadamente 20 centímetros na barriga da mãe, corta a bolsa e posiciona o feto. O neurocirurgião consegue enxergar as costas para fechar e corrigir a falha. Com os reparos feitos, costura-se tudo e a gravidez segue. A mãe fica em repouso total para evitar o grande risco de nascimento prematuro e complicações desse tipo de cirurgia. Esse dia ficou marcado na vida da família como o primeiro nascimento.

Na hora de dormir a bagunça começa. Ele gargalha e não quer saber de sono, quanto mais se fala sobre ir para a cama, mais risadas ele dá. O som é gostoso e contagiante, como todo sorriso de criança. Até o cansaço vencer o menino, tem que ter muito fôlego. Disso a mãe já sabe.

“Nosso filho mostrou que por mais difícil que seja o que se está passando, mesmo sem entender direito, não se pode deixar o sorriso de lado. Amo todos vocês da minha família.”
- Márcio Lourenço, pai e empreendedor.

Foto Naiara Sigalles

Porém, o momento mais esperado ainda estava por chegar. Dia 10 de agosto de 2014, prematuro de 32 semanas, pesando 1.380 quilos e medindo 38 centímetros, Arthur veio a este mundo. Após a recuperação ele brinca, questiona e mostra o seu desenvolvimento a cada conquista e descoberta. Apesar dos cuidados especiais como, fisioterapia, possibilidade de novas cirurgias e um ritmo diferente para caminhar e falar, percebe-se que a ingenuidade e a alegria é como a de uma criança qualquer. O segundo nascimento é cheio de reflexões e comemorações.

Apesar de ter nascido em São Paulo, ele mostra que é gaúcho. Na cadeirinha de comer com dois pedaços de costela assadas do churrasco, ele não sabe qual morder primeiro. Intercalando entre uma e outra ele vai babando e arrancando a carne do osso. A expressão no rosto é de faceirice. Os olhos circulam curiosos pela sala, ele para e dá mais uma mordida.

“É uma confusão de sentimentos, pois somos muito felizes e agradecidos com nosso filho, mas ao mesmo tempo ficamos temerosos. Uma simples febre em uma criança pode ser sinal de um resfriado, no Arthur temos mil possibilidades e outras preocupações. Por mais que seja algo simples, sempre tem que ser investigado e isso nos traz uma série de ansiedades e desgastes. Esses sentimentos são em relação ao futuro dele também, pois sabemos que estamos só no começo.”
-
Naiara Sigalles.

A forma clássica de correção do problema é a neurocirurgia no período após o nascimento. Entretanto, já está provado que a cirurgia fetal abrindo o abdome materno e o útero durante a gestação melhora as chances da criança andar e diminui a necessidade de colocação de um cateter para tratamento da hidrocefalia, que é comum nesses casos. O objetivo do procedimento intra útero é evitar ou amenizar problemas como a malformação de Arnold Chiari, uma das consequências da mielo que pode causar complicações no cerebelo. Como a coluna do feto fica exposta e em contato com o líquido amniótico isso pode agravar mais ainda as sequelas, principalmente as motoras. Portanto, o fechamento do defeito o quanto antes evitaria futuras reincidências desses problemas. Apesar disso, em 8 de dezembro de 2016 uma nova cirurgia foi realizada na coluna. A liberação da medula, processo conhecido como desancorar e a retirada de 4 tumores. A grande maioria das crianças com mielo em algum momento da vida precisam fazer isso.

“Provavelmente ele terá que corrigir uma rotação nos joelhos que irá melhorar a parte motora, futuramente terá que fazer correções na bexiga que iram lhe dar autonomia na parte urinária.”
-
Naiara Sigalles.

Duas batatas, uma panela e uma colher. É a brincadeira que Arthur quer. Apesar de ter vários brinquedos, ele gosta de inventar. Mexe, mistura e sacode tudo na panela. Ele alcança para mostrar que está pronto e já poder comer. O chefe de cozinha da família mostra seus dotes culinários.

O grupo do médico Gregório criou uma técnica de cirurgia fetal que se parece com a laparoscopia, sem necessidade da abertura do abdome materno e útero. São realizados três a quatro furos no abdome por onde entram os instrumentos e a câmera para realização do procedimento que se chama fetoscopia. Já foram operadas 56 crianças, duas delas em Israel — as primeira do país, e uma no Chile. Ultimamente diversos pesquisadores vieram assistir às cirurgias realizadas pelo grupo. Eles operam no Hospital Israelita Albert Einstein. Os resultados em muitos aspectos é semelhante ao da cirurgia fetal a “céu aberto”, mas em outros aspectos é superior como menos riscos e complicações para a mãe.

“Um grupo de Israelenses do hospital Hadassah de Jerusalém, veio para assistir a cirurgias no Brasil em 3 ocasiões. Após isso os brasileiros foram convidados a realizar em conjunto com eles as duas primeiras cirurgias desse tipo em Israel. Todo um processo burocrático teve que ser realizado com tradução de todos os certificados para o hebraico, autorizações do ministério da saúde de Israel e da diretoria do hospital Hadassah para que estrangeiros pudessem realizar a cirurgia em Israel.” Gregório Acácio.

Programa de Terapia Fetal Hospital Albert Einstein apresenta: Mielomeningocele, a espinha bífida.

Jaderson Sigalles de 24 anos é tio de Arthur e toca bateria. Arthur se diverte sem descer da moto de brinquedo que transita pela casa da avó. Entre no quarto do tio, observa e parte para a ação. Ele pega as baquetas e começa a batucar. A sinfonia não é profissional, mas para a família soa como uma orquestra sinfônica.

Mesmo com as superações, dias ruins e dias bons se passam na vida de Arthur. Cada dia é vivido pensando no presente e torcendo pelo futuro. A história de crianças com meningomielocele está longe de ser um conto de fadas, mas finais felizes são possíveis com os tratamentos adequados. Ele foi uma criança desejada desde que os pais souberam da gravidez, mesmo com a opção de fazer a interrupção como foi cogitado por profissionais da saúde. Eles resolveram dar uma chance a vida.

“Aprendi com Deus que ventos fortes nos fazem atravessar desertos como sementes, e voltamos flores. Aprendi que palavras são folhas que voam feito pássaros, mas atitudes silenciosas são como árvores, que se fincam no chão e ninguém arranca. Aprendi contigo Nai a ser muito mais que mãe.”
-
Jorgete Sigalles, avó, servidora pública de 51 anos.

Como os médicos costumam dizer a mielo é uma caixinha de surpresas. Não há como prever o que virá pela frente, porém, a família continua com bastante esperança na evolução da medicina. Quando se pensa em uma doença, dificilmente algo bom vem a mente.

“Apesar do susto, o Arthur trouxe para a nossa família mais união, fé e amor. Ficamos muito mais unidos e humanos. Amadurecemos em nossas relações tanto em família quanto em sociedade.”
-
Naiara Sigalles.

As dificuldades a serem superadas e as limitações deixam qualquer um apreensivo ao receber um diagnóstico negativo. Quanto mais peculiar o problema, maior é o receio que se sente em relação ao futuro. Com a história do Arthur Ribeiro Sigalles, o exemplo deixado é que muitas vezes o que importa é a força de viver. Para não desistir da vida, sobreviventes lutam cedo.

--

--